A cultura humana é muito diversa. Temos tantos aspectos que ela abrange, que é difícil fazer um resumo de tudo. Segundo o antropólogo britânico Edward Tylor: “a cultura é todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade”.
Valores culturais são sempre vistos em pé de igualdade entre si, entretanto, conforme as forças globalizadoras nos levam a uma crescente pasteurização das expressões étnicas, alguns aspectos são absorvidos, transformados e, muitas vezes, renegados de seus significados originais.
Uma das formas de cultura é denominada de cultura imaterial, formada por elementos intangíveis como um conjunto de saberes, tradições, hábitos, comportamentos, costumes e modos de fazer de um determinado grupo, como descrito por Daniela Diana. Um destes subaspectos da cultura imaterial é a culinária e o acesso aos ingredientes utilizados, podendo eles ser fortemente associados ao crescimento geográfico específico, ou a um evento especial.
Um exemplo clássico e muito presente no nosso cotidiano latino é a folha de coca, oriunda de uma planta de nome científico Erythroxylum coca, que é nativa da Bolívia e do Peru. Muito conhecida principalmente por ser comumente mascada pelos povos andinos como forma de aplacar fome e fadiga, a planta está muito presentes no cotidiano de tais populações, sendo este hábito disseminado desde a Antiguidade entre os habitantes.
Porém, depois da colonização e disseminação da planta na Europa, seu uso foi mudado para uma droga recreativa, que foi purificada a ponto de se tornar a cocaína, como conhecemos hoje. Nós já conhecemos bem esse desenrolar, entretanto, hoje vou me dedicar a contar a história de outra plantinha, só que essa é da África Oriental e da Península Arábica: o khat.
O khat é uma plantinha muito fofinha cujo nome científico é Catha edulis, chamada também de cat ou quat, mas aqui neste texto usaremos khat mesmo. É uma espécime vegetal de origem ainda incerta. Alguns especialistas atribuiem sua origem à região onde hoje fica o Iêmen, em que ainda é muito utilizada. Por coincidência, muito se atribui a esta região como a mesma origem do café.
Assim como sua prima latina muito distante, o consumo via mastigação do khat é relacionado com aspectos sociais e culturais dos povos que habitam aquela região, com efeito de euforia e excitação, muito parecido com o de um café forte (o que pode ter alguma relação com a origem do gênero Coffea,do qual o café faz parte).
A planta deixa seus consumidores mais comunicativos durante seu efeito, além de ter uma ação anoxerígena. Também é usada para supressão de sono e de fome, com efeitos muitos semelhantes a anfetaminas. Esse efeito é causado por uma substância presente nas folhas que será uma das estrelas do nosso artigo: a catinona.
A catinona é um alcaloide monoamínico, além de uma classe de substâncias com estrutura muito semelhantes, cuja presença nas folhas de khat causa os efeitos estimulantes vistos em seus consumidores. Essa molécula tem a capacidade de estimular a secreção de dopamina, além de inibir a receptação de serotonina, epinefrina e norepinefrina no sistema nervoso central.
Como não raro na sociedade, o khat é considerado uma droga de abuso e é proibida em muitos países, principalmente naqueles de cultura mais ocidentalizada. Porém, em muitos países localizados próximos ao Chifre da África e África Oriental, onde esse hábito já é difundido há muito tempo, a mastigação do khat é permitida. Segundo os proibicionistas do khat, como o Drugs Enforcement Administration (DEA) americano, o uso do khat pode levar a delírios, danos ao fígado e complicações cardíacas.
Entretanto, a criatividade humana é inexorável. Se algo existe na natureza, é passível de ser reproduzido. Em 1975, antes mesmo de ser estabelecido que as catinonas eram os principais ativos no khat, já existiam substâncias muitos semelhantes às catinonas, chamadas de catinonas sintéticas. A nossa grande estrela deste artigo, a Metilenodioxipirovalerona, ou MDPV para os íntimos, foi sintetizada pela primeira vez pela farmacêutica alemã Boehringer Ingelheim na década de 1960. Ficou até o início dos anos 2000 na escuridão, quando muitos designers de drogas perceberam seus efeitos e a pouca legislação vigente aplicada ao MDPV e começaram a vender essas substâncias dentro do que foi chamado de “sais de banho” ou, no Reino Unido, como “pó de macaco”, por conta do seu aspecto de pó branco, muito parecido com açúcar refinado, granulado ou em cristais.
O advento dos sais de banho na Europa, e em seguida nos Estados Unidos a partir de 2011, levou a muitas ocorrências. A American Association of Poison Control Center (AAPCC) relatou de 2011 a 2014 um total de 31.000 ocorrências envolvendo essas drogas.
Os sais de banho têm uma especificidade interessante. Por conta da forma com que eles são feitos, cada “tipo” tem um balanço entre catinonas sintéticas variadas, além do MDPV, como a mefedrona e o já conhecido MDMA, então a fiscalização desses compostos se torna muito complexa.
Como você pode ver, meu amigo leitor, esse pozinho tem capacidade de causar altas confusões. Como visto em um estudo de 2018, quando camundongos foram expostos ao MDPV, observou-se um comportamento altamente ansiogênico, além do aumento significativo da agressividade, o que também já foi observado em seres humanos.
Com esses efeitos assustadores, não tardou para que relatos fossem coletados com aquela acurácia jornalística, já conhecida por nós, como chamar os sais de banho de “superdroga” e os usuários de “legiões de zumbis”, com histórias de pessoas andando sem rumo de forma lenta, como os mortos-vivos que conhecemos da cultura pop, além de quadros de psicose e paranoia, com usuários se jogando no trânsito, pulando de pontes e de prédios altos.
Com toda essa saga, surge a pergunta: será que com nossa atual realidade, triste, fria e sórdida, a fuga dela a qualquer custo vai se tornar cada vez mais atraente? Sabemos muito bem o quão infiltradas essas drogas estão nos nossos cotidianos. Vimos juntos a trajetória de uma plantinha mastigada no Iêmen até o The Walking Dead da vida real, na qual tudo o que podemos fazer é lutar por políticas de informação, educação e prevenção do uso desse tipo de bomba química que leva ao delírio até o mais equilibrado dos homens, e nenhum de nós está imune a esta realidade.
Referências
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