Como qualquer outro ser vivo, o homem sempre foi guiado pela necessidade de suprir seus meios de sobrevivência. Toda a trajetória evolutiva social, da mesma forma, segue estas normas. E o processo tecnológico aparece como ferramenta para este fim.
Quando éramos nômades, radicávamos moradia temporária onde existisse alimento. Após utilizarmos todos os recursos locais, partíamos para outro local o qual pudesse alojar e fornecer subsistência à comunidade. Essa constante migração nos levou a encontrar pelo caminho outras comunidades, mais ou menos evoluídas, com ferramentas diferentes, métodos mais ou menos eficazes. Os contatos foram disseminando as práticas mais eficazes, conhecimentos desenvolvidos e métodos aprimorados, e permitiram a constante evolução da espécie.
O encontro de comunidades de subespécies diferentes, inclusive, permitiu que compartilhássemos genes, aumentando ainda mais nossa variabilidade genética, conferindo ainda mais poder de adaptação ao Homo primitivo. E, logicamente, culturas, práticas e costumes mais evoluídos, ou simplesmente mais eficientes, foram se disseminando e servindo de alavanca para a evolução social e tecnológica dessas comunidades.
O entendimento do movimento dos rebanhos de animais permitiu que pudéssemos obter um alimento muito energético, de forma mais frequente e de obtenção mais facilitada. O domínio mesmo que primitivo da agricultura tornou as práticas de produção de alimento estacionais, e nos deu mais tempo para desenvolvermos outras habilidades, além de ter proporcionado a produção de excedente de alimento, e iniciado um sistema de trocas, que nos levaria a necessidade da criação de uma moeda, e posteriormente todo um sistema econômico.
A evolução do sistema econômico permitiu que ocorressem acumuladores de moeda, e esse acúmulo, além de poder monetário, evoluiu a poder político, o que levou à necessidade da criação de instituições de mediação e controle da sociedade.
Esse resumo despretensioso e simplista antecede a apresentação do ponto de vista de que a evolução social e tecnológica tem como fagulha inicial o suprimento das necessidades de subsistência.
E o foco da nossa discussão segue esta observação também.
O melhoramento animal remonta às primeiras práticas de domesticação de animais. Os primeiros cães selvagens foram provavelmente domesticados por aceitarem mais o contato com humanos do que outros. Assim, permaneceram junto aos homens aqueles que se prestavam mais para ser domesticados. Na domesticação de rebanhos destinados a alimentação, provavelmente este raciocínio também prevaleceu. Posteriormente, dentre aqueles animais já domesticados, se procurava um biótipo determinado mais desejado que outro, para que se pudesse produzir o produto que atendesse à necessidade do grupo.
No caso dos bovinos, a separação geográfica de rebanhos sofreu seleção natural por milhares de anos. Isso fez com que, mesmo sendo provenientes de um ancestral comum, o Auroque (Bos primigenius), tenhamos hoje subespécies tão distintas como os bovinos Taurinos (Bos taurus taurus) e Zebuínos (Bos taurus indicus). Essas subespécies é que chegaram aos nossos dias, e elas são o foco do trabalho dos melhoristas.
Os Taurinos, originalmente, ocupavam inclusive a Europa e ali sofreram os primeiros processos de seleção e melhoramento voltados a obter animais mais especializados em determinadas funções. Animais identificados nos rebanhos com maior capacidade de trabalho, por exemplo, eram selecionados e acasalados com animais de características da mesma forma eficientes. A observação e correlação fenotípica de conformação e desempenho propiciou que animais destinados a uma função fossem isolados de outros, originando rebanhos de animais muito semelhantes que posteriormente formaram as raças.
Durante a Revolução Industrial, na Inglaterra do século XVIII, com o desenvolvimento de uma sociedade urbana que não produzia comida, mas consumia, ocorreu uma grande demanda por alimentos. Assim, entre tantas outras especializações de ofício que ocorreram, os produtores de alimentos precisaram se especializar ainda mais na produção. Como já se sabia que nos próximos anos teríamos uma explosão demográfica, e não seria possível alimentar a população mundial só com beterrabas, a procura por animais que ganhassem peso rapidamente e apresentassem um grau de terminação adequado para o abate levou à seleção de animais com grande precocidade de terminação. Essa seleção, ainda baseada na observação de caraterísticas fenotípicas para correlacionar e selecionar desempenho, proporcionou o desenvolvimento de raças com baixa necessidade de energia de manutenção das suas funções vitais. Dessa forma, ao obter energia da alimentação, esses animais direcionam mais energia para a deposição de carne e gordura, e chegam ao peso de abate antes e com uma quantidade de alimento consumido menor.
Da mesma forma se selecionou, ao redor do mundo, animais para as mais diversas necessidades e adaptados aos mais diversos ambientes. Hoje temos animais especializados na produção de carne, leite e trabalho que podem desempenhar suas funções nas mais diversas latitudes. Mas o processo de seleção segue, e hoje a busca é por animais que atendam as demandas, inclusive ecológicas, de maneira mais eficiente, com um custo reduzido e com reduzida agressão ao ambiente em que está inserido.
A sistematização da observação e medição de desempenho identificou linhagens e famílias de animais superiores, possibilitou um real melhoramento dos rebanhos. Associações de raças criaram programas para avaliação de desempenho registrados em bancos de dados que permitem que a estatística e a matemática apontem tendências de desempenho, e possamos predizer o desempenho produtivo das progênies dos animais avaliados, retirando o fator ambiental e isolando o ganho genético esperado na próxima geração, fornecendo a Diferença Esperada na Progênie (DEP) para diversas características de interesse econômico. A tradução de formas anatômicas em matrizes matemáticas foi uma grande revolução no processo de melhoramento. A divulgação dessas análises, atrelada à disponibilidade de material genético congelado dos animais superiores, permitiu que o DNA de animais comprovadamente melhoradores fosse disseminado, algo como uma popularização da qualidade genética.
A decodificação do genoma bovino em 2009, por um consórcio de 300 cientistas de 25 países, trouxe a era da genômica ao setor produtivo. O mercado já disponibiliza uma quantidade de marcadores moleculares apreciável, sendo possível a identificação da presença de genes responsáveis pela apresentação do fenótipo desejado, antes mesmo do nascimento do animal, sendo possível inclusive realizar a análise a partir de uma amostra de DNA embrionário.
Todos esses processos nos possibilitam buscar a melhor eficiência de um organismo altamente especializado em transformar um substrato pouco digestível em um alimento de alto valor nutricional. É o que os bovinos fazem. A celulose é um composto que na natureza tem uma decomposição relativamente dificultada. Assim como o DeLorean, do Dr. Emmett Brown – “De Volta para o Futuro”-, que transformava lixo em combustível, esses animais, com o auxílio de bactérias comensais, fazem a degradação da celulose presente nas células vegetais da sua dieta e transformam em proteína de alto valor nutricional, presente na dieta da maioria da população mundial. Nesse processo de fermentação da celulose em um ambiente anaeróbico, como é o interior do rúmen do animal, um dos resíduos liberados ao ambiente é o metano, que é um gás que colabora potencialmente para o efeito estufa.
Apesar de muita informação desencontrada sobre o potencial de liberação de metano dos rebanhos veiculada em meios de comunicação carregados de algum tipo de viés, é inegável que os ruminantes liberam continuamente metano na atmosfera.
Claro que a problemática é bem maior e envolve desde práticas de destruição de florestas para implantação de pecuária até o desrespeito a conceitos de bem estar animal em instalações que agridem a saúde dos bovinos. Porém acredito que a luta não deve ser contra uma atividade produtiva, que ao longo da história permitiu a sobrevivência da nossa espécie em tempos de alimentação escassa, mas para banir práticas que atuam contra o que entendemos como ecologicamente e moralmente saudável.
Diversas instituições de pesquisa, como a EMBRAPA, trabalham com o intuito de melhorar produção, reduzir resíduos e fomentar a criação de bovinos em um ambiente com baixa emissão de carbono, alguns projetos inclusive com saldo positivo de carbono – diferença entre carbono fixado no ambiente e carbono liberado na atmosfera. O melhoramento animal tem as ferramentas para buscar esse animal mais eficiente, e nos aponta em que ambientes estes animais efetivamente podem desenvolver sua função.
Assim como a destinação correta de resíduos industriais e eletrônicos, a produção primária precisa de adequação às demandas ecológicas. A possibilidade de uma produção bovina sustentável é vislumbrada e, como várias outras demandas, precisaria de apoio e boa vontade política para coibir excessos, adequar criatórios e criar mecanismos de incentivo a quem produza uma carne ecologicamente sustentável.
Hoje nossa demanda de subsistência não é somente o alimento, mas um alimento que não desequilibre e modifique ainda mais o ambiente que vivemos na sua produção. E felizmente a ciência já se ocupa disso há algum tempo.
Para saber mais:
https://www.embrapa.br/tema-integracao-lavoura-pecuaria-floresta-ilpf
Igor Saldanha de Freitas. Entusiasta da ciência aplicada aos animais de produção, em especial bovinos. Amante das carnes, queijos e bebidas fermentadas. Busca a iluminação nos manuscritos de Darwin.