Eu sou um romântico. Sempre gostei de poesia e músicas sobre sentimentos e sensações.
Quando mais novo, buscava poesias e músicas que narrassem histórias e sentimentos profundos. Foi aí que conheci Vinícius de Moraes e seus diversos parceiros musicais, dentre esses Toquinho, Tom Jobim, Miúcha, Elis Regina, Baden Powell, Chico Buarque, Caetano Veloso, dentre tantos outros. Aliás, Vinícius fez letras e parcerias com a maioria dos nomes da música popular brasileira da época.
As poesias musicadas do Vinícius de Moraes me apaixonaram em um instante. Canções como Que Maravilha, Escravo da Alegria, Eu Sei Que Vou Te Amar, Minha Namorada, O Filho Que Eu Quero Ter e Valsa Para Uma Menininha sempre me deixaram sonhando com a vida de um casamento feliz e com a presença de uma criança na minha vida.
Hoje estava ouvindo de novo Valsa Para Uma Menininha e, embora ainda me emocione com o sentimento transmitido, algo mudou. Algo importante, que só prestando atenção na letra da música eu vejo o quão perigoso o sentimento pode ser.
Possessão Disfarçada de Carinho
“Menininha do meu coração, eu só quero você a três palmos do chão”. Assim começam os primeiros versos da música Valsa Para Uma Menininha.
A música, cuja letra é de Vinícius de Moraes, conforme um relato que consegui achar na internet, numa matéria do Valor Econômico (fechada para assinantes no link), não foi criada pelo poeta para uma de suas filhas, mas sim como uma homenagem para a filha da jornalista argentina Helena Goñi, a então menina chamada Camila Goñi, em 1975.
A história destilada na letra da música segue para analisar a menina, criança pequena, como alguém intrinsecamente ingênua, indefesa, passível de compadecimento. O interlocutor deseja que a menina fique “sem crescer”, pois, como diz, “o mundo é ruim, e você vai sofrer de repente uma desilusão, porque a vida é somente o seu bicho-papão”.
Em contraponto, temos O Filho Que Eu Quero Ter, de melodia de Toquinho e letra de Vinícius, feita em homenagem ao próprio Toquinho diante da confissão desse sobre a intenção de ter um filho. Nessa música, se retrata três etapas da vida do filho, chorando no berço, as brincadeiras e os carinhos da infância e, por fim, o último beijo do filho, já barbado, no pai, em seu leito de morte.
O que vemos é uma diferença essencial desse carinho parental. Enquanto o homem deve crescer e enfrentar a vida, a mulher ingênua, indefesa, deve se abster de crescer e viver a vida, de forma a servir o adulto, no caso, claramente o pai (embora a letra da música seja ambígua sobre o gênero do interlocutor), de carinhos, e se guiar por sua visão de mundo, evitando viver a vida, crescer e, com isso, sofrer as dificuldades da maturidade.
Esse sentimento, apesar de parecer indulgente, em uma primeira visão, me parece refletir uma visão um tanto autoritária, manipuladora, controladora da vida e das escolhas da mulher, ainda criança, moldando-a aos interesses específicos do pai.
Os tempos atuais deixam evidente que há uma clara mudança de postura que vem sendo adotada por pais da geração Y (Millennials) e seguintes.
Existem poucos estudos que tratam do comportamento familiar do homem e sobre paternidade, como foi constatado em um trabalho publicado em 2014 (Vieira, M. L., Bossardi, C. N., Gomes, L. B., Bolze, S. D. A., Crepaldi, M. A., Piccinini, C. A.. Paternidade no Brasil: revisão sistemática de artigos empíricos. Arq. bras. psicol. [online]. 2014. Disponível em: <link>). Apesar disso, o que foi possível se constatar é que, a partir dos anos 2000, começou a se observar uma mudança nos padrões de paternidade, migrando de uma posição do pai como um provedor distante para um pai mais presente, participativo no desenvolvimento moral e emocional dos filhos, em parte diante da maior participação das mulheres na sociedade e no mercado de trabalho.
É de conhecimento comum, todavia, que o papel do homem na sociedade sempre foi observado diante de um machismo estrutural que conserva certas obrigações do homem em afirmar sua virilidade, tanto como procriador como protetor.
Em parte, proteger a família e os filhos parece algo nobre. Mas todo sentimento e ação pode ter duas funções. Uma faca de dois gumes, que pode cortar qualquer dos lados para qual se inclina.
Como pai de uma criança autista, e sendo eu mesmo autista (para quem quiser saber mais, leia meu artigo que falo sobre isso, em link), eu me vejo, por vezes, batalhando muito comigo mesmo nessa função.
Em um primeiro momento, eu me sinto na obrigação de respeitar as necessidades e escolhas da minha filha, mas, em outro, eu me sinto na obrigação, como pai, de intervir nas escolhas dela, de guiar ela para certos caminhos.
Claro, isso é um ajuste fino e uma batalha difícil de se dar uma resposta certa que valha para qualquer situação. Afinal, é necessário respeitar e compreender os limites de conhecimento e de cognição da criança, de forma a intervir somente quando necessário. No meu caso, com ainda mais cuidado, já que trato de uma criança cujos comprometimentos decorrentes do autismo fazem com que ela tenha dificuldades em entender nuances abstratas das informações que recebe.
Mas ninguém deve ser pai ou mãe buscando uma vida fácil. É uma responsabilidade enorme, mas cujos resultados são incríveis, quando feita com amor.
Eu cometi erros, e cometo erros frequentemente. A exemplo, sem qualquer má intenção, me peguei intervindo na escolha da minha filha ao nome que queria dar a uma peixinha beta de estimação que ela ganhou, que me pareceu descabido. Imediatamente me redimi, me retratei e aceitei a escolha dela.
Veja bem, não estou dizendo que devemos dar liberdade plena e sem guias às crianças, e aceitar qualquer decisão delas, mesmo quando destrutivas. Mas é apenas dando liberdade para uma criança tomar suas próprias decisões, e arcar com suas próprias consequências, que sinto que podemos criar uma pessoa mais apta a ser um adulto completo, experienciado e capaz de avaliar as causas e consequências de seus atos.
A meu ver, a principal intervenção válida que busco fazer é a pautada no mesmo motivo pelo qual sou um divulgador científico. Eu apresento fatos, explico a situação e as possíveis consequências como, por exemplo, por que parar de brincar por uns minutos para passar protetor solar é importante, por mais que seja chato esperar. Não é apenas “porque eu mandei”. E esse respeito eu sinto no retorno de uma criança calma, carinhosa e que entende e respeita seu pai e sua mãe por admiração, e não por medo ou subserviência.
Afinal, eu quero que minha filha seja uma pessoa forte para que, no futuro, não se permita sofrer qualquer tipo de violência em sua vida pessoal ou profissional. E somente reconhecendo a si mesma como valorosa e importante ela será capaz disso.
A Posse da Mulher Adulta
Meu poeta, eu hoje estou contente
Todo mundo de repente
Ficou lindo, ficou lindoEu hoje estou me rindo
Nem eu mesma sei de quê
Porque eu recebi
Uma cartinhazinha de você
Assim começa a letra de Minha Namorada, outra música de Vinícius de Moraes.
A música, segundo artigo publicado no Correio Braziliense (em link), foi composta pelo poeta dedicada a quem viria a ser sua quinta esposa, Nelita de Abreu, então estudante de pedagogia.
Cabe aqui dizer que de amores a vida de Vinícius foi bastante cheia, contando 9 casamentos em sua vida toda. Nelita foi amante de Vinícius que, à época, era casado com Maria Lúcia Proença. A própria Nelita, aliás, namorava, à época, com um outro rapaz. Aqui, peço licença para fazer citar um trecho do artigo do Correio Braziliense:
Aos 20 anos, estudante de pedagogia, a moça namorava firme outro rapaz, também com aspirações a poeta. Mas Vinicius acabou se encantando por ela, e os dois tornaram-se amantes. O namorado oficial descobriu o caso proibido, e Vinicius, com o respaldo dos amigos Carlos Lyra e Tom Jobim, encontrou uma solução bastante inusitada: carregou a moça rumo a Roma e Paris. A passagem está no livro O poeta da paixão, de José Castello, de onde a foto acima foi retirada.
Por telefone, Carlos Lyra detalha: “Fui eu quem propus a ele. ‘Você não é um poeta? Por que não rapta ela?’ Ele ficou feliz com a ideia, ria de se acabar”, conta o violonista. Vinicius levou a sério a sugestão. (…) Quando chegou ao destino, Nelita foi surpreendida por um telegrama do pai, desejando felicidades ao novo casal. Retornaram da Europa em 1964, e se separaram em 1968.
Como visto da matéria, Vinícius tinha sobre Nelita uma ideia de um amor possessivo, onde ele se sentiu confortável em fazer um “rapto” da garota de 20 anos, quando Vinícius já contava seus 50. E, não apenas, o pai da garota felicitava o casal e validava a atitude.
Claro, que isso não se estranha quando se observa a letra da música escrita, que já previa essa submissão da mulher aos caprichos do homem. Vamos ler mais um trecho:
Se você quer ser minha namorada
Ah, que linda namorada
Você poderia ser
Se quiser ser somente minha
(…)
Você tem que vir comigo em meu caminho
E talvez o meu caminho seja triste pra você
Os seus olhos têm que ser só dos meus olhos
E os seus braços o meu ninho no silêncio de depois
Essa segunda parte da música, no que se refere à obrigação da mulher em seguir os caminhos ditados pelo homem, ainda que tristes, sempre me incomodou muito. Mas eu relevei à época, abrindo uma licença poética ao sentimento forte do interlocutor, uma paixão que queima na vontade, no interesse explosivo pela pessoa amada.
Hoje não consigo mais relevar isso.
Mesmo numa visão mais antiquada de mundo, é bastante degradante a posse de outra pessoa, que dirá da pessoa amada. A necessidade de respeito à liberdade e à vontade da pessoa ao lado é um mínimo a que me parece razoável pautar qualquer relacionamento.
Movimentos que buscam a normalização da busca do consentimento e a paridade no relacionamento são vistos como “lacração” atualmente por visão reacionária das políticas sociais, normalmente associada à ideologia ultraconservadora. Lembremos da infame matéria “Marcela Temer: bela, recatada e ‘do lar’”, publicada pela revista Veja (em link), a qual, felizmente, recebeu forte reação negativa de uma grande parte da sociedade e dos veículos de mídia (a exemplo, matéria da Carta Capital, em link).
Contudo, é fato que essa postura possessiva ainda é presente. E se faz necessário a nós, membros dessa atual geração, reconhecermos os problemas do passado e avaliarmos os nossos privilégios, especialmente os homens. Afinal, não é incomum a qualquer de nós, inclusive você, meu caro leitor, conhecer histórias dentro das nossas famílias onde a postura agressiva e possessiva dos homens tornou nossas vidas piores ou, ao menos, menos felizes.
Cabe dizer, devemos questionar, até mesmo, a ideia do “felizes para sempre” e do casamento como uma obrigação perpétua. Por que não “eterno enquanto dure” e, assim, respeitarmos o momento, a amizade e o companheirismo de quem está do nosso lado? E, quem sabe, podemos não ter um casamento, mas uma amizade que possa perdurar para todo o resto das nossas vidas.
Para quem quiser saber mais, não apenas sobre não monogamia como, também, sobre a naturalidade do fim dos relacionamentos, recomendo ouvirem dois episódios divulgados pelo podcast Escafandro, do Tomás Chiaverini, que podem ser encontrados no Spotify (link1 e link2).
Conclusão
Primeiro, retomo a falar sobre Vinícius de Moraes.
Simplesmente dizer que Vinícius era “uma pessoa do seu tempo” eu acredito que seja uma visão bastante simplista e rasa da situação.
Ele era alguém que, sim, viveu em um contexto histórico e social completamente diferente, em que o machismo não era sequer nomeado, que dizer criticado, em que homens viam, como exemplo de personalidade a ser seguida, um James Bond do Sean Connery, em “007 contra Goldfinger”, onde o agente secreto, másculo, expulsa sua parceira da conversa com um empurrão e um tapa nas nádegas dizendo que era hora de “papo de homem”. Mas isso não exime de críticas sua vida e sua obra.
Vinícius teve nove casamentos curtos e muitos relacionamentos extraconjugais. Era um homem acostumado com vícios como bebida e fumo, o que, com certeza, deve ter contribuído para sua morte um tanto repentina, aos 66 anos, após passar mal em casa enquanto tomava banho.
Mas a sua obra subsiste, e podemos aprender com ela, tanto em seus pontos fortes como nos fracos.
Vinícius me inspirou a escrever. E, nessa inspiração, escrevi muitas poesias. Esse hábito me ajudou a crescer e ser mais sensível aos meus sentimentos, e me fez desenvolver minha linguagem escrita, que tanto uso como advogado ou aqui, em meus textos.
Mesmo em suas falhas, Vinícius me serve. Não fosse pela música dele, não estaria aqui trazendo esse texto, que tanto acho valioso para discutirmos o passado e os passos que tomaremos no futuro.
Então, acredito que existem alguns limites em que podemos sim continuar a apreciar as obras do passado pelo que elas são, mesmo com seus defeitos e erros que, com nossos olhos renovados, podemos perceber. É como digo quando me perguntam sobre se me arrependo sobre algo do passado. Eu digo que não, pois foram meus erros que me ensinaram a crescer e ser quem eu sou hoje.
E sobre mim…
A maturidade me trouxe muitas coisas para pensar, seja num aspecto pessoal, moral, intelectual e de relacionamentos. O primeiro passo, a meu ver, foi assumir meus privilégios, minhas falhas e pontos de melhoria.
Eu continuo me reconhecendo como um romântico. E acho que dificilmente deixarei de ser. Eu continuo me emocionando com filmes e músicas. Continuo sonhador, idealista e um bom tanto ingênuo na minha vida como um todo. Eu tenho muito a aprender.
Mas, claramente, esse trabalho ainda é longo, e espera uma mudança não apenas íntima minha, mas social.
Segundo um levantamento realizado por Marcello Alves da Silva Aguilera, em sua dissertação de mestrado intitulada “Paternidades e masculinidades: um estudo de representações sociais com homens”, junto à Universidade Federal Do Espírito Santo, de 2023 (em link), embora o tema da masculinidade e sua participação na paternidade e na vida conjugal seja relativamente escasso, com um foco nos estudos da vida do homem voltado quase que exclusivamente para a observação clínica e hospitalar, desde 2000 observou-se um aumento de análise do tema, no qual se constatou um interesse positivo dos homens em serem mais participativos na vida familiar e conjugal, inclusive com divisões das tarefas domésticas e participação da criação dos filhos, até mesmo desafiando estereótipos de gênero.
Mesmo com o avanço de ideologias reacionárias, eu acredito que estamos, em um aspecto social, melhorando nesse sentido. E, embora possa ser apenas uma evidência anedótica, vejo como hoje homens parecem mais felizes expressando de forma clara seus sentimentos, seja permitindo trocar carinho com seus amigos e familiares sem questionamentos de sexualidade, seja se permitindo chorar diante da tristeza ou por simples emoção ao ver um filme no cinema.
Eu espero, firmemente, que essa sensibilidade permita a nós homens melhorarmos em nossa empatia para com nossas mulheres, mães, esposas, filhas e amigas, para que possamos reconhecer o valor dessas pessoas incríveis nas nossas vidas. E que passemos a vê-las, não como nossas propriedades, não como marionetes das nossas vontades e desejos, mas como seres humanos, igualmente valorosos e importantes.
E eu espero que essa mensagem que eu mesmo escrevi fique gravada no meu ser, para que eu encontre os caminhos para melhorar diante dos tantos desafios e falhas que ainda tenho que superar.
(Imagem de capa. SPINASSÉ, Raul. Estátua de Vinícius no bairro de Itapuã. Publicada no jornal A TARDE. Disponível em <https://atarde.com.br/muito/lembrancas-de-vinicius-de-moraes-em-itapua-1245622>)