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A “revolução militar” do século XVII tem como ponto de partida a fundação daquela que foi considerada a primeira academia militar da Europa, nos Países Baixos. Encabeçada por Maurício de Nassau, seus manuais foram símbolo de uma racionalidade militar que originaria a forma moderna de combater, com grandes exércitos de infantaria treinados para receber cargas de cavalaria com armas de fogo usadas em sincronia, além de estarem aptos a realizar cercos contra a nova arquitetura defensiva que se apresentava.
O que os holandeses teorizaram foi levado a cabo, em uma escala superior, por Gustavo Adolfo, da Suécia, o Leão do Norte. O soberano herdara um dos países mais poderosos da Europa e o tornara ainda mais poderoso com a criação de um novo exército.
Antes de Gustavo, os exércitos mais modernos tinham como modelo o espanhol. Eles eram formados por blocos maciços de lanceiros (piqueiros) que protegiam os mosqueteiros por todos os lados. A artilharia consistia de canhões extremamente pesados que, uma vez colocados em algum lugar, normalmente lá ficavam. A cavalaria usava armadura laminada até os joelhos e valia-se mais de pistolas do que de lanças e espadas.
De acordo com Gunther Rothenberg, Gustavo começou fazendo uma reforma completa nos métodos de recrutamento:
Foi implantado um sistema de cantões, com o clero local mantendo os registros dos homens com idades entre 18 e 40 anos. O tempo de serviço foi fixado em vinte anos, mas normalmente apenas um homem em cada grupo de dez era convocado […]. Os infantes não recebiam soldo enquanto estivessem no país, mas eram recompensados com doações de terrenos; os cavalarianos eram recrutados na nobreza e entre os fazendeiros mais abonados. […] O equipamento era adquirido com impostos pagos pelo resto da população. O sistema produziu um considerável exército nacional de serviço prolongado – o primeiro na Europa – que chegou a contar com quarenta mil homens. (ROTHENBERG, 2001, p. 75)
Com as alterações implementadas pelo monarca, o exército sueco continuava a dispor de lanceiros e mosqueteiros, mas as lanças eram menores e os mosquetes, mais leves. O importante é que as formações eram menores. Não havia aqueles quadros imensos e desajeitados de lanceiros. Havia várias razões pelas quais formações menores poderiam ter mais sucesso. Eles poderiam ser implantados mais facilmente na formação de combate, especialmente em terrenos acidentados.
Do ponto de vista tático, essas unidades estavam mais bem adaptadas às manobras no campo de batalha e também estavam em melhor posição para fornecer apoio mútuo, embora fossem mais fracas no caso de terem de enfrentar um choque de lanças. Gustavo Adolfo instituiu uma série de reformas que aumentaram bastante a eficácia das armas portáteis. Aliviou o peso do mosquete e simplificou seu processo de carregamento.
Muitos dos mosqueteiros usavam mosquetes com fecho de roda ou fecho bático, ancestral da espingarda de pederneira, em lugar da incômoda trava de mosquete que era o equipamento padrão em outros exércitos. Eles usavam cartuchos de papel, que tornavam o carregamento mais rápido. (WEIR, 2003, p. 344)
Em vez de mandar os homens atirarem e depois marcharem de volta, Gustavo os fez avançar dez passos, atirar e depois permanecer onde estavam e fazer a recarga. Em seguida, como um oficial escocês do exército de Gustavo explicou: ‘as outras fileiras avançam à frente deles e abriam fogo da mesma maneira, até que a tropa inteira estivesse descarregado, e então recomeçava como antes […] sempre avançando em direção ao inimigo, nunca voltando sem ter encontrado a morte ou a vitoria’ . (MORRIS, 2015, p. 214)
Por sua vez, Rothenberg informa de modo mais detalhado o emprego da infantaria:
Com dois esquadrões ou oito companhias, os regimentos de infantaria eram as unidades básicas táticas e administrativas, combinadas para o combate em brigadas de dois ou três regimentos. Cada regimento tinha cerca de oitocentos homens, com 94 mosqueteiros adicionais para missões em destacamentos. Normalmente desdobradas numa formação pouco profunda, de seis fileiras, tanto para os piqueiros quanto para os fuzileiros, as brigadas continuavam a avançar mesmo durante a contramarcha, com os piques – considerados armas ofensivas por Gustavo – contribuindo para o impacto final. À pequena distância, o fogo em rajadas da contramarcha era substituído por uma rajada mais forte, disparada simultaneamente por três fileiras de mosqueteiros emassados. (ROTHENBERG, 2001, p. 76)
Gustavo ainda notou que, para tirar o máximo proveito da saraivada da infantaria, era preciso reorganizar também o restante do exército. Segundo Henrique Carneiro, “os modernos recursos militares abrangiam também a indústria da guerra. A metalurgia, em especial na Suécia, obteve os melhores resultados, com destaque para a artilharia, o que fez do exército sueco um dos mais bem preparados militarmente”. (CARNEIRO, 2008, p. 181)
Aliás, a artilharia sueca era diferente de tudo que se tenha visto antes. As armas eram leves – algumas o suficiente para serem posicionadas manualmente. Elas eram colocadas em linha com a infantaria, e os artilheiros podiam movê-las para acompanhar os soldados. Disparavam cartuchos com chumbo e pólvora, sendo ainda mais rápidas que os mosquetes.
Além disso, Gustavo reduziu a miscelânea de canhões do séc. XVI a apenas três tipos, que disparavam projéteis de 1,4; 5,5 ou 11 quilos. A artilharia de campo deveria ser agora usada em massa, com baterias móveis engrossando a salva de tiros de mosquete da infantaria.
Na Batalha de Dirchau (8 de agosto de 1627), por exemplo, os suecos utilizaram canhões ultraleves de couro, disparando projéteis de quase 2 quilos. O orifício do canhão era feito de um tubo reforçado por anéis de ferro, preso com cordas de couro fervido. Essas peças, pesando pouco mais de 50 quilos, podiam ser transportadas por apenas dois cavalos, o que significava que poderiam fazer parte dos regimentos de infantaria (antes era comum algumas peça necessitarem de 32 animais para o seu deslocamento).
Mais tarde, cinco peças mais pesadas e com maior alcance seriam introduzidas no regimento. Essas armas eram menos propensas a esquentar do que as armas comuns e podiam ser disparadas mais rapidamente. Estima-se que, mesmo sem o mesmo poder de fogo, elas tiveram uma taxa de aproveitamento 50% maior que a dos comuns.
A adoção de peças móveis levou Gustavo Adolfo a classificá-las em três categorias, e é adotada até os nossos dias, embora com nomes diferentes: regimental, divisionária e de sítio. Antes de Gustavo Adolfo, a proporção era de um canhão, aproximadamente, por mil homens; com ele, a proporção passou a ser de seis peças calibre 9 para mil, fora duas de quatro libras por batalhão. Além de ter padronização de peças pelo peso dos projetis e diâmetro das almas, usou a metralha contra a infantaria. (SANTOS, 1998, p. 113)
A cavalaria dispensou a maior parte das armaduras, sendo que a maioria só usava um capacete de aço e um pesado casaco de couro. Os cavaleiros levavam apenas duas pistolas e um sabre. Em vez de cavalgarem até os lanceiros e dispararem suas pistolas, o método até então habitual, os suecos atiravam a galope, com sabres nas mãos. O monarca argumentava que quanto mais rápido uma linha de cavalaria atacasse um inimigo, menos seu fogo sofreria. Logo, sua cavalaria teria que atacar a galope.
Mister ressaltar que os cavalarianos do séc. XVI geralmente atacavam a infantaria inimiga com uma pistola em cada mão, atiravam a curta distância e se retiravam a galope, mas a saraivada contínua de mosquetes tornava isso um verdadeiro suicídio. Gustavo fez os cavalarianos voltarem à era das armas brancas, mantendo sua cavalaria bem longe da infantaria até que um descuido do inimigo deixasse um flanco aberto ou um regimento desmoralizado virasse as costas e fugisse. Então os cavalarianos atacavam com sabres afiados. A formação era disposta em três fileiras, muito móvel, para poder preparar o choque pelo fogo. Segundo Francisco Santos, “para apoiá-la, Gustavo Adolfo atribui-lhe infantes aligeirados, denominados ‘mosqueteiros comandados’. Antes de Gustavo Adolfo, os cavalarianos carregavam em duas fileiras, ao galope”. (SANTOS, 1998, p. 114)
Reservas, a pé e a cavalo, eram mantidas para o emprego quando necessário. O exército sueco podia se movimentar mais rapidamente do que qualquer outro exército da Europa, e tinha muito mais poder de fogo.
Um exemplo desta nova forma de guerrear, empregando a combinação de infantaria, cavalaria e artilharia, ocorreu em Breitenfeld (ao norte de Leipzing), em setembro de 1631. Gustavo desembarcara na Pomerânia, em meados de 1630, com um exército que aprendera muito com os combates anteriores. Sua infantaria estava organizada em brigadas, de 1200 a 1500 combatentes, que aliavam forte coesão com flexibilidade tática. Poderosos defensivamente, os infantes poderiam distribuir-se com rapidez em linhas de seis fileiras de profundidade para maximizar o impacto dos mosquetes.
As grandes e profundas formações de infantaria dos inimigos de Gustavo tornavam violento o assalto às forças adversárias, mas ofereciam poucas opções táticas a um comandante, operando como “fortalezas” isoladas no campo de batalha.
Em contraste, as brigadas de Gustavo podiam ser divididas em batalhões de 400 a 500 homens, capazes de fazer melhor uso de seus mosquetes em unidades com apenas seis fileiras de fundo. Isso sem sacrificar a capacidade de se reagruparem em brigadas completas de piques eriçados, que podiam oferecer uma defesa tão forte quanto a de seus adversários. Acima de tudo, as brigadas se distribuíam com menor densidade: elas podiam conter a frente inimiga com apenas uma fração de suas unidades, deixando brigadas adicionais para formar uma segunda e uma terceira linhas no campo de batalha.
A combinação de atiradores coordenados, que disparavam projéteis de 20 milímetros com razoável pontaria até 50 metros, a capacidade de sua artilharia móvel, que lançava, a cada seis minutos, bolas de ferro de mais de 9 quilos a uma distância de 1700 metros, e a utilização da cavalaria (basicamente, o emprego combinado das três armas), promoveu a destruição, em menos de duas horas, de dois terços do exército imperial adversário, com a morte de quase 8 mil dos seus soldados e a captura de quase 10 mil prisioneiros.
Os combatentes do exército sueco tinham que funcionar como partes intercambiáveis. Sob a ótica do monarca, treinar a exaustão era maneira de torná-los intercambiáveis, juntamente com a disciplina empregada. “Instrutores incansáveis treinavam os soldados em socar pólvora, embuchar e enfiar as balas de mosquete pelo cano adentro até que fossem capazes de fazer isso de olhos fechados”. (MORRIS, 2015, p. 217)
Essa flexibilidade tática representou o caminho para a vitória:
O uso judicioso dos reservas, a passagem ordenada de uma posição defensiva a uma abertura ofensiva, a leveza da artilharia, que permitiu o deslocamento e a combinação dos fogos – essas inovações estratégicas revelam a superioridade dos suecos e de seu chefe e sublinham, nos inícios do séc. XVII, o advento de uma nova arte da guerra, baseada no emprego coordenado das armas, no movimento e na disciplina. (AUDOIN-ROUZEAU, 2009, p.111)
Por conseguinte, conclui-se que o sistema tático de Gustavo enfatizava a ação ofensiva por armas combinadas (infantaria, cavalaria e artilharia), atuando de forma eficaz e unificada. Nos dizeres de Rothenberg, “Gustavo foi o primeiro soldado a compreender inteiramente o valor de combinar fogo e choque, tendo ampliado os efeitos de ambos com novos métodos de combate e armas aperfeiçoadas”. (ROTHENBERG, 2001, p. 73)
Vale a pena lembrar: apesar da morte do monarca em 1632, em pleno campo de batalha, o mecanismo militar sueco havia redefinido amplamente a maneira como as tropas lutavam no campo de batalha. Alguns exércitos, como os espanhóis, tentariam resistir à mudança, continuando com o uso dos mesmos sistemas táticos usados antes do início da Guerra dos Trinta Anos. No entanto, a maioria dos líderes militares de outros exércitos logo começou a entender os benefícios das lições fornecidas pelo exército sueco. As práticas administrativas, táticas e operacionais de Gustavo Adolfo acabaram largamente imitadas e, mais do que qualquer outro general da época, ele dominou os vários elementos que constituem a liderança em combate.
Sugestão de leitura:
AUDOIN-ROUZEAU, Stéphane. As grandes batalhas da história. São Paulo: Larousse do Brasil, 2009.
BRZEZINSKI, Richard. The armies of the Gustavus Adolphus (1): Infantry. Oxford: Osprey Publishing, 1996. (Man-at-Arms v. 235)
BRZEZINSKI, Richard. The armies of the Gustavus Adolphus (2): Cavalry. Oxford: Osprey Publishing, 1997. (Man-at-Arms v. 262)
CARNEIRO, Henrique. Guerra dos Trinta Anos. In: MAGNOLI, Demétrio (org). História das Guerras. São Paulo: Contexto, 2008.
CUNHA E SOUZA, Marcos da. A evolução dos sistemas táticos. In: BITTENCOURT, Armando de Senna [et al.]. História militar geral I: as guerras da idade antiga à idade moderna. Palhoça: UnisulVirtual, 2009.
FERRARI, Ana Claudia [org.]. Guerra: impérios coloniais e lutas modernas – 1500-1750. São Paulo: Duetto Editorial, 2011, v. 3.
KEEGAN, John. Uma história da guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
MORRIS, Ian. Guerra: o horror da guerra e seu legado para a humanidade. São Paulo: LeYa, 2015.
ROTHENBERG, Gunther E. Maurício de Nassau, Gustavo Adolfo, Raimondo Montecuccoli: “Revolução Militar” do século XVII. In: PARET, Peter. Construtores da Estratégia Moderna: de Maquiavel à era nuclear. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2001, tomo 1.
SANTOS, Francisco Ruas. Arte da Guerra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Ed., 1998.
SCICAST #375: Guerra dos Trinta Anos. Locução: Fernando Malta, Marcelo de Matos, Igor Cruz, Isabela Fechina, Matheus Silveira, Willian Spengler. [S.l.] Portal Deviante, 08/05/2020. Disponível em: <https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast-375/>
SPENGLER, Willian. Lembrai-vos da guerra… Batalha de Breitenfeld (1631). Portal Deviante, 2016. Disponível em: <https://www.deviante.com.br/noticias/lembrai-vos-da-guerra-batalha-de-breitenfeld-1631/>
VON HESSEN, Michael Fredholm. The Lion from the North: Volume 1, the Swedish Army of Gustavus Adolphus, 1618-1632. Warwick: Helion & Company, 2020.
WEIR, William. 50 Batalhas que Mudaram o Mundo: os conflitos que mais influenciaram o curso da história. São Paulo: M.Books, 2003.
WRIGHT, Edmund. Dicionário de história do mundo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
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