Qual a primeira memória que você tem na sua vida? Tipo a mais distante de quando era criança? No  meu caso envolve música Ana Júlia dos Los Hermanos, a casa de vó e eu ainda muito criança brincando com um boneco do Superman que andava em cima do cavalo. Por qual motivo essa lembrança é a que eu guardei não faz sentido, mas ela tá lá e faz parte de quem eu sou.    

No texto de hoje vamos partir de dois filmes, Aftersun (2022) e The Father (2020), para falar sobre memórias ou a perda delas. Bora lá

 

Aftersun e quando lembramos

No livro “Cérebro – Uma Biografia (2017)”, de David Eagleman, o autor comenta como a memória é fundamental para montar a nossa identidade. Quase que de modo literal, as células do nosso corpo mudam constantemente, o que permanece é a memória, o elo do nosso passado, presente e até futuro (1).

Eagleman faz o seguinte exercício:

Imagine entrar em um parque e se encontrar em diferentes fases da vida. Lá está você aos 6 anos, na adolescência, no final dos 20, em meados dos 50, no início dos 70 e próximo da morte. (…) vocês podem todos se sentar juntos e contar as mesmas histórias sobre sua vida, desenrolando o fio único da sua identidade. (…) Ou não? Todas as suas versões têm o mesmo nome e história, mas o fato é que vocês são pessoas relativamente diferentes, com valores e objetivos distintos e as lembranças da sua vida podem ter menos em comum do que se poderia esperar (1).

A questão é: se eu encontrasse com o meu eu um dia depois lá da minha memória na casa de vó, teria a mesma visão que eu tenho desse dia? Aliás, será que o meu eu ao menos lembraria desse dia? Daria a importância e valor que eu dou hoje? Provavelmente não. Bem recentemente um filme me fez ressignificar bastante o que lembro da minha infância.

(imagem 1, capa do filme aftersun com os dois atores principais ao fundo, uma foto com tons antigos.)

AfterSun (2022) é o primeiro filme da cineasta Charlotte Wells, estrelado por Paul Mescal e Frankie Corio. Em resumo, o filme conta a história de uma viagem de pai e filha, pela Turquia a partir do olhar da filha já adulta.

Pai e filha em sua viagem carregam consigo uma câmera, fazendo o link entre o passado e presente, da filha já adulta observando as imagens que ela gravou.

Momentos que, à primeira olhada, são felizes, não são tão bons quanto aparentam quando contextualizados. A filha está entrando naquela fase confusa da adolescência e o pai tendo que lidar com crise financeira, problemas com álcool e graves questões de saúde mental..  

Aqui trago as palavras do crítico PH Santos (link) sobre o filme:

a memória registrada na câmera, apesar de gravada, não é necessariamente uma memória real, pois surge como um trecho e não como uma realidade fidedigna. Uma vez que a maior parte do tempo a câmera está desligada.

(imagem 2, cena do filme aftersun onde os dois personagens fazem um alongamento com a natureza ao fundo)

E aqui voltamos para o Eagleman, que associa a memória como uma frágil gravadora de vídeo que precisa ser ressuscitada para que possa ser lembrada. As memórias se sobrepõem, ou seja o que lembramos do passado tem influência total do momento presente. Além disso, a memória do passado que você está tendo agora no presente vai influenciar no futuro (1). Acho que ficou um pouco confuso, por exemplo, quando me lembrar da memória na casa de vó, no futuro, posso associar a esse texto e o que estou sentindo no momento em que o escrevo.

No livro Cérebro Imperfeito (2017) de Dean Buonomano, o autor fala que:

Nossas memórias são reeditadas o tempo inteiro – características são acrescentadas, apagadas, mescladas e atualizadas ao longo do tempo. (…) isso ocorre em parte porque, na memória humana, o ato de guardar informações não é diferente do de recuperar informações – as operações de registro e leitura interferem uma na outra. (2). 

Acho que até aqui ficou claro que nossas memórias são imperfeitas e não tão confiáveis, principalmente quando se fala da infância, quando não temos os artifícios suficientes para entender a realidade. Agora o que acontece quando já temos idade o bastante pra entender o mundo, mas a nossa memória de passado e presente se confundem. 

 

The Father e quando esquecemos 

No livro ”O Homem que confundiu sua mulher com um chapéu” (1985), de Oliver Sack (3), tem uma frase que sempre lembro “as nossas memórias são a âncora que nos prende ao passado”, aliás, já escrevi um texto sobre esse tema (link) partindo do filme de comédia “Como se fosse a primeira vez”, em que a personagem principal tem Amnésia Anterógrada.

No texto de hoje vou explorar um pouco do esquecimento relacionado ao Alzheimer.

(Imagem 3, cena do filme The Father com o ator do Pai em um primeiro plano e a filha desfocada no fundo)

O filme The Father (2020), dirigido e roteirizado por Florian Zeller e estrelado por Olivia Colman e Anthony Hopkins, ganhador de dois Oscar (roteiro e melhor ator), aborda o dia a dia sob o ponto de vista de um idoso diagnosticado com a Doença de Alzheimer (DA).

Imagina a seguinte cena: você está ali com os seus 80 anos conversando com a sua filha, de repente ela vai na cozinha, você a chama e quem sai da cozinha é a sua cuidadora, dizendo que sua filha está viajando, já tem uma semana, e não pode vir agora.

O filme consegue retratar perfeitamente alguém dentro da DA, desde a confusão, alterações de humor repentina, depressão, em como a doença afeta as pessoas ao redor até a falta de compreensão de alguns parentes diante a patologia. Pois quando se tem Alzheimer anos atrás se parecem ontem, dias se repetem, as memórias se confundem e perdemos a nossa âncora com o passado.

A descoberta da doença foi em 1906 pelo médico Alois Alzheimer, após o mesmo ter diagnosticado uma mulher de 51 anos com sinais de demência, porém com a morte prematura do médico que deu nome a doença, a mesma passou por um longo período em esquecimento. Pode parecer irônico uma doença que tem a principal característica esquecer ter sido esquecida no meio científico da época, voltando a evidência apenas nos anos 60 (4).

Apesar de existir um interesse na patologia, as poucas descobertas feitas relacionadas ao DA iam contra o pensamento comum da época. Pensa comigo que o Alzheimer é uma doença ligada ao envelhecimento e só veio a ter destaque conforme a população mundial foi vivendo mais. 

O intervalo entre o abandono das descobertas de Alzheimer e a retomada de parte de sua pesquisa nos anos 60, permitiu uma visão mais ampla, influenciada pela psicanálise, da doença como envolvendo a pessoa e não somente um processo patológico do cérebro (4).

A DA é caracterizada por uma afecção neurodegenerativa, progressiva e irreversível de aparecimento insidioso, que acarreta a perda de memória e diversos distúrbios cognitivos. Geralmente a DA tem acontecimento tardio ao redor dos 60 anos de idade, porém existem evidências que mostram uma incidência de acontecimento prévio antes dos 40, casos assim são mais raros (5).

Conforme se aumenta a expectativa de vida, aumenta também o diagnóstico de DA. 50% dos casos de demência na Grã Bretanha e nos EUA, estão relacionados ao Alzheimer, sendo o DA a quarta causa de morte entre os idosos. 

Estima-se que, até 2050, os casos de DA triplicarão. A causa disso, para além do envelhecimento da população, está o estilo de vida pouco saudável que é cada vez mais adotado na sociedade.

No Brasil, que em 2019 tinha por volta de 1,8 milhões de casos, até o ano de 2050 vai ter 5,6 milhões (link).

(imagem 4, cena do filme the father com o personagem do pai sozinho em casa)

Voltando ao filme The Father, durante 98 minutos acompanhamos o ponto de vista de uma pessoa acometida pela Doença de Alzheimer em como ela tenta se adequar a situação, mesmo sem entender o que está acontecendo. 

No site Indiewire, David Ehrlich (link) escreveu:

o processo de ver alguém esquecer de si mesmo raramente dá tempo para tristeza, raiva ou qualquer outra emoção facilmente discernível (…) é uma luta constante para reafirmar uma realidade compartilhada (…) Reconhecer alguém por quem ele é enquanto tenta não se esquecer de si mesmo no processo. O peso do choro só vem depois, depois que as memórias de alguém são tudo o que resta.

A nova cuidadora que está com você há mais de um mês e ontem mesmo vocês jantaram juntos, agora é uma desconhecida na sua casa. Não consegue distinguir com qual das suas duas filhas você está conversando. De repente um dia acordar no corpo de 80 anos com lembranças recentes de quando tinha 10 anos e chora de saudades de sua mãe.

Pra não terminar o texto de forma tão triste existem várias descobertas recentes dentro do DA que dão uma boa perspectiva do futuro, porém pra não me alongar tanto esse será o tema de um outro texto.

 

REFERÊNCIAS:

(1).  David Eagleman, CÉREBRO: UMA BIOGRAFIA, 2017. Editora ROCCO.

(2).  Dean Buonomano, CÉREBRO IMPERFEITO, 2017. Editora CAMPUS. 

(3). Oliver Sack, O HOMEM QUE CONFUNDIU SUA MULHER COM UM CHAPÉU, 1985. Editora Companhia das Letras. 

(4).   LEIDING, A. Doença de Alzheimer: A (uma) História. 1985. disponível no Link

(5).   SMITH, M, A. Doença de Alzheimer. Braz. J. Psychiatry 21 (suppl 2) • Out 1999. disponível no link.