Salve, salve gente amiga das Ciências!

O “Lembrai-vos da guerra…” retorna após um longo inverno e desta vez para tratar de uma batalha ocorrida no epílogo dos oitocentos.

A presença europeia no “continente negro”, no início do século XIX, basicamente resumia-se a entrepostos comerciais ao longo do litoral, notadamente aqueles utilizados pelo nefasto tráfico negreiro para as Américas. Todavia, no transcurso do século XIX para o século XX, baseado principalmente na expansão da nova fase capitalista, inicia-se o processo histórico que ficou conhecido como Imperialismo. O marco principal desta marcha foi justamente a “corrida para a África”, capitaneada pela Europa. Em menos de cem anos, quase todo o continente africano estaria sob domínio europeu.

Um dos motes da doutrina colonial era transmitir o modelo europeu aos “povos inferiores”, para que estes pudessem atingir o “pináculo da glória civilizacional”, tal qual a Europa. Basicamente, defendia-se a superioridade branca europeia sobre os habitantes dos “continentes bárbaros” – América, Oceania e África. Aos europeus, cabia a “nobre missão” de “civilizar os selvagens”. Era o “fardo do homem branco”, expressão cunhada pelo poeta e aristocrata britânico Rudyard Kipling, em 1899.

Da mesma forma que a Alemanha, a Itália ingressa tardiamente na corrida imperialista. Nos estertores do século XIX, o neonato reino da Itália – proclamado em 1861, conclui sua unificação entre 1866 e 1871 – está em um patamar inferior, se comparado com outras potências europeias. Aliás, a exemplo destas grandes potências – Inglaterra e França, notadamente –, pretende conduzir uma política colonial que o coloque à frente de um verdadeiro império, mesmo não integrando o rol dos países de primeira grandeza. A herança do esplendor do antigo Império Romano, exacerbada pelo nacionalismo do século XIX, reforça igualmente a ideia da necessidade de assumir esse “destino manifesto”.

A Etiópia, rica região localizada na parte oriental da África, também chamada de Abissínia, constituiria o alvo na qual se concentrariam as ambições italianas. Desde 1869, quando adquiriu o porto de Assab através de uma negociata com um sultão local, a Itália se fazia presente na região. Em 1882, a mesmíssima baía de Assab tornar-se-ia a precursora colônia italiana no Mar Vermelho.

A partir de 1885, os italianos se instalam em Massawa, também na costa do mar Vermelho. Aliás, a sanha imperialista italiana teve seu ápice durante o governo do primeiro-ministro Francesco Crispi (1887-1896), que via na conquista de colônias a solução para os problemas domésticos italianos: instabilidade social, excesso populacional, crise econômica e falta de unidade entre o norte e o sul da “velha bota”. Giorgio Candeloro, mencionado por Alexandre Marques (2008), especifica que os políticos italianos consideravam que “uma política externa de prestígio e de conquista poderia distrair a opinião pública das dificuldades internas e frear o conflito social”. Não obstante, assim como nem só de pão vive o homem, nem só de prestígio vive uma pretensa potência: a mola mestra para a empreitada imperialista italiana era o interesse econômico, notadamente aqueles vinculados à siderurgia, à indústria naval e à indústria bélica.

Tal qual uma aranha confeccionando sua teia, a Itália tramava a anexação da Abissínia sob seu jugo. Conforme nos conta Valter Salvério (2013), o imperador Tewodros II (1855-1868), restaurou o antigo império da Etiópia, dividido havia mais de um século. O sucessor de Tewodros, imperador Yohannes IV (1871- 1889), foi obrigado a repelir os ataques dos egípcios e dos mahdistas do Sudão. Enquanto isso, em 3 de fevereiro de 1885, os italianos tomavam Massawa, sob aprovação dos ingleses. A guerra parecia iminente. A Itália, no entanto, receando as dificuldades de uma expedição militar em um país montanhoso como a Etiópia, apelou para a mediação do Reino Unido. Durante a brava resistência do imperador Yohannes à agressão italiana e egípcia, o governador de Shoa, Menelik, embora por princípio devesse obediência ao imperador, mantinha relações cordiais com a Itália. A amizade com a Itália também permitiu a Menelik conquistar, na qualidade de rei de Shoa (1865-1889), as ricas regiões de Arussi, Harar, Kulo e Konta, a sul e a sudeste, e Gurage e Wallaga, a sudoeste. A 2 de maio de 1889, menos de dois meses após a morte de Yohannes, um tratado de paz e de amizade marcava o apogeu das boas relações entre Menelik e a Itália. Foi assinado na aldeia etíope de Wuchale (Uccialli, em italiano).

O pacto assentia Menelik II como genuíno imperador – negus – da Etiópia. Por seu turno, a Itália teria seu domínio sobre a Eritréia confirmado, acrescido de prerrogativas mercantis. Entretanto, o tratado, elaborado nos dois idiomas – amárico e italiano – possuía um “vício de origem”, especialmente no teor do artigo 17. A versão em amárico rezava que a Etiópia poderia recorrer à intermediação da Itália para assuntos quem envolvessem à Europa. Já a versão em italiano, afirmava que a Etiópia deveria recorrer à Itália para assuntos atinentes ao “velho mundo”. No frigir dos ovos, o império etíope passaria a ser uma espécie de protetorado ítalo.

Como surgiu este roldão, não se sabe ao certo; mais expressivo é o fato de que Menelik advertiu que não aquiescia o texto em italiano. Julgado pelos europeus como pouco mais do que um “selvagem esclarecido”, o negus etíope era um diplomata extremamente proficiente, um homem de muitos predicados, que colocaria o darwinismo social europeu a knock down.

Apesar deste “enrosco idiomático”, a relação entre ambos os governos continuou saudável. O negus despacha, inclusive, seu primo e general ras (chefe local) Makonnen em uma missão diplomática, objetivando dirimir as questões referentes ao acordo. Ato contínuo, em 02 de outubro, um novo tratado é concebido, ratificando Menelik II como monarca etíope, além da concessão de um empréstimo de grande vulto aos africanos.

Entretanto, o historiador Monday Akpan (2010) relata que quase imediatamente, porém, todo o projeto de cooperação teve de ser abandonado, pois no dia 11 de outubro o ministro das Relações Exteriores da Itália declarou que, “conforme o artigo 34 do tratado perpétuo […] S. M. o rei da Etiópia aceita os bons ofícios de S. M. o rei da Itália para tudo quanto diz respeito às relações da Etiópia com outras potências ou governos”.

Alessandro Gomes (2017) ressalta que quando Menelik anuncia sua coroação, informam-lhe que não poderia receber o título de Negus e nem a Etiópia chamada de independente, haja vista que se tratava de um protetorado italiano. Claro que as outras potências europeias apoiaram a Itália, pois até mesmo os mapas passaram a nomear a Etiópia como Abissínia italiana.

A esta altura, as tropas italianas já haviam ocupado vários povoados não designados no compromisso firmado, estabelecendo-se em Adwa, cidade nas proximidades da fronteira com a província italiana da Eritréia. No fim de 1893, os italianos começam a ocupar o elevado planalto etíope.

Lamy destaca que entre 1891 e 1894 a Grã Bretanha assinou com a Itália, três protocolos que fixavam as fronteiras entre a Etiópia e as colônias inglesas do Chifre da África e do Vale do Nilo. Enquanto isso, Menelik comprava fuzis e canhões na França e na Rússia e anexava várias províncias ao sul e sudoeste, formando o atual território da Etiópia. No início de 1893, Menelik informou às potências europeias que estava denunciando o Tratado de Uccialli. Naquele momento, ele já tinha acumulado 82 mil fuzis e 26 canhões. A guerra com a Itália começou no final de 1894.

Os primeiros conflitos eclodiram em dezembro de 1894. Menelik dispunha de uma força de 100 mil combatentes bem armados, enquanto as forças imperialistas possuíam um efetivo aproximado de 17 mil homens (10 mil ítalos e 7 mil nativos), sob a liderança do general Oreste Baratieri, veterano das guerras de unificação italiana, governador da Eritréia.

Subestimar o inimigo é uma das grandes lições – amargas – que os exércitos aprenderam (ou deveriam aprender) ao longo do tempo. Os italianos não levaram em consideração o seu total desconhecimento em relação ao teatro de operações, seja no aspecto geográfico, em relação ao preparo das forças adversárias, bem como às deserções dos nativos que deveriam combater ao seu lado. Giorgio Candeloro, citado por Marques (2008), julga que desde os contatos preliminares, os italianos lograram uma perspectiva inexata quanto à tomada da Abissínia: se acreditou, de fato, que a anarquia feudal, o extremo atraso econômico do país, o armamento e a organização rudimentar das forças armadas tornaram o velho império etíope um eventual adversário muito fraco, e subvalorizaram outras circunstâncias naturais e históricas, como o caráter montanhoso e impérvio do país e a grande qualidade militar dos abissínios, os quais por séculos tiveram êxito em repelir os assaltos de múltiplos invasores e em conservar sua fé cristã e sua tradicional cultura diante dos Estados islâmicos que quase os circundavam.

Em setembro de 1895, o negus proclama o “ketit”, a mobilização geral, e declara guerra à Itália. Até então, mesmo sofrendo inúmeros reveses, o otimismo italiano se mantinha. Agora, diante do anúncio da mobilização geral, Francesco Crispi precisa decidir: parar as operações conservando, no entanto, as conquistas dos primeiros meses – notadamente Adwa –, ou obstinar-se na penetração da Etiópia. Considerando o custo da expedição; as dificuldades causadas pela distância da metrópole; pela lentidão das comunicações; pelo escasso conhecimento do terreno; sem falar na rivalidade dos chefes militares – Vittorio Dabormida, Giuseppe Arimondi, Matteo Albertone, Giuseppe Ellena –, propensos a realizar sua política pessoal; Crispi seria levado a adotar a primeira solução. Contudo, sua vontade de fazer carreira o incita a continuar a conquista. O general Baratieri recebe ordens para prosseguir a invasão.

As forças adversárias são lentas em agrupar-se, o que permite aos italianos avançar por algum tempo. Mas, a partir de dezembro, as posições destes começam a ser batidas em parte. Em Amba Alagi, cercados por 30 mil etíopes, os italianos perdem 2 mil dos 2300 homens; depois, em janeiro de 1896, conhecessem um novo fracasso e abandonam o posto de Maqalié.

Estas vicissitudes aplicam graves problemas aos responsáveis italianos. Baratieri procura convencer Francesco Crispi a lhe conceder os meios adicionais para poder arrevesar a situação. Na Itália, o primeiro-ministro é alvo de críticas de opositores, de setores industriais e comerciais, estes últimos céticos em relação às possibilidades de expansão econômica em terras africanas, a julgar pela performance italiana até então. Somente o pleno sucesso na Etiópia lhe permitiria salvar sua conjuntura.

Em 28 de fevereiro, enquanto os 20 mil combatentes solicitados como reforço não chegam, Baratieri opta por uma demonstração de força em Adwa, objetivando atrair as forças de Menelik a um local de combate que lhe fosse favorável.

Ao entardecer do dia 29 de fevereiro, 4 colunas de 16800 homens, dos quais dois terços de italianos e um terço de askaris (auxiliares eritreus e somalis), tomam a estrada de Adwa. Sem instruções precisas, essas tropas se extraviam pelo caminho; cansadas e dispersas, chegam na manhã do dia 1⁰ de março em um terreno semeado por inúmeras colinas que lhes impedem de ter uma visão geral do campo de batalha – o desconhecimento sobre o local em que pretendiam atuar é ainda mais flagrante. A data, que é a do combate desejado por Baratieri, não é fortuita: trata-se de um dia de festa para a Igreja etíope, e o italiano pensou que grande número de guerreiros inimigos teria partido para Aksum, a fim de cumprir seus deveres religiosos.

Para a surpresa do general italiano, não somente os etíopes não deixaram o exército para realizarem suas profissões de fé, mas são quase 100 mil combatentes, armados até os dentes, exalando patriotismo, que esperam os italianos nesse terreno que dominam tão bem. Liderando as formações de cavalaria e artilharia, vinha o próprio Menelik. Diferente do que acreditavam, ao invés de arcos e lanças, os imperialistas se deparam com o troar de canhões e fuzis.

Protegido pelas fortificações, o plano inicial das tropas italianas era ganhar tempo e exaurir o inimigo. Contudo, o primeiro-ministro Crispi não aceita tais estratagemas e determina, por intermédio de numerosos telegramas, que Baratieri lance as tropas ao ataque.

Quando Baratieri finalmente ordena a suas tropas tomar posição, após ter hesitado por um longo momento entre as indicações de seus mapas precários e as dos guias, estas se veem logo cercadas por um verdadeiro vagalhão humano. Desde os primeiros momentos da contenda, a situação pende a favor dos abissínios. Os combatentes do negus Menelik optam por atacar de início a ala mais fraca do dispositivo italiano, um batalhão de auxiliares. Estes, após ter oposto breve resistência à fúria etíope, fogem. Selam assim a sorte da batalha, pois em pânico, debandam em direção ao centro, rompendo completamente a formação adotada por Baratieri. A confusão se torna indescritível: os etíopes perseguem os fugitivos, atiram praticamente à queima-roupa contra os italianos. Soldados, então, abandonam fuzis e munições para tentar facilitar a fuga, pois temem terrivelmente a vingança dos etíopes que, segundo relatos, não hesitam em emascular os inimigos que caem em suas mãos.

No fim desse impiedoso dia, as tropas italianas estão desvanecidas em torno de Adwa, uma vez que o general Baratieri não conseguiu canalizar sua retirada. Segundo as estatísticas apresentadas por Akpan (2010), por ter subestimado o adversário, a Itália perdeu 261 oficiais, 2918 suboficiais, 2 mil soldados askari. Os desaparecidos remontavam 954 soldados italianos, os feridos chegavam a marca de 470, acrescidos de 958 askari. Os etíopes capturaram 1900 prisioneiros de guerra, 11 mil fuzis e todos os canhões italianos. Uma derrota fragorosa de um lado, uma vitória incontestável de outro. O pretenso “Davi” etíope dava uma lição para o “Golias” da vez, italiano. Nos dizeres de McLachlan (2011, p. 23), “esta foi, de longe, a mais custosa derrota sofrida por um força colonial branca nas mãos de um inimigo não europeu”.

Quatro dias mais tarde (5 de março), o gabinete ministerial italiano pede demissão: o desastre de Adwa abrevia a carreira política de seu chefe. O desfecho da contenda teve acentuada preponderância na trajetória das relações entre a “selvagem” África e a “civilizada” Europa. Menelik ganha muita notoriedade; a Europa passa a enviar representações diplomáticas objetivando promover tratados com seu reino, mesma práxis realizada pelo sultão do Império Otomano e pelo tzar da Rússia. Até mesmo seus arqui-inimigos mahdistas sudaneses enviaram delegações.

Firmado em 26 de outubro de 1896, o Tratado de Adis Abeba revogou o antigo Tratado de Wuchale, reconhecendo, por fim, a independência da Etiópia. Ademais, estabelecia as divisas entre o império etíope e as então colônias italianas – Eritréia e Somália, além dos termos para a remissão dos prisioneiros de guerra italianos. Diferente do primeiro, este tratado foi firmado em amárico e francês, a fim de evitar qualquer “mal entendido” deliberado. Era o crepúsculo da aventura afroitaliana e o alvorecer da expansão etíope.

Vale a pena lembrar: Tseday Alehgn (2010) informa que a própria imperatriz Taytu, esposa de Menelik II, comandara uma força de infantaria na Batalha de Adwa – cerca de 5000 combatentes de infantaria, auxiliados por 600 cavaleiros e milhares de mulheres etíopes. A estratégia por ela empregada foi cortar os suprimentos de água do exército italiano, combalindo assim a vanguarda inimiga.

Sugestão de leitura:

 

AKPAN, Monday B. Libéria e Etiópia, 1880-1914: a sobrevivência de dois Estados africanos. In: BOAHEN, Albert Adu (ed.). História Geral da África, VII: África sob dominação colonial, 1880-1935. Brasília: UNESCO, 2010

 

ALEHEGN, Tseday. Rainhas, espiãs e soldados: a história das mulheres etíopes nas atividades militares. In: Revista África e Africanidades. Rio de Janeiro, ano 3, n. 9, mai. 2010.

AUDOIN-ROUZEAU, Stéphane. As grandes batalhas da história. São Paulo: Larousse do Brasil, 2009.

BARBOSA, Elaine Senise. Conferência de Berlim (1884-1885). In: MAGNOLI, Demétrio (org.). História da Paz. São Paulo: Contexto, 2008.

GOMES, Alessandro Martins. Menelik II e Hailé Selassié I: a luta etíope pela conservação da independência. In: Revista Identidade!. São Leopoldo, v. 22, n. 2, p. 209-225, jul./dez. 2017.

HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

LAMY, Philippe. A Ocupação Colonial da África: da Conferência de Berlim à Primeira Guerra Mundial. São Paulo, Brasília: Secretaria de Relações Internacional do Partido dos Trabalhadores, s/d.

MARQUES, Alexandre Kohlrausch. A Questão Ítalo-Abissína: os significados atribuídos à invasão italiana à Etiópia, em 1935, pela intelectualidade gaúcha. (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Curso de Mestrado em História. Porto Alegre, 2008.

MCLACHLAN, Sean. Armies of the Adowa Campaign 1896: The Italian Disaster in Ethiopia. Oxford: Osprey Publishing, 2011. (Men-at-Arms Book 471)

SCICAST #334: Impérios Africanos II. Locução: Fernando Malta, Marcelo de Matos, Cesar Agenor Fernandes da Silva, Matheus Silveira, Marcos Sorrilha Pinheiro, Débora Cabral e Willian Spengler. [S.l.] Portal Deviante, 02/08/2019. Disponível em: <https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast-334//>. Acesso em: 10 de ago. de 2020.

SILVÉRIO, Valter Roberto (coord). Síntese da coleção História Geral da África: século XVI ao século XX. Brasília: UNESCO, MEC, UFSCar, 2013.

TRAUMANN. Andrew Patrick; MENDES, Fernanda Celli Correa. A Partilha da África e o holocausto que o mundo não conheceu. In: Revista Relações Internacionais no Mundo Atual. Curitiba, n. 20, v. 1, p. 253-274, 2015.

WESSELING, H. L. Dividir para Dominar: a partilha da África 1880-1914. Rio de Janeiro: UFRJ/Revan, 1998.

 

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