Salve, salve gente amiga das Ciências!
Não foram muitos os homens que mudaram o curso da história. Esta em geral desenrola-se pela influência de um conjunto de circunstâncias em que a ação individual tem um peso muito limitado.
Algumas exceções são sempre lembradas: César, Alexandre da Macedônia, talvez Carlos Magno e Salah al-Din. Nesse escrete, Napoleão Bonaparte tem lugar cativo, em que pese o fato de que, sem a Revolução Francesa, o personagem estaria privado do enredo que o colocou no centro do palco europeu do século XIX.
É impossível dissociar Bonaparte da Revolução de 1789. Ainda muito jovem, tomou as rédeas da incandescente república francesa. Seus sucessos militares anteriores, notadamente as campanhas na Itália e no Egito, serviram de anteparo para suas aspirações políticas.
O corso tinha apenas 30 anos quando tornou-se primeiro cônsul e o cabeça da França, em 1799. Fabiano Onça registra que as campanhas anteriores lhe davam crédito, “ainda mais no caótico quadro político dos primeiros anos da Revolução Francesa”. Interessante recordar do contexto de então: a França e seu novo regime republicano eram vistos com reprovação pelo resto da Europa, vez que o continente era majoritariamente constituído por monarquias e pequenos estados, que se auto e retro alimentavam por laços e interesses nobiliárquicos (quando você joga o jogo dos tronos, você vence ou você morre…).
Jogo de alianças que geraram e gerariam uma serie de coalizões de Estados, objetivando eliminar o “mau exemplo” francês do Velho Mundo. Entretanto, os frutos da Revolução – uma grande armada nacional sustentada pelo Estado, composta por profissionais militares, em suma, a “pátria em armas” – foram muito bem utilizados por um comandante extremamente talentoso.
Tal qual um verdadeiro tsunami, a expansão militar francesa tomou conta do continente, vencendo uma batalha após a outra, durante a primeira década do século XIX. Só mesmo uma aliança sem limites entre os exércitos europeus poderia derrotar a temida máquina de guerra francesa.
Uma das campanhas exitosas, por exemplo, foi aquela que teve como ponto culminante a batalha de Austerlitz, atual Slavkov, no sudeste da República Tcheca, em 1805. Em agosto daquele ano, a Áustria formou com a Rússia e com potências menores como Suécia e Nápoles, uma coalizão contra a França, financiada pela Grã-Bretanha – era a Terceira Coalizão, uma vez que a primeira fora firmada entre 1792 e 1797, e a segunda entre os anos de 1798 e 1801.
Napoleão, já proclamado imperador da França, abandonou então seus planos de invasão das ilhas britânicas – tendo em vista a arrasadora vitória inglesa na Batalha de Trafalgar – e conduziu sua Grande Armée de Boulogne através da Alemanha para golpear a Áustria. Basicamente, seu objetivo era derrotar os austríacos antes que eles pudessem se unir ao exército russo comandado pelo general Kutuzov, que marchava para oeste a fim de encontrar seu aliado.
As forças francesas dispunham de quase 200 mil combatentes, divididos em sete corpos que contavam com todas as armas, cada um deles capaz de manobrar de forma independente sob as ordens de um dos marechais franceses.
A rapidez desse exército era ímpar, reflexo de marchas forçadas, autossuficiência sem o pretenso estorvo de um comboio de suprimentos e hábil organização feita pelo comando. Marco Mondaini afirma, inclusive, que o ponto central da estratégia das tropas napoleônicas consistia “na utilização da massa de soldados como um corpo coeso capaz de movimentar-se com o máximo de velocidade em seus deslocamentos, recorrendo sempre à ofensiva como elemento surpresa”.
[…] a inovação do Grande exército se deu no campo da estratégia, com o ‘simples’ plano de atacar sempre, manter-se na ofensiva em todas as ocasiões. Isso, por intermédio de um procedimento geral não muito padronizado: em primeiro lugar, uma imensa barragem de artilharia formada por canhões postados o mais próximo possível das linhas inimigas; em segundo lugar, atrás dos canhões, uma cavalaria pronta para atacar sobre os pontos mais débeis dos adversários depois que os disparos de canhão cessassem; por fim, a finalizar a refrega, o avanço da infantaria, essencial para a dominação e conservação do campo de batalha, em um acelerado passo, impulsionada pelo rufar dos tambores, pelo toque dos clarins e pelos gritos de guerra ensaiados (MONDAINI, 2008, p. 203).
Sérgio Miranda comenta que em fins de outubro, depois de quase um mês de cerco francês à fortaleza de Ulm, na Baviera, o general austríaco Karl Mack Von Leiberich rendeu-se com sua força de 25 mil homens antes de travar qualquer batalha de vulto. Nos dizeres do professor Carlos Daróz:
Em Ulm, a estratégia francesa utilizada foi a de atacar com a maior parte do exército sobre a retaguarda inimiga. Inicialmente, Napoleão desvia atenção do inimigo realizando um falso ataque à Floresta Negra, sob o comando do Marechal Murat. Além disso, 50 mil soldados franceses mantinham o controle do norte da Itália, no entanto, a principal força do seu exército se dirigia para o Danúbio. Assim, os franceses cruzaram o Reno, violaram brevemente o território neutro da Prússia e chegaram, no início de outubro, ao norte de Ulm. As unidades separadas do exército fecharam sobre a cidade e os austríacos que a ocupavam. O exército austríaco se rendeu, com exceção do arquiduque Ferdinando e boa parte de sua cavalaria, que escaparam. No final do mês, o exército francês havia destruído o restante das unidades austríacas, inclusive a cavalaria de Ferdinando que havia fugido (DARÓZ, 2011).
A partir desta data, inicia-se a perseguição aos russos. Audoin-Rouzeau relata que “em vão, em Krems e depois em Hollabrunn, o imperador tentou empurrá-los para o sul e cortar as linhas de comunicação com a Rússia”. Seguir adiante seria extremamente temerário, pois um avanço maior obrigaria no “abandono” de destacamentos, utilizados para controlar as regiões a cavaleiro do eixo de progressão. Traduzindo: os efetivos franceses se veriam diminuídos, enquanto as forças do inimigo, comandadas por Kutuzov, não cessariam de aumentar.
Segundo Richard Holmes e John Pimlott, “a concentração de dois exércitos russos comandados pelo marechal Mikhail Kutuzov e Tenente-General Friedrich Buxhowden, assim como a força austríaca do Príncipe Johann de Liechtenstein, davam aos aliados um efetivo conjunto de 80 mil homens”. Some-se a tal contexto a chegada do inverno, a escassez de alimentos e o risco considerável de os prussianos intervirem no conflito.
No dia 21 de novembro, chegando perto de Brunn, o imperador dá a suas tropas a ordem de parar. Sua preocupação é persuadir o inimigo – que, até agora, se esquivou da batalha –, a entrar em combate. Para isso, deve convencer os russos que têm uma oportunidade séria de vitória. Com esse objetivo, a tática de Napoleão consiste em enganar o inimigo sobre a realidade de suas forças. Diante de Kutuzov, alinha apenas 50 mil homens, que preparam ostensivamente sua retirada. Na realidade prepara várias frentes para a batalha e avisa o marechal Bernadotte, que está em Brunn com o 1º regimento, e o marechal Davout, que está em Viena com o 3⁰ regimento, para ficarem prontos para marchar até o local do combate (AUDOIN-ROUZEAU, 2009, p. 168).
Inicialmente os comandantes superiores aliados decidiram evitar maiores riscos, deixando o tempo e as condições metrológicas fustigarem os franceses. Escolados em conflitos anteriores, eles respeitavam a capacidade de comando de Napoleão e a força de seu exército. Contudo, a cautela foi retirada de cena a partir da chegada do tzar Alexandre I ao quartel-general de Kutuzov, em 22 de novembro.
O tzar e seu séquito estavam plenos de confiança. Abertamente desdenhavam dos austríacos, acreditando que só as tropas russas eram capazes de enfrentar os franceses. Os generais russos que defendiam a cautela eram tratados com desprezo e seus avisos, ignorados. Quando Kutuzov manifestou seu ponto de vista sobre as manobras futuras do exército, foi-lhe dito que “isso não era problema dele”! A estratégia aliada, agora, era ditada pelo tzar e seus jovens amigos, que confiantes acreditavam que não tinham rival, sem encontrar outro igual no campo de batalha.
Ah, a confiança…
Vale a pena lembrar: é muito incomum escrever e estudar sobre a vida de Napoleão sem cometer o erro de formular juízos de valor. Afinal, é um personagem que até hoje desperta ódio e paixões. Para uns, ele ainda é “O Ogro” que teria devastado a Europa e causado a morte de mais de 3 milhões de pessoas. Para outros, é o “gênio militar” que colocou de joelhos quase todos os monarcas absolutistas da sua geração, transformando para sempre o ocidente. Apesar dos equívocos que cometeu, seu talento militar poucas vezes foi colocado em dúvida. Muitos historiadores, entretanto, se perguntam até que ponto sua meteórica ascensão foi fruto de suas qualidades pessoais ou se foi decisivamente auxiliada pelas circunstâncias daquele momento histórico, que se seguiu à Revolução Francesa.
Sugestão de leitura:
AUDOIN-ROUZEAU, Stéphane. As grandes batalhas da história. São Paulo: Larousse do Brasil, 2009.
CAWTHORNE, Nigel. As Maiores Batalhas da História: estratégias e táticas de guerra que definiram a história de países e povos. São Paulo: M.Books, 2010.
DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho. Dois momentos de Napoleão: as campanhas da Áustria e da Rússia. Carlos Daróz – História Militar, 2011. Disponível em <http://darozhistoriamilitar.blogspot.com/2011/08/dois-momentos-de-napoleao-as-campanhas.html> Acesso em 04 de ago. de 2020.
DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho. Le Grande Armée: O Grande Exército de Napoleão. In: Revista do IGHMB. Rio de Janeiro: IGHMB, ano 70/71, n. 98/99, 2011/2012, p. 16-50.
FERRARI, Ana Claudia (org.). Guerra: a sangrenta era das revoluções – 1750-1830. São Paulo: Duetto Editorial, 2011, v. 4.
HISTÓRIA VIVA. Grandes Temas: Napoleão. São Paulo: Duetto Editorial, v. 13, 2005.
HOLMES, Richard; PIMLOTT, John. Atlas Hutchinson de Planos de Batalhas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2007.
McNAB, Chris. Armies of the Napoleonic Wars: an illustrated history. Oxford: Osprey Publishing, 2009.
MELLO, Nílson V. de. As guerras no período napoleônico. Palestra proferida no IGHMB, em 2004. In: DARÓZ, Carlos Roberto Carvalho [et al.]. Guerras: de Napoleão ao século XXI. Palhoça: UnisulVirtual, 2015.
MIRANDA, Sérgio. Francês Gigante. In: Grandes Guerras: Generais que mudaram o mundo. São Paulo: Abril, v. 36, dez. 2010.
MONDAINI, Marco. Guerras Napoleônicas. In: MAGNOLI, Demétrio (org.). História das Guerras. São Paulo: Contexto, 2008.
PARET, Peter. Construtores da Estratégia Moderna: de Maquiavel à era nuclear. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2001, tomo 1.
ONÇA, Fabiano. A ascensão: de 1796 a 1812. In: Grandes Guerras: Guerras Napoleônicas – 1799-1815. São Paulo: Abril, v. 7, set. 2005.
SANTOS, Francisco Ruas. Arte da Guerra. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1998.
YUDENITSCH, Natalia. A mais dura das batalhas. In: Grandes Guerras: Guerras Napoleônicas – 1799-1815. São Paulo: Abril, v. 7, set. 2005.