Recentemente conclui, em meu mestrado, uma pesquisa sobre shows musicais conduzidos dentro de plataformas online de vídeo game. Esse fenômeno já vinha se formando há anos, com o surgimento de cenas musicais dentro do Second Life e do Minecraft, por exemplo.
E, como era de se esperar, ganhou muita força durante pandemia de Covid-19, levando a eventos absolutamente massivos, como os shows de Ariana Grande no Fortnite (2021) e o de Lil Nas X no Roblox (2020), que atraíram 78 e 33 milhões de espectadores simultâneos, respectivamente.
E muito há para se destrinchar sobre a natureza e o impacto desses concertos virtuais. Mas o que talvez me chame mais a atenção é o fato de que eles desafiam veementemente a compreensão comum sobre o que é um evento “ao vivo”.
Para desenvolver este ponto, me volto a alguns autores anglófonos (como Philip Auslander e Paul Sanden) que trabalham com um termo extremamente útil para a condução desse debate: “liveness”.
“Liveness” é um substantivo, é a qualidade que torna um evento ou situação passível de ser descrito como “live” ou “ao vivo”: algo que é belo tem beleza, algo que é ao vivo tem “liveness”.
Em sua superfície, o termo é até simples de se compreender, mas faço duas pequenas ressalvas. Primeiro: como pesquisador brasileiro do assunto me ressinto do quão difícil é traduzir essa palavra, a despeito de sua simplicidade. “Vivacidade”? Não encapsula muito bem o sentido. “Sincronicidade”? Funciona um pouco melhor, mas não tenho certeza. Ainda pretendo mergulhar nessa tarefa de tradução em algum ponto.
A segunda ressalva é que, apesar de sua aparente simplicidade, esse termo é repleto de camadas, e extremamente contingente ao contexto e percepção daquele que experiencia a “liveness”.
Em seu livro Liveness: Performance In A Mediatized Culture (2008), Philip Auslander debate amplamente a noção de que o que exatamente é liveness varia de acordo com cada época e situação geográfica. Em um texto intitulado Rethinking Liveness In The Digital Age (2019), Paul Sanden vai ainda além nessa linha de raciocínio, definindo liveness como uma categoria perceptual: um evento é ao vivo quando o espectador o percebe como ao vivo, e não pura e simplesmente por suas características inatas.
Para se tentar dar conta dessa complexidade, tradicionalmente se define algumas formas principais de liveness, das quais as mais tradicionalmente compreendidas são a temporal e a espacial. Quando você assiste a um jogo de futebol ao vivo pela TV, aquilo para você tem liveness temporal, mas não espacial: você está vendo algo em tempo real, que no entanto talvez esteja ocorrendo a quilômetros de distância. Quando você vai a uma casa de shows e fica cara a cara com o artista conforme ele canta, você experiencia liveness temporal e espacial.
E é justamente esse o ponto que torna a recente onda de shows in-game um fenômeno tão interessante a essa discussão. Na maioria esmagadora deles, a música é pré-gravada e os avatares dos artistas são pré-programados. Frequentemente, não há nenhuma indicação de que o artista esteja participando daquela experiência em tempo real com os espectadores-jogadores. Ou seja, a relação artista-espectador é destituída de qualquer forma tradicional de liveness.
Poderíamos facilmente argumentar que uma livestream na Twitch ou YouTube tem uma carga óbvia de liveness temporal ao menos, o que não parece ocorrer aqui. E, no entanto, percebi em meu estudo que, mesmo cientes disso, aqueles que engajam com estes eventos virtuais não parecem ter um problema em trata-los como shows ou concertos únicos. Voltando às reflexões de Auslander e Sanden, isso indica que esse público percebe liveness nesses eventos, a despeito de suas peculiaridades.
A questão que emerge, então, é: de onde possivelmente estaria vindo a liveness, em uma situação em que a interação entre artista e espectador tende a ser absolutamente roteirizada e livre de espontaneidade?
A resposta que parece emergir naturalmente a isso é: das interações entre espectadores. Uma característica comum à maioria dos concertos in-game (e que os aproxima de eventos fora do mundo virtual) é a possibilidade de que espectadores customizem seus avatares e interajam uns com os outros por meio deles, fazendo-os pular, correr e até mesmo dançar. Em meu estudo, conversei com diversos frequentadores desse tipo de evento, que atribuíram a essa característica inata à maioria dos shows in-game uma camada única de interatividade, por vezes inclusive capaz de elevar o potencial inclusivo desses eventos. Esse parece ser o real potencial desse tipo de situação virtual.
O interessante é que os autores que tratam do assunto “liveness” frequentemente se atêm unicamente às interações entre o artista e o espectador, ou entre o espetáculo e o espectador, como se essa fosse a única fonte possível de liveness. As discussões que conectam esse conceito à interação direta entre espectadores parecem estar ainda bastante incipientes e carentes de atenção. E a existência de um fenômeno inusitado como shows musicais dentro de um vídeo game parecem ter jogado uma nova luz sobre elas.
Fontes
Liveness: Performance In A Mediatized Culture (Philip Auslander, 2008)
Rethinking Liveness In The Digital Age (Paul Sanden, 2019)
Articulations of Inclusivity In In-game Concerts: A Multi-case Study (Victor Camilo, 2023)