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As Cruzadas, juntamente com as catedrais góticas e a cavalaria, constituem um dos produtos originais do medievo. Divulgadas pela literatura e pelo cinema, é difícil encontrar uma pessoa que não tenha uma noção, ainda que vaga, a seu respeito.
Comumente associadas às expedições militares direcionadas para libertar a Terra Santa dos “infiéis”, este fenômeno histórico é bem mais complexo, envolvendo também campanhas realizadas na Península Ibérica, nas fronteiras orientais do Sacro Império Romano Germânico, bem como dentro do próprio território cristão.
Nos dizeres de José Roberto Mello,
malgrado toda essa amplitude espacial e cronológica do fenômeno, o iter Hierososlyminatum (o caminho de Jerusalém) continuou sendo o mais típico, o mais original e o mais rico em experiência humana e vivência religiosa de todo o movimento cruzadístico medieval. (MELLO, 1989, p. 6)
Convém ressaltar que o termo “Cruzada” é raro e recente: não aparece no latim medieval antes da metade do século XIII.
Estes, que eram antes de tudo peregrinos, se consideravam como ‘soldados de Cristo’ e ‘marcados pelo sinal da cruz’, sendo a partir desta última expressão que se formou, por volta da metade do século XIII, o termo “Cruzada”. Os textos medievais em geral designam essas expedições como ‘a viagem de Jerusalém’ ou ‘o caminho do Santo Sepulcro’ e, já no começo do século XIII, quando o movimento se tornou mais regular, sob o nome de ‘passagem’. Subjacente a todas essas expressões se encontra a ideia da peregrinação: ‘a peregrinação da cruz’. (MORRISON, 2009, p. 3)
Antes de 1095, é possível vislumbrar raízes mais profundas que originariam as Cruzadas. Um remoto ponto da Anatólia, em 26 de agosto de 1071, na Batalha de Manzikert, na qual o exército bizantino sofreu a mais grave de todas as suas derrotas para os turcos seljúcidas. O Império Bizantino, abalado por seguidas guerras, havia perdido províncias na Ásia Menor e parecia não ser capaz de conter o avanço islâmico.
Em março de 1095, o papa Urbano II recebeu os emissários do imperador bizantino Alexios I. Ele solicitava ajuda na luta contra os “infiéis” muçulmanos. Em 27 de novembro do mesmo ano, no Concílio de Clermont, Urbano II clamou por uma campanha pela reconquista dos lugares santos. O discurso do papa não foi exatamente uma convocação organizada para o início das Cruzadas, embora ilustre o sentimento coletivo predominante na maioria dos membros das primeiras expedições. Mais do que um jogo de frases e relatos cruéis, ela reflete também a forte inspiração religiosa do movimento. E dá ainda uma boa ideia de como andava o Velho Continente nos séculos X e XI.
A grande heterogeneidade dessas expedições, que ocorreram entre 1096 e 1270, dificulta a explicação de conjunto do fenômeno. Os historiadores costumavam explicar as Cruzadas dirigidas à Terra Santa através de três fatores principais. Em primeiro lugar, o crescimento populacional europeu no período que antecedeu esse movimento: a existência de um excedente de população forneceria a essas expedições o efetivo necessário. O segundo fator, ligado ao primeiro, seria a necessidade de obtenção de novos domínios por parte dos filhos mais novos da aristocracia senhorial. O terceiro fator seria o interesse dos mercadores para os seus produtos.
Segundo Silva (2019, p. 94), “essas explicações não parecem mais convincentes hoje em dia”. O crescimento demográfico europeu atingiu seu apogeu bem depois do início das Cruzadas. Soma-se a isso o fato de que as terras em torno de Jerusalém eram bem menos atrativas para as atividades agrícolas do que aquelas da própria Europa. Do ponto de vista das cidades italianas, as guerras levadas a cabo pelos exércitos cristãos colocavam em risco as rotas comerciais e os intercâmbios já existentes com o Oriente Médio. Suas motivações não poderiam ser, portanto, apenas econômicas.
O desencadeamento das Cruzadas deve ser entendido à luz de três fatores que marcaram a Europa Ocidental a partir do século XI.
Em primeiro lugar, os movimentos da Paz de Deus e da Trégua de Deus, que tentaram limitar o alcance da violência guerreira da aristocracia laica. O Concílio de Narbonne, em 1054, justificava: “que nenhum cristão mate outro cristão, pois aquele que mata um cristão derrama provavelmente o sangue de Cristo”. O movimento de paz consistia em um esforço para abrandar os cavaleiros, ao passo que a Cruzada propunha que eles se tornassem mais duros, em um novo tipo de guerra. Nos dizeres de Silva (2019, p. 96) “a condenação da violência entre cristãos trouxe consigo a sacralização da violência praticada contra os inimigos destes últimos”.
O segundo fenômeno que auxilia a explicar as Cruzadas é a prática da peregrinação que, na Europa do século XI, tinha como destino Jerusalém. A noção de guerra santa que se desenvolveu a partir daquele recorte temporal apresentava a atividade guerreira, quando praticada contra os inimigos da fé, como uma ação sacrificial que trazia recompensas, sobretudo de ordem espiritual.
O terceiro fenômeno refere-se à construção da monarquia pontifícia e à afirmação da ideia de Cristandade. Desde meados do Ano Mil, o projeto de supremacia papal vinha sendo posto em prática.
Esse projeto não tinha apenas por objetivo o estabelecimento de uma hierarquia de poderes com o papado no topo, mas incluía também a disciplinarização da cavalaria e, mais amplamente, da aristocracia laica. (SILVA, 2019, p. 99)
As razões do grande impacto da expedição conclamada por Urbano II estão, por um lado, nas feições que o cristianismo havia assumido então na Europa Ocidental, com uma fé marcada pelos ideais de sacrifício, de penitência e de expiação dos pecados. Por outro, no fato de que a atividade guerreira foi eficazmente associada, pela Igreja, a uma atividade desejada por Deus, desde que cumprisse alguns requisitos importantes, sendo o principal deles o combate contra os “infiéis”.
A prerrogativa de convocação das oito Cruzadas oficiais à Terra Santa é dos papas; no entanto, a organização ficaria a cargo dos reis e imperadores que atendessem ao apelo.
Acerca das características das campanhas e das ações militares, Fátima Regina Fernandes afirma que “a Guerra Santa assumiria um estilo semelhante aos conflitos que se desenrolavam no Ocidente”, ou seja, uma guerra de cerco e assédio posto sobre cidades amuralhadas e castelos, acompanhados de saques e pilhagens. As tropas eram formadas por cavaleiros e escudeiros, criados por senhores nobres de quem bebiam sobre a ética do cavaleiro ideal, um amálgama de valores cristãos e práticas bélicas. Esta era a elite que comandava o chamado grosso da tropa: camponeses dependentes dos senhores, que não dispunham de armamento ou preparo militar. Seriam estes contingentes que acompanhariam os grandes senhores à Jerusalém.
Acostumados a lutas localizadas de conquista de castelos de senhores adversários, os cruzados tomam aos muçulmanos, cidade a cidade, algumas bem fortificadas, através de raids rápidos ou cercos. Daí a importância dos cavaleiros das Ordens militares, monges que fazem voto de pobreza, castidade e obediência, mas que também lutavam de maneira profissional, dispondo de uma hierarquia interna que rapidamente os transformaria, depois do século XII, na principal força de combate na Terra Santa e nos outros espaços de expansão da Cristandade. Os turcopoles seriam outro grupo que apoiaria militarmente os cruzados, mercenários contratados, autóctones das regiões de conflito. (FERNANDES, 2008, p. 115)
Como fora muito bem mencionado por Dominique Barthélemy, a guerra no período medieval estava longe de ser uma guerra total, mas envolvia estratégias tais como cercos prolongados e captura de reféns, que buscavam diminuir ao máximo as perdas humanas e produzir ganhos materiais.
A aproximação dos invasores, com efetivo numericamente superior aos sitiados, gerava uma propensão destes para negociações de paz. Caso a rendição não fosse concretizada, o cerco impunha-se. Para impedir a chegada de reforços aos sitiados, cortavam-se as rotas de abastecimento das cidades, além de se interromper o fluxo dos cursos d’água e, por vezes, envenenar os mananciais e poços.
“O assédio fazia-se através do lançamento de escadas e pontes sobre os fossos e gatos, máquinas que lançavam ganchos de ferro amarrados em cordas, capazes de abrir flancos nas muralhas. Outro aparato bélico era a catapulta, cujo objetivo era incendiar e destruir o interior das muralhas”. (FERNANDES, 2008, p.117)
As torres de assalto, feitas em madeira e com vários andares, precisavam ser mais altas que as muralhas. No piso térreo, o aríete – um tronco reforçado com ponta metálica – era responsável pelo arrombamento das portas. No andar intermediário, arqueiros e combatentes encarregados de colocar fogo nas cavidades das muralhas buscavam enfraquecer as fortificações. Por fim, no andar superior da torre, ficava uma passarela de assalto, caminho pelo qual os invasores atingiriam as posições defensivas mais elevadas das muralhas.
O sítio por mar era outra opção, que por vezes complementava o ataque terrestre, vez que algumas cidades e fortalezas eram marítimas. Nesse caso, os atacantes valiam-se de barcos equipados com passarelas volantes.
Outra técnica muito temida era o fogo grego, atirado em recipientes de argila repletos de nafta, que ao atingirem seu destino seriam incendiados através de tochas acesas acopladas às flechas e tinha alto poder de destruição”. (FERNANDES, 2008, p.118)
As Cruzadas contribuíram para o fortalecimento, no Ocidente, da ideia de Cristandade. Os papas também foram os beneficiários diretos das expedições quando estas se soldaram por vitórias, como a Primeira Cruzada (1096-99), concluída com a queda Jerusalém (1099) e pelo estabelecimento de quatro Estados cristãos na Palestina e na Síria.
Também foi o caso da Terceira Cruzada (1188-92), que reconstituiu parcialmente os domínios cristãos na Terra Santa, colocados em xeque após a retomada de Jerusalém por Saladino, em 1187: a cidade de Acre foi retomada e a família Lusignan conquistou a ilha de Chipre.
A Sexta Cruzada (1228-29), chefiada por Frederico II, conclui-se por um tratado com o sultão do Egito, no qual Jerusalém foi restituída por um período de dez anos. Reis, imperadores e aristocratas também assumiram o ônus das derrotas, como na Segunda Cruzada (1145-8), que terminou com o fiasco dos exércitos cristãos, chefiados pelo rei francês Luís VII e pelo imperador alemão Conrado III. Ou ainda a Quinta Cruzada (1217-21), derrotada no Egito.
A Sétima (1248-54) e a Oitava Cruzadas (1270) foram iniciativas do rei francês Luís IX, e se soldaram, respectivamente, pelo fracasso na retomada de Jerusalém e pela morte do rei.
Registre-se que não só batalhas sangrentas aconteceram durante as Cruzadas. As guerras santas empreendidas pelos cavaleiros europeus no Oriente Médio ajudaram a disseminar costumes, objetos e hábitos dos islâmicos em toda a Europa.
Vale a pena lembrar: símbolo de sofisticação, os tapetes árabes e persas se tornaram conhecidos graças às constantes expedições dos cruzados ao Oriente Médio. Os islâmicos costumavam decorar suas tendas com as tapeçarias. Durante as Cruzadas, esse costume foi levado para a Europa. Eles passaram a ser apreciados pelos nobres europeus, que também os penduravam nas paredes ou os exibiam sobre as mesas. Foi também no Oriente Médio que os ocidentais tomaram contato com certos conhecimentos posteriormente importantes para a Europa: técnicas artesanais como a de fabricação do vidro, técnicas de navegação como a bússola e o astrolábio, plantas tropicais como a cana-de-açúcar e o algodão. A contribuição das Cruzadas na intensificação/desenvolvimento comercial é pública e notória. Representaram também um grande impulso no processo de centralização monárquica da Europa, além de inúmeras outras consequências.
Concluindo, as palavras da historiadora Fátima Regina Fernandes nos fazem refletir sobre o legado das Cruzadas no imaginário popular:
O conceito de Cruzada fixou-se no imaginário coletivo como uma luta justificável contra aquele que difere, em suas concepções e interesses, dos valores e crenças predominantes num determinado espaço, ou seja, o outro. Hoje ainda ocorre a utilização política desse ideal. No entanto, o uso contemporâneo das Cruzadas pouco tem a ver com seu significado medieval: trata-se de uma metáfora política que tenta justificar os interesses de grupos ou potências. As Cruzadas foram fruto de uma realidade medieval e um contexto histórico nunca se repete. O mecanismo de extrair da cultura da Idade Média a ideia de uma Guerra Santa para que se façam guerras nos dias de hoje nada mais é que uma manipulação que se utiliza do passado histórico para legitimar causas atuais – que, do contrário, teriam talvez menos probabilidades de serem aceitas e abraçadas. (FERNANDES, 2008, p. 128).
Sugestão de leitura:
BARTHÉLEMY, Dominique. A Cavalaria: da Germânia antiga à França do século XIII. Campinas: UNICAMP/Leme, 2010.
FERNANDES, Fátima Regina. Cruzadas na Idade Média. In: MAGNOLI, Demétrio (org). História das Guerras. São Paulo: Contexto, 2008.
FLORI, Jean. Jerusalém e as Cruzadas. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. V. 02. São Paulo: EDUSC, 2002.
FRANCO JUNIOR, Hilário. As Cruzadas: Guerra Santa entre Ocidente e Oriente. São Paulo: Moderna, 1999.
MELLO, José Roberto. As Cruzadas. São Paulo: Ática, 1989.
MORRISSON, Cécile. Cruzadas. Porto Alegre: LP&M, 2009.
NICOLLE, David. The Crusades. Oxford: Osprey Publishing, 1996. (Osprey Elite v. 19)
REZENDE FILHO, Cyro. Guerra e Guerreiros na Idade Média. São Paulo: Contexto, 1996.
SILVA, Marcelo Cândido. História Medieval. São Paulo: Contexto, 2019.
WILLIAMS, Paul L. O Guia Completo das Cruzadas. São Paulo: Madras, 2007.
WISE, Terence. Armies of the Crusades. Oxford: Osprey Publishing, 1991. (Man-at-Arms v. 75)
Sugestão de vídeos:
https://www.youtube.com/watch?v=aJR5Qwd72k8&ab_channel=hamzazamia
Não deixe de ouvir:
SCICAST #211: Cruzadas. Locução: Fernando Malta, Marcelo de Matos, Roberto Spinelli Filho, César Agenor F. da Silva, Matheus Silveira e Willian Spengler. [S.l.] Portal Deviante, 11/08/2017. Podcast. Disponível em: https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast/scicast-211-Cruzadas/