1958 é tido como um dos anos mais emblemáticos para a história da Música Popular Brasileira. Especificamente em maio daquele ano, foi lançado o álbum Canção do Amor Demais, da cantora Elizete Cardoso. Talvez esses nomes não lhe despertem nenhuma familiaridade, mas eu tenho certeza que isso muda de figura se eu lhe disser que o disco contou com composições de nomes como Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, além do violão de um certo João Gilberto, em faixas como Chega de Saudade.
Nascia ali o que se convencionou chamar de Bossa Nova.
Chega de Saudade. Elizete Cardoso, 1958.
E pode parecer estranho ao leitor que um texto que tem a palavra “transgressão” no título seja aberto por um parágrafo sobre o surgimento da Bossa Nova. Afinal, o movimento que dominou a cultura brasileira durante os anos de Juscelino Kubitschek é tido por muitos hoje em dia como parado, maçante, elitista, sonolento. Trocando em miúdos: música de velho. Um dia, no entanto, a Bossa Nova já foi propriamente chamada de nova. E houve excelentes motivos para isso.
A Bossa Nova não só mesclou o Samba brasileiro à linguagem harmônica, melódica e às experimentações do Jazz norte-americano (mérito de seus compositores). As novidades que trouxe para a forma de se interpretar a música, sintetizadas na figura de João Gilberto, talvez sejam suas contribuições mais revolucionárias para a nossa história.
Tudo começa com o violão, que, nas mãos de João Gilberto, ganha linhas rítmicas mais joviais e dinâmicas, como se estivesse buscando replicar a sonoridade ágil e leve dos tamborins. E pouco mais tarde, em 1959, quando Gilberto lança a sua própria interpretação de Chega de Saudade, ele inova também na forma de se cantar. A voz na música popular, até então ainda muito empostada e pomposa, fazendo reflexo à cultura do canto erudito, agora se aproxima radicalmente da oralidade. O canto perde volume, mas ganha intimidade com o ouvinte.
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Chega de Saudade. João Gilberto, 1959.
Com esse conjunto de novidades, a Bossa Nova abre novos paradigmas na forma de se fazer música no Brasil. E, sutil ou não, “música de velho” ou não, o fato é que as experimentações de João Gilberto, Tom Jobim e companhia ganham uma ascendência fundamental sobre a geração seguinte de compositores e intérpretes da música brasileira.
Avancemos quase uma década.
O ano é 1967. A ditadura militar domina o Brasil a todo vapor, e a cultura musical popular é em grande parte balizada pelos Festivais da Canção, organizados e televisionados pela TV Record. Há uma espécie de rixa cultural no ar.
De um lado, um grupo que adquire forte apelo comercial entre os jovens, ao importar muito das composições e da linguagem cultural do Rock britânico e norte-americano, tendo nos Beatles a sua pedra fundamental. É a famigerada Jovem Guarda, hoje sintetizada no trio Wanderléa, Erasmo Carlos e Roberto Carlos.
Quero Que Vá Tudo Pro Inferno. Roberto Carlos, 1965.
Do outro lado, uma série de artistas que, já aglutinados sob o nome Música Popular Brasileira (MPB), surgido oficialmente pouco antes, colocam-se como sucessores naturais da primeira geração da Bossa Nova, defendendo uma cultura musical nacionalista e altamente politizada. Entre eles: Geraldo Vandré, Edu Lobo, Elis Regina e Chico Buarque.
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Ventania. Geraldo Vandré, 1967.
Perceba a dicotomia: dado o alinhamento do regime militar brasileiro ao bloco ocidental da então vigente Guerra Fria, cria-se em parcela da elite cultural a ideia de que tudo o que é importado dos Estados Unidos ou Inglaterra tem caráter imperialista. O que leva a uma demonização do Rock N’Roll da Jovem Guarda, e a uma necessidade de afirmar o caráter de protecionismo cultural da MPB, com direito até a passeatas contra a guitarra elétrica.
E eis que, em meio a esse cenário de polarização, surge quem escolha não escolher lados. A edição de 1967 do Festival da Canção torna-se histórica pela participação de Caetano Veloso e de Gilberto Gil, que apresentam, respectivamente, Alegria, Alegria e Domingo No Parque. Ambas canções com claros elementos de brasilidade, e que à época talvez passassem como composições normais para jovens que já vinham há anos construindo seus nomes na MPB. Não fossem seus arranjos fortemente calcados em… guitarras elétricas.
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Alegria, Alegria. Caetano Veloso, 1967.
O Festival de 67 torna-se assim, o marco inicial da Tropicália, movimento cultural de absoluta transgressão, encabeçado pelos baianos, e que geraria ainda muita controvérsia e reações negativas, ao admitir a mescla de elementos musicais brasileiros e estrangeiros a céu aberto. Pode-se dizer com tranquilidade que sua importância ecoa até os dias de hoje.
O curioso nisso tudo é que, embora as inspirações dos tropicalistas originais tenham passado, por exemplo, pelos Beatles de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, eles se colocavam como discípulos de ninguém menos que João Gilberto. O mesmo João Gilberto que havia, anos antes dado o pontapé inicial às sutilíssimas revoluções da Bossa Nova e que era tido como referência pela turma mais conservadora e nacionalista da MPB.
Ora, como seria possível que as mesmas ações de um mesmo indivíduo inspirassem grupos distintos a ponto de se tornarem quase antagônicos?
O fato aqui é que, muito embora a importância histórica de alguém como João Gilberto seja ratificada para além de qualquer dúvida por sua ampla e diversa casta de seguidores, as dicotomias e divergências da geração seguinte a ele também deixam claro que um mesmo legado pode ser interpretado de formas radicalmente diferentes.
No final dos anos 50, João Gilberto e seus pares transgrediram, incorporando elementos estrangeiros e propondo novas formas de pensar algo que já existia. Ao transgredir, criaram as bases para algo que poderia ser, então, considerado novo. No entanto, também abriram portas para que mais e mais novidades fossem gestadas daquele ponto em diante.
Para parte dos jovens músicos inspirados por João Gilberto, honrar e seguir o seu legado significou uma espécie de cristalização da linguagem proposta por ele, transformando-a em um conjunto de padrões a serem seguidos. Para outros tantos, esses barulhentos e subversivos, honrar o legado do mentor significou exatamente continuar transgredindo, continuar buscando novidades, a ponto de por vezes se afastarem radicalmente da linguagem musical que os inspirou.
E quem haveria de apontar certos e errados nessa história?
O fato é que esse pequeno conto sobre a Bossa Nova, a MPB e a Tropicália, com participação especial da Jovem Guarda, reflete muito da história da música popular nas Américas. Miscigenação, transgressão e experimentações fazem parte de nosso caldo primordial, e é curioso notar como por vezes um novo experimento ganha status de padrão definitivo, apenas para se tornar base de novas experimentações anos depois.
Aconteceu com Pixinguinha, com Louis Armstrong, com Charlie Parker, com Jobim e João Gilberto. Aconteceu com Caetano e Gil, e com Chico Science. E seguirá acontecendo, pois é da nossa natureza.