Vamos então continuar nossa saga, em poucos episódios, sobre Mecânica Quântica. Antes de começar, queria fazer um disclaimer, ou dar um pequeno adendo à Parte 1 dessa nossa Kura Quântica (ver Parte 1 clique aqui): como é um texto de divulgação, tentei ser o mais generalista possível, e acabei sendo até demais quando citei “o método científico”. Conversando com colegas acabamos por concluir que não existe UM só Método Científico, o “UM Método que veio a todos conquistar”, mas sim existem Processos Científicos que abordam testes de hipóteses e/ou observações de fenômenos. O que citei é uma abordagem da ciência, mas que serve para nossos propósitos nestes textos.
Inclusive, resumo agora a abordagem científica que usei de exemplo no primeiro texto: observação de um fenômeno → hipótese → teste da hipótese → comprovação experimental/observacional da hipótese → modelo teórico de descrição e previsão de novos fenômenos → apreciação dos resultados por pessoas mundo afora → publicação dos resultados.
Agora uma breve sinopse da Parte 1 dessa Kura Quântica:
- Kura aqui vem de uma das palavras para “Escola” na língua Maori;
- Teorias Físicas têm o estranho atrativo para serem colocadas erradamente como pseudociência (3ª Lei de Newton como sendo “Tudo o que vai volta!”, etc.). A Mecânica Quântica é, infelizmente, uma das preferidas para pseudocientistas atacarem;
- Diferentemente de outras Teorias Físicas, a Mecânica Quântica acaba por ser aberta a diferentes interpretações. Neste texto tratarei da Interpretação Estatística da Mecânica Quântica, que segue os seguintes Postulados (pilares da teoria):
- o estado de um sistema é dado pela função de onda;
- quantidades observáveis são dadas por operadores e as possíveis observações são seus autovalores;
- a existência de uma probabilidade a priori de encontrarmos um certo autovalor em algum estado;
- a evolução do estado quântico é dada pela Equação de Schrödinger;
- postulado da Medida, ou colapso da função de onda.
- Citei rapidamente dois efeitos “bizarros” (muitas aspas) da Mecânica Quântica: os Estados de Superposição e o Emaranhamento Quântico.
Após esta rápida revisão (UFA!!!), começarei esta Parte 2 da Kura Quântica! Mentira, antes vamos falar um pouco sobre física clássica: vamos falar sobre Superposição. Este efeito de fato é bem conhecido classicamente, e MUITO PROVAVELMENTE você não só já presenciou como brincou com ele. Sabe quando você deixa cair algo numa lagoa, ou numa bacia de água parada? E depois as ondinhas que formam se chocam com a margem da lagoa ou com a parede da bacia e retornam, formando vários montinhos? Várias partes altas e baixas? Então, o que acontece é que as ondas podem sofrer o que chamamos de Superposição: uma “parte mais alta” interfere com uma “parte mais baixa”, podendo tanto somar quanto subtrair (ver Figura 1 e Figura 2 abaixo), gerando o que chamamos de Interferência Construtiva e Destrutiva.
Informação que estamos trazendo aqui (parafraseando Renan de Almeida [3]): uma característica das ondas clássicas é que elas podem apresentar fenômenos de superposição/interferência.
Então, OK!, ondas podem apresentar superposição, mas e partículas clássicas? Estes objetos (que podemos imaginar como, por exemplo, bolas de sinuca, de ping pong, etc.) NÃO apresentam efeitos de superposição[4]. Uma bola de sinuca, num mesmo ponto no espaço e no mesmo instante, não interferirá numa outra bola de sinuca para gerar uma “partícula soma”, fazendo uma superposição construtiva ou destrutiva. Partículas clássicas são detectadas uma a uma, podem interagir entre elas, mas não apresentam superposição. Esta é a segunda informação importante que trazemos aqui. Resumindo: ondas clássicas podem apresentar interferência, partículas clássicas não apresentam fenômenos de interferência.
Até então falei sobre física clássica. E neste parágrafo ainda continuarei em física clássica. “Mas Leo, seu hipócrita, no título do artigo você fala de Quântica! Cadê a Quântica?” Calma que já já chegaremos lá! Vimos que ondas clássicas podem apresentar superposição, e partículas clássicas não. Agora quero que você imagine a seguinte situação: eu tenho uma caixa cúbica e uma moeda que tem em uma face a letra A e na outra a letra B (ver Figura 3). Vou fazer a seguinte brincadeira com você (aceitemos que eu seja honesto): vou colocar a moeda na caixa, balançar a caixa bastante, depois vou te perguntar qual face apareceu virada para cima, a face A ou a face B.
Qual a chance de você acertar, supondo que você não sabe nada sobre quais movimentos realizei com a caixa? Sim, a chance é 50%. Se fizermos esta brincadeira zilhões e vezes, aproximadamente 50% das vezes a moeda vai estar com a face A para cima, 50% das vezes com a face B para cima. Agora pense comigo: esta noção probabilística de qual lado da moeda vai ser encontrado para cima, se o lado A ou o lado B, vem do fato de desconhecermos por completo detalhes de como a moeda foi jogada dentro da caixa! Se soubéssemos, com 100% de certeza, todos os movimentos da moeda dentro da caixa para cada jogada (e aqui eu falo TODOS mesmo, desde os choques da moeda nas paredes da caixa até os choques da moeda com o ar dentro da caixa), e também se pudéssemos computar todas estas relações, saberíamos, pelas Leis da Física clássica[5], qual face da moeda cairia para cima. Então, a questão probabilística da Física clássica vem da nossa ignorância com relação a todos os acontecimentos de um sistema, por exemplo do movimento completo da moeda dentro da caixa!
“Opa, no Postulado (iii) da Quântica esse cara falou algo sobre Probabilidades!” Falei que iria chegar lá! Tiramos três conclusões da Física clássica até agora:
(1) ondas podem apresentar interferência;
(2) partículas clássicas são detectadas uma a uma e não apresentam interferência;
(3) existe uma probabilidade associada a, por exemplo, um dado sendo jogado, que é devida à nossa ignorância sobre o movimento completo do dado.
Vamos fazer agora três experimentos mentais, e agora sim falar de Quântica (até que enfim!). São três experimentos muito parecidos, constituídos de:
(a) Um alvo/anteparo (tela);
(b) Um obstáculo contendo duas fendas;
(c) Três dispositivos que podem disparar três “coisas”[6]: bolinhas de gude vermelhas; luz vermelha; elétrons (que não são vermelhos! nem azuis! nem podem ser pintados!).
Nosso experimento é mostrado na Figura 4.
No experimento com as bolinhas de gude, elas são detectadas uma a uma na tela, e, se deixarmos por um tempo muito grande elas formarão um padrão parecido com o que é mostrado na Figura 4a. A probabilidade de detecção das bolinhas de gude na tela não apresenta um padrão de interferência: bolinhas de gude não se superpõem.
No experimento com luz (o mesmo ocorre com ondas na água), as frentes de ondas que deixam as fendas interferem entre si, e um padrão de interferência na intensidade das ondas na tela, com máximos e mínimos de “brilho”, é claramente visualizado na tela (Figura 4b): ondas podem se superpor e apresentar um padrão de interferência.
No experimento com elétrons, eles são detectados um a um na tela, e se deixarmos um tempo muito grande, eles formarão um padrão parecido com o padrão que a luz apresentava (Figura 4c): elétrons são detectados um a um e também apresentam padrão de interferência!
Então, o elétron é uma partícula pois é detectado um a um, ou uma onda pois apresenta padrão de interferência? A resposta é que o elétron é representado por um estado quântico – Postulado (i) – que pode ser escrito, para este experimento, como:
Este estado é uma combinação linear das funções relacionadas ao elétron da fenda da esquerda com as do elétron da fenda da direita. Este estado pode apresentar interferência! Porém, quando realizamos uma medida, o elétron é detectado em somente um ponto na tela[7,8]!
Vamos tentar analisar o experimento com elétrons (Figura 4c) a partir dos Postulados mostrados acima:
- Postulados (i) e (iv): o elétron é descrito por uma função de onda, sai do dispositivo, e realiza seu percurso passando pelas fendas, chegando por fim até o anteparo, onde esta dinâmica é dada pela Equação de Schrödinger;
- Postulado (ii): um possível observável é a posição de cada elétron detectado no anteparo;
- Postulado (iii): a probabilidade de detectar o elétron em algum ponto do anteparo é dado pelo módulo quadrado de sua função de onda final (o resultado previsto é o gráfico na Figura 4c);
- Postulado (v): quando um elétron é de fato detectado, sua função de onda colapsa, ou reduz, para o estado exato onde o elétron foi detectado.
Conclusões deste experimento com elétrons: os elétrons são detectados como partículas, mas a probabilidade de encontrarmos um certo elétron em uma dada posição do anteparo é dada pelo módulo quadrado de , que é a função de onda do elétron, que podem apresentar interferência. E isto tudo vem do fato desta função de onda do elétron poder ser escrita como uma combinação linear, e portanto o estado do elétron () poder ser um Estado de Superposição. Mas, podemos insistir e tentar detectar o caminho pelo qual o elétron passa, e portanto garantir que ele seja uma partícula? Sim! Se conseguirmos observar por qual fenda o elétron passa, e com isso demonstrar completamente seu caráter de partícula, o padrão de interferência desaparece, e com isso perdemos seu caráter ondulatório! Isto é tão “bizarro” que tem até nome: dualidade onda-partícula. Mas voltarei a este assunto em outro texto!
Portanto, o fato de uma partícula quântica poder estar em um estado de superposição, como o estado do elétron mostrado acima, nos traz muitos efeitos mensuráveis da teoria. Um destes efeitos de superposição é o aclamado, porém maltratado, Gato de Schrödinger. Novamente, vamos tentar outro experimento mental (observação: FÍSICOS NÃO INCENTIVAM MAUS TRATOS COM ANIMAIS): imagine que você tenha uma caixa, e um gato cujo nome é Nelson. Provavelmente Nelson está nervoso de tanto que querem fazer experimentos com ele. Você então cria uma montagem com sua caixa, e introduz Nelson dentro dela, e fecha a caixa. Porém, você construiu também um dispositivo que emite um tipo de radiação fatal dentro da caixa, com probabilidade de 50% (ver Figura 6).
Perguntamos: qual o estado de Nelson, dado pela Mecânica Quântica, antes de se abrir a caixa para verificar? Pelo Postulado (i), e pela construção do experimento, o estado de Nelson será uma superposição de vivo e morto:
Isto não significa que Nelson é um zumbi. Também não significa que Nelson tem 50% de chance de estar vivo e 50% de estar morto. Significa que ele está em um Estado de Superposição quântica, assim como os elétrons no experimento anterior! Também assim como os elétrons, que assumiam um estado fixo quando detectados, quando você abrir a caixa o estado de Nelson irá colapsar para um dos estados teste, vivo OU morto. E mais: a probabilidade de, ao abrir a caixa, encontrarmos Nelson vivo é 50%, mesmo ele não estando no estado vivo OU morto (lembre-se que Nelson está no estado ). Neste ponto, gostaria de lembrá-los da brincadeira com a moeda que fiz no início deste texto. A probabilidade da moeda dar A ou B era 50% pois não sabíamos tudo sobre a evolução do sistema. Aqui pode parecer a mesma coisa, porém mesmo sabendo tudo sobre o sistema (e portanto tendo ignorância nula), continuaríamos tendo 50% de chance de encontrarmos o gato furioso Nelson num estado vivo quando abríssemos a caixa: a questão probabilística na Mecânica Quântica é intrínseca da própria teoria, e independe de sermos ignorantes com relação ao sistema ou não[9].
UFA! Se você chegou até aqui, e está furioso como Nelson, me desculpe. Minha intenção neste texto era: (a) mostrar que ondas clássicas podem apresentar interferência/superposição; (b) mostrar que partículas clássicas são detectadas individualmente e não apresentam interferência; (c) mostrar que partículas quânticas são detectadas individualmente e podem apresentar interferência/superposição (dualidade onda-partícula); (d) apresentar dois experimentos de Mecânica Quântica, um sobre elétrons, e um sobre Nelson, o gato, sendo que ambos acabam sendo contra-intuitivos [10] devido a este fenômeno: sistemas quânticos podem estar (ou podem ser representadas) por Estados de Superposição; (e) a probabilidade de detecção de partículas quânticas é intrínseca da teoria, e não devida a nossa ignorância sobre o sistema.
Enfim, nos próximos textos voltarei ao assunto de superposição quântica, dualidade onda-partícula, e emaranhamento quântico. Espero vocês lá, não tão nervosos(as) quanto Nelson, o gato.
Forte abraço.
Leo.
Referências
[2] Retirado do site
[4] Muitos podem me xingar, falando “mas qual o limite para que um objeto dito clássico pode de fato apresentar superposição”… bem, este é um assunto para uma próxima Kura.
[5] Aqui excluindo possíveis efeitos caóticos.
[6] Tanto as bolinhas de gude quanto os elétrons saem dos dispositivos com velocidades e direções aleatórios. Para detalhes, ver aqui
[7] Para alguém com mais facilidade técnica, o que quero dizer é que a probabilidade de detectar um elétron na tela é dado por: , e esta probabilidade pode apresentar interferência/superposição.
[8] Se duvidar, assista este vídeo, de um experimento com elétrons realizado na década de 80:
[9] Isto na interpretação estatística da Mecânica Quântica. Devo pincelar outras interpretações em outros textos.
[10] Ou será que NÓS somos contra-intuitivos e as partículas quânticas que são intuitivas?
Leo(nardo) A. M. Souza. Graduado em Física pela UFV (2004), Mestrado em Física pela UFMG (2005), Doutorado em Física pela UFMG (2009), com período sanduíche em Salerno, Itália (2008), Pós-doutorado em Física na Universidade de Nottingham, Reino Unido (2015). Professor da UFV Campus Florestal desde 2010. Coordena projetos de iniciação científica em Mecânica Quântica e Ensino de Física, e co-orienta projeto de Aerodesign (construção de aeronaves para competição estudantil). Entusiasta da ciência como fundamento para progresso humano, adora RPG, Nintendista “até o talo”, ama Rock, e também uma cervejinha no fim de semana (inclusive pra falar de ciência). Desde 2019 descobriu o maior e melhor amor, junto com a esposa, quando Eva surgiu em suas vidas.