Oi. Sou o Leo! :-)

O assunto é Quântica e Emaranhamento. O tema é bom, mas é cabuloso. Um brain explosion. Pra não assustar, vamos à pequeníssima revisão:

——————-REVISÃO——————-

  • Kura aqui vem de uma das palavras para “Escola” na língua Maori;
  • Teorias Físicas têm o estranho atrativo para serem colocadas erradamente como pseudociência (3ª Lei de Newton como sendo “Tudo o que vai volta!”, etc.). A Mecânica Quântica é, infelizmente, uma das  preferidas para pseudocientistas atacarem;
  • Postulados da Teoria Quântica (lembrem-se disso!!!):
  1. o estado de um sistema é dado pela função de onda (ou vetor de estado);
  2. quantidades observáveis são dadas por operadores e as possíveis observações são seus autovalores;
  3. a existência de uma probabilidade a priori de encontrarmos um certo autovalor em algum estado;
  4. a evolução do estado quântico é dada pela Equação de Schrödinger;
  5. postulado da Medida, ou colapso da função de onda.
  • Mencionamos que partículas quânticas “bizarramente” apresentam superposição e são detectadas uma a uma, apresentando o que chamamos de dualidade onda-partícula.
  • Nas primeiras partes de Kura Quântica citamos também que eventos probabilísticos acontecem em Física Clássica, mas (não somente, mas principalmente) devido a nossa ignorância com relação ao sistema. Já na Mecânica Quântica, a probabilidade é um dos postulados da Teoria e portanto intimamente relacionada à construção dela.
  • Citamos dois tipos de experimentos, um com armas de luz/partículas/elétrons passando em fendas; e um experimento com o Gato Nelson.
  • Qualquer coisa, volte aos 3 textos anteriores, garanto que vai curtir (mentira, não garanto não, mas acho que vai, e eu ganho cliques!): Kura Quântica 1, Kura Quântica 2, Kura Quântica 3.

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Neste texto vamos tratar de um assunto enrolado[1], o Emaranhamento, esta “estranha” correlação que pode existir entre dois (ou mais) sistemas quânticos. Um tipo de correlação intrínseca, característica, inerente da teoria quântica sem nenhum análogo clássico.

Mas iniciaremos com uma brincadeirinha clássica!

“Mas péra lá, bicho, você acabou de falar que não tem NENHUM análogo clássico!”

Eu sei, mas essa brincadeira clássica vai, talvez, deixar bem claro o quão “estranho” é este efeito. Imagine a seguinte brincadeira: você está aqui na Terra, e seu amigo Mét Dêimon está em Marte, produzindo sua hortinha tranquilamente. Você combinou a seguinte brincadeira com Mét antes dele ir para Marte: você e ele compraram duas caixas (opacas) idênticas e duas bolinhas também idênticas, exceto pela cor de cada bola. Uma das bolas é azul, a outra é vermelha.

Figura 1: As caixas idênticas, e as duas bolinhas do jogo que você e Mét inventaram.

Ainda antes de seu amigo Mét Dêimon ir para sua missão para Marte, vocês colocam uma bolinha em cada caixa, fecham as caixas, e pedem para alguém imparcial balançar, trocar, mudar as caixas de lugar (sem tirar nenhuma bolinha de dentro da caixa), e depois esta pessoa entrega uma dessas caixas para você e a outra para o Mét. Vocês NÃO sabem qual caixa contém qual bolinha. O combinado entre vocês dois é (e vocês são honestos nesta brincadeira): vocês ficarão com as caixas fechadas, até que Mét chegue em Marte, esteja plenamente acomodado, faça sua horta, etc. Qual era o objetivo do jogo entre vocês dois: antes de Mét ir para Marte, você falará qual bolinha você acha que está em sua posse, e Mét falará qual está com ele. Vamos supor que você disse que estava com a bolinha vermelha, e Mét também acha que está com a vermelha. Depois de um tempo de espera, em um dia no futuro, vocês combinarão de abrir as caixas, e assim saber quem acertou. Quem acertar ganha um “Meus parabéns!” do outro. Sim, sim, eu entendo que é um jogo bobo, mas vamos prosseguir para nosso objetivo final! :-)

Até que você abra sua caixa, você NÃO sabe qual bolinha está contigo, se é a vermelha ou a azul; o mesmo acontece com Mét. Podemos até dizer que há uma probabilidade de 50% de você estar com a bolinha vermelha e 50% de estar com a azul (isto supondo que a pessoa que embaralhou as caixas seja totalmente imparcial, e que nem você nem Mét tenham tido acesso às manipulações das caixas). Mas aqui cabe um detalhe IMPORTANTE: você e Mét não sabem qual bolinha que está dentro de cada caixa porque vocês possuem uma IGNORÂNCIA com relação a como as caixas foram manipuladas. Esta questão probabilística (ou de chance) de 50% de encontrar a bolinha vermelha ou azul decorre do fato de vocês NÃO SABEREM algo sobre os conjuntos caixas-bolinhas e como este conjunto foi manipulado. Se, por acaso, vocês soubessem tudo sobre o conjunto ou sobre a manipulação dele, vocês SABERIAM qual caixa continha cada bolinha.

Figura 2: Você tem uma caixa na Terra, Mét tem uma caixa em Marte, mas nenhum de vocês sabe ao certo qual bolinha está dentro de cada caixa.

Um belo dia, você entra em contato com Mét e decidem abrir as caixas em determinado horário (Horário de Brasília – BRT). Quando você abre sua caixa, dá de cara com uma bolinha vermelha e imediatamente você exclama “Mét tem a bolinha azul, eu ganhei!!!” Alguns minutos depois, chega um zap de Mét, com a mensagem demonstrando sua própria derrota: “Meus parabéns!”

Figura 3: Você abre sua caixa, e descobre que tem a bolinha vermelha. Imediatamente você sabe que Mét tem a bolinha azul.

Não vemos problema nenhum neste experimento, correto? O fato de você abrir a caixa e descobrir uma bolinha vermelha e imediatamente saber que Mét tem uma bolinha azul em sua caixa não significa para nós que houve algum paradoxo relativístico nem nada, pois estamos confortáveis em saber que, apesar de termos 50% de chance de uma bolinha vermelha estar na Terra e 50% de chance de estar em Marte, esta probabilidade vem de nossa ignorância com relação ao sistema completo. SABEMOS que, como só há duas bolinhas nessa brincadeira, se uma está na Terra, a outra TEM que estar em Marte. Como há somente duas bolinhas, e uma de cada cor, podemos dizer com 100% de certeza que se uma bolinha vermelha foi encontrada na Terra, em Marte estará a bolinha azul. Como uma Lei de Conservação: dada a existência de duas bolinhas, e que a cor, ou este atributo delas, é constante, a medida de uma cor implica na medida da outra cor em outro lugar. E repetindo: se uma bolinha vermelha foi encontrada na Terra, em Marte estará a bolinha azul. A bolinha sempre será azul em Marte, se a bolinha vermelha estiver na Terra.

Agora peço que você, querido(a) leitor(a), inspire, expire. Respire. Reflita. Tome um café. Pois vamos entrar num dos assuntos mais “bizarros” e talvez o mais bonito (Por que não? Para um texto mais light sobre Emaranhamento, ver o texto neste Linkda Mecânica Quântica.

Agora, querido(a) e estimado(a) leitor(a), se você ainda está aí, nós vamos fazer a mesma brincadeira que você e Mét fizeram com as bolinhas azul e vermelha, mas agora vocês não compartilharão bolinhas clássicas, com este atributo vermelho/azul. Vocês compartilharão um sistema quântico, composto de duas partes A e B. Cada parte A ou B possui uma característica atômica, e inerentemente quântica, que chamaremos Spin, que possui uma Lei de Conservação, assim como a Energia, o Momento Angular, etc (ver o Scicast #383, que tem explicações excelentes sobre Leis de Conservação). Estes dois sistemas, A e B, foram criados a partir de um sistema inicial que possuía Spin Total inicial igual a zero e, portanto, assumindo esta Lei de Conservação, o Spin Total do sistema completo A e B deve também ser zero. Cada parte dessa, A e B, seguirá para um local, isto é, uma delas irá para a Terra, a outra para seu amigo Mét, em Marte. Como esta brincadeira de vocês é um pouco mais elaborada, vocês não terão uma simples caixa para abrir, mas um aparato experimental que pode ser utilizado para medir o Spin de seu sistema individual, em algum eixo que a pessoa quiser. Na Figura abaixo podemos ter uma ideia desta nova brincadeira.

Figura 4: A nova brincadeira que você e Mét se propuseram. Cada um recebe uma parte, A ou B, que foram criadas juntas, com Spin total nulo. Além disso, tanto você quanto Mét possuem um aparato experimental para realizar experimentos localmente em suas partes.

Vamos tentar descrever esta brincadeira quanticamente. Se você se lembra dos Postulados da Teoria Quântica, o primeiro nos diz que: “o estado de um sistema é dado pela função de onda (ou vetor de estado).” Então, vamos aprender a escrever alguns tipos destes estados de Spin (repito o que já disse em outro texto, não devemos ter medo de equações, mas de ratos, assassinos, e atitudes ditatoriais!). Não se preocupe totalmente com a notação, mas com a ideia:

Como visto acima, podemos escrever (ou mesmo gerar experimentalmente) o estado global do Spin das duas partes A e B, sempre tomando cuidado para o Spin Total ser nulo. Em especial, o estado gerado no sistema inicial (S=0) pode ser gerado como:

Se você notar bem, este estado possui Spin total nulo (faça a soma das setinhas para cima e para baixo). Então, de acordo com o Postulado (1) este é o estado Físico do sistema global. Existe, assim como nas bolinhas vermelha e azul, uma probabilidade de encontrarmos o Spin da parte A para cima ou para baixo. Porém, esta probabilidade NÃO está relacionada à nossa ignorância com relação ao Estado do sistema, mas sim com o Postulado (3)! Neste caso, na verdade, nós sabemos absolutamente TUDO com relação ao Estado Físico do sistema global! Este Estado Físico, de fato, possui um tipo de correlação muito íntima entre as partes A e B, correlação esta que não tem análogo clássico algum e que chamamos Emaranhamento (ou Entrelaçamento).

Prosseguindo nossa brincadeira com as partes quânticas, se seu amigo Mét medir o sistema B em Marte e encontrar o Spin de B para cima, de acordo com o Postulado (5), o Estado Físico do sistema global imediatamente se torna:

Isto nem é tão estranho, note que se parece com a brincadeira das bolinhas → se aqui na Terra estava a bolinha vermelha, em Marte estará a bolinha azul. Neste novo experimento, se em Marte o Spin está para cima, aqui na Terra o Spin deve estar para baixo! Depois que Mét mediu pela primeira vez seu Spin como sendo para cima, se quiser medir novamente se o Spin da parte B está para cima ou para baixo, ele SEMPRE encontrará Spin para cima! Assim como no caso das bolinhas, se Mét fechasse a caixa, e abrisse de novo, ele encontraria sempre a bolinha azul! Então poderíamos pensar: “O Spin da parte A, na Terra, sempre foi para baixo… e quando Mét mediu o Spin da parte B para cima, apenas desvendemos isto, assim como nas bolinhas vermelha e azul!” Mas na verdade, o que acontece é um pouco diferente. O mesmo Estado Físico inicial acima também pode ser escrito como:

Se agora Mét decidisse verificar não se o Spin de B está para cima ou para baixo, mas se o Spin de sua parte está para a esquerda ou para a direita, eventualmente Mét encontra o Spin de B para a direita, de acordo com o Postulado (5) o Estado Físico do sistema imediatamente se torna:

Até aí tudo bem também, é tudo muito parecido com o que tínhamos com os Spins para cima e para baixo. Porém, vou te dar uma informação aqui: o Spin do sistema B, que Mét mediu como sendo para a direita, é dado por:

Ou seja, se Mét decidisse verificar se a parte B está para a direita ou para a esquerda, e encontra que a parte B está para a direita, existe uma probabilidade dele encontrá-la tanto para cima quanto para baixo!!!

O que isto significa? Podemos então falar que a parte B tinha de fato Spin para cima ou não?

Mas espera aí, então você está falando que o Spin do sistema A ou B depende de qual medida a pessoa vai fazer?”

Podemos falar que o Spin da parte A ou B estava para cima ou para baixo, ou mesmo que existia uma Realidade Objetiva[2] para estas quantidades (assim como podíamos falar de uma Realidade Objetiva para a cor das bolinhas na primeira brincadeira que fizemos)? Não, o que estamos falando é que existe uma correlação quântica intrínseca entre as partes A e B, que Einstein atribuiu um nome muito ruim de “ação fantasmagórica à distância” e que chamamos hoje de Emaranhamento (ou Entrelaçamento). Nela, o estado do sistema NÃO pode ser descrito separadamente (apenas globalmente), mesmo se essas partes estiverem separadas por uma longa distância, até que uma medida seja realizada. O efeito de uma medida em uma das partes afeta não somente esta parte, mas o sistema como um todo instantaneamente. E isto NÃO implica que haja nenhuma comunicação instantânea entre as partes, ou uma comunicação super luminal (acima da velocidade da luz), implica “apenas” que este sistema, que estava correlacionado (ou Emaranhado), deixa de ter esta propriedade, e passa a ser representado localmente.

Tudo isto pode parecer muito exotérico e extravagante, porém não é. Talvez nós sejamos exotéricos, e apenas não vivenciamos em nosso dia a dia estes efeitos quânticos. Esta correlação quântica, o Emaranhamento, ou este “estranho” jeito de (d)escrevermos sistemas quânticos compostos, não só foi testada e verificada experimentalmente, como é uma propriedade que pode ser usada como recurso Físico, como Energia, por exemplo para realização de tarefas em computação quântica. Assim como as Superposições Quânticas (Kura Quântica 2 e Kura Quântica 3), os Estados Emaranhados são cruciais para que sistemas quânticos possam ser muito mais eficientes que sistemas clássicos para realização de tarefas, por exemplo quando a Google conseguiu realizar um problema computacional em 300 segundos, que um computador clássico faria em 10.000 anos[3]!!!

Enfim, este assunto é realmente “enrolado”[1], temos que mastigar mentalmente o conceito, e talvez nos entrelaçar um pouco com ele. Minha intenção aqui foi apresentar apenas o básico (!) sobre o assunto Emaranhamento quântico, e tentar mostrar o quão contraintuitivo este efeito pode ser. Espero não ter complicado mais, mas também espero ter colocado uma pulguinha quântica atrás da orelha de quem conseguiu chegar aqui, de modo que a pessoa possa tentar enxergar toda a Metodologia Científica, Matemática e até Filosofia da Ciência embutidas neste texto. Para ver mais detalhes sobre o artigo EPR e o experimento com Spins sugerido aqui, ver os vídeos nas referências [4] e [5].

Nos próximos capítulos desta saga que chamei de Kura Quântica, falaremos sobre Princípio de Incerteza e finalmente (talvez o último texto desta série, mas espero que não seja o meu último texto no Deviante!) sobre Interpretações da Teoria Quântica e Limite Clássico. Aguardo vocês. :-)

Forte abraço.

Leo.

Referências:

[1] A piada, péssima, é que Emaranhado, Entrelaçado, são palavras semelhantes em significado de “Enrolado”.

[2] Realidade Objetiva aqui no sentido dos critérios que Einstein, Podolsky e Rosen (EPR) propuseram em um artigo publicado em 1935: “Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality Be Considered Complete?”.

Link para o artigo.  Este é talvez um dos artigos mais bem escritos da Física, ao menos na minha humilde opinião. Aconselho a leitura a todos(as) que sejam iniciados(as) no assunto.

Um resumo do artigo EPR:

Os autores argumentam que, para julgar o sucesso de uma teoria, devemos perguntar:
1. A teoria está correta? Ou qual o grau de acordo entre teoria e experimento?

2. A descrição da teoria é completa?

Somente se as duas perguntas forem respondidas com “SIM” podemos dizer que uma teoria é satisfatória. Em momento algum os autores questionam se a Mecânica Quântica está “correta”, ou seja, eles dizem claramente que a Teoria concorda com os experimentos. O que eles contestam é se a Teoria Quântica é completa. Eles definem então de uma Condição de Completeza de uma Teoria Física: Todo elemento da realidade física deve ter uma contrapartida na teoria física.

Duas definições são fundamentais para a análise:

(Critério de Realidade): Se, sem perturbar de modo algum o sistema, podemos prever com 100% de certeza o valor de uma quantidade física, então existe um elemento da realidade física correspondente a esta quantidade na teoria.

(Localidade): Se dois sistemas não podem interagir um com outro, então a medida de um não pode mudar o estado do outro sistema.

Os autores EPR então concluem que, como não podemos atribuir um Elemento de Realidade a alguma quantidade da Teoria, a Mecânica Quântica está incompleta. Assim como em nosso caso dos Spins não podemos atribuir um Elemento de Realidade (de acordo com EPR) ao Spin de cada partícula antes de uma certa medida, pois há uma correlação entre as partes e só podemos descrever o sistema global. Os autores EPR propõem ao final do artigo que uma Teoria alternativa, que contivesse Variáveis Escondidas até então, pudesse completar todo o contexto.

Mesmo o artigo EPR tendo questionado a Mecânica Quântica, em 1964 John Bell demonstrou um Teorema que pusesse à prova experimentalmente as tais Teorias de Variáveis Escondidas. Vários testes experimentais já foram realizados, e em 2015 este assunto se encerrou, onde Teorias de Variáveis Escondidas puderam então ser descartadas.

[3] Quantum supremacy using a programmable superconducting processor. Nature, Volume 574, 505–510(2019). Link

[4] Vídeo com detalhes sobre o artigo EPR

[5] Outro vídeo sobre o tipo de experimento com spins proposto neste texto: