Sendo meu primeiro texto para o Deviante, acho importante me apresentar. Prazer, sou o Leo. Dito isto, vou tentar explicar o porquê do título deste texto, e qual seria meu propósito no decorrer deste e dos demais textos. Mas antes, uma digressão.
A Física, enquanto ciência, é tida como um dos pilares do pensamento científico moderno, e talvez (já puxando a sardinha para meu lado) um dos ramos, até então, de maior precisão experimental. Exemplos para isto não nos faltam, como testes em Teoria Quântica de Campos (com precisão de aproximadamente 1 parte por bilhão [1]) ou mesmo na maravilhosa foto do buraco negro M87* [2], exemplos claros da junção de teoria, simulação, experimento e observação. Já Físicos(as), enquanto cientistas, são muitas vezes taxados de loucos(as), doidinhos(as), nerds, etc. Não tiro a razão das pessoas que pensam assim. :-)
Apesar desta incrível compatibilidade entre experimento/observação e teoria/simulação, a sociedade em geral tem o costume de realizar correlações e implicar causas e efeitos entre teorias físicas e coisas que acontecem no cotidiano, num ambiente fora da própria teoria física. Explico: talvez alguém já deva ter ouvido algo tipo “Não é vingança, é a Terceira Lei de Newton: tudo o que vai, volta!”, “Toda ação tem uma reação, tentou me derrubar, eu tropecei, mas não se esqueça que é por baixo que se dá rasteira!”, “Tudo é Energia, sintonize a frequência que você deseja, e essa será a realidade que você terá, isso não é Filosofia, é Física”, “Física Quântica prova que pensamentos são o que juntam e seguram toda esta energia do universo; então pense positivo que atrairá positividade”, etc. [3]. Note que não vejo este tipo de correlação necessariamente como má fé das pessoas, creio (firmemente) que isto vem da própria curiosidade humana aliada a falta de um disseminar científico, e portais como o Deviante são essenciais para superar esta lacuna.
Neste ponto devo relembrar, em pouquíssimas linhas, como funciona o método científico (para uma melhor discussão, ver os episódios Scicast #24 e #88 [4], ou mesmo todas as citações ao método em quase todos os episódios do Scicast):
- Problema/questão. Vemos uma pedra caindo. Por que uma pedra cai?
- Experimentos com o problema teste. Deixamos a pedra cair e observamos que ela cai sempre do mesmo jeito, nas mesmas condições.
- Propomos uma hipótese. Duendes invisíveis se empilham e puxam a pedra para baixo.
- Testamos a hipótese. Deixamos cair a pedra, e tentamos atrair os duendes (de todas as formas possíveis) para ver se a pedra cai de maneira diferente.
- Analisamos os dados. Se, de todas as formas de detecção de duendes, a pedra permanece caindo da mesma forma e não conseguimos detectar os duendes, devemos descartar a hipótese “duendes puxam pedra”.
- Mantemos a hipótese inicial que é coerente com os dados, se não for, propomos nova hipótese. Não comprovamos que duendes puxam a pedra; propomos nova hipótese, que uma Força gravitacional atrai a pedra.
- Testamos a nova hipótese. Deixamos a pedra cair de várias maneiras diferentes, ou mesmo diferentes pedras.
- Analisamos os dados. Diversas pedras de vários tamanhos e massas caem de uma forma que a hipótese “Força” descreve matematicamente, e, mais que isso, consegue prever a queda de alguma outra pedra qualquer.
- Comunicamos a conclusão dos resultados. Publicamos um artigo ou livro mostrando que uma Força descreve corretamente uma pedra caindo, e também prevê quedas de outras pedras.
Uma teoria científica é construída (simplistamente) dessa forma: problema → hipótese → teste da hipótese → comprovação experimental/observacional da hipótese → modelo teórico de descrição e previsão de novos fenômenos.
Agora sim vou começar a falar do título deste artigo e da Teoria Quântica em si. “Kura” aqui vem de uma das palavras Maori para “Escola”, e quis fazer um trocadilho (bem ruim) com pseudociências associadas à Teoria Quântica. Meu objetivo é mostrar efeitos bizarros e contra intuitivos em Mecânica Quântica, de maneira científica, muito longe dos tão noticiados Coaches e Curas Quânticas.
A Mecânica Quântica é uma das teorias físicas de maior sucesso teórico e experimental, mas também uma das teorias que mais dá “pano pra manga” para que pseudociências se aproveitem dela. Se a Mecânica Quântica (MQ) é uma teoria científica, ela deve, necessariamente, seguir as regras do jogo (1 a 9) citadas acima (ver episódios #152 e #165 do Scicast [5]).
Os problemas iniciais trabalhados pela MQ foram: Radiação de Corpo Negro (Planck, 1900); Efeito Fotoelétrico (Einstein, 1905); Modelos Atômicos (Rutherford/Bohr, 1915); entre outros. Mas até a década 1920 a MQ não poderia ser considerada tanto uma “teoria” física no sentido mais amplo, mas sim um apanhado de fenômenos e hipóteses que os descreviam, sem uma construção teórica mais profunda. Apenas com Bohr e a chamada Interpretação de Copenhagem a MQ pode ser construída a partir de postulados (os pilares básicos da teoria). Estes postulados são:
- o estado de um sistema é dado pela função de onda;
- quantidades observáveis são dadas por operadores e as possíveis observações são seus autovalores;
- a existência de uma probabilidade a priori de encontrarmos um certo autovalor em algum estado;
- a evolução do estado quântico é dada pela Equação de Schrödinger;
- postulado da Medida, ou colapso da função de onda.
Dados estes postulados, devemos conseguir descrever qualquer experimento, e principalmente prever novos resultados. Gostaria de citar aqui dois efeitos “bizarros” que resultam diretamente dos postulados acima:
- Estados de superposição: o postulado (i) diz que o estado de um sistema é dado pela função de onda. Até aí, OK! Mas uma função de onda que é combinação linear (uma soma) de estados continua sendo um estado físico!!! Um exemplo conhecido (e que voltarei noutro texto) é o coitado do “gato de Schrödinger”. Este “gato” está num estado de |vivo> + |morto>. Mas NÃO podemos afirmar que ele está vivo(1) OU morto(0), ele está neste estado estranho |1> + |0>. Mais que isso, dependendo da pergunta que fizermos ao “gato”, ele tem uma probabilidade de estar num desses estados 1 ou 0, mas essa probabilidade é intrínseca da teoria, e não vem de nossa ignorância com relação ao estado do gato! Um Bit Quântico (Qbit) é basicamente um estado de superposição!
- Estados Emaranhados: também pelo postulado (i), se tivermos duas partículas (A e B) elas também são representadas por uma função de onda. Vamos supor que estas partículas tenham uma característica que só pode assumir 2 valores (vamos chamar esta característica de spin-½): para cima ou para baixo em cada partícula. Pode acontecer da função de onda que descreve estas partículas ser tal que, se medirmos a partícula A na direção “spin para cima”, a partícula B (que antes não tinha uma posição pré-definida para seu spin) assuma instantaneamente “spin para baixo”. Mas isto também ocorre mesmo se as partículas estiverem muito (muito = MUITO) distantes uma da outra, de modo que não possa haver uma Força que realize essa interação instantânea!
Uma pergunta que surge quando refletimos sobre estes dois efeitos bizarros: por que não enxergamos isso em nosso dia a dia? Esta é uma excelente pergunta, um problema que não tem consenso na comunidade de MQ, mas que eu queria trazer nos próximos textos.
Meus objetivos neste primeiro texto: apresentar a proposta do método científico; os postulados da MQ; mostrar rapidamente duas das maiores bizarrices da teoria quântica (Superposição e Emaranhamento). Nos próximos textos tentarei bravamente detalhar mais estas duas bizarrices (o coitado do gato vai aparecer) e mostrar experimentos contra intuitivos sobre elas. Em especial, tentarei apresentar propostas do porquê não observamos diretamente estes efeitos quânticos bizarros em nosso dia-a-dia (exemplo de proposta [6]).
Forte abraço.
Leo.
[1] G. Gabrielse, D. Hanneke, T. Kinoshita, M. Nio, and B. Odom, New Determination of the Fine Structure Constant from the Electron g Value and QED, Phys. Rev. Lett. 97, 030802 (2006), Erratum, Phys. Rev. Lett. 99, 039902 (2007).
[2] COLLABORAT, Event Horizon Telescope. First M87 Event Horizon Telescope results. I. The shadow of the supermassive black hole. Astrophysical Journal Letters, 875, 71, 2019.
[3] Todas estas frases foram tiradas do Google Imagens, ao pesquisar “CONCEITO + frase motivacional”.
[4] Método Científico: https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast/scicast-024-metodo-cientifico/
Pensamento Científico: https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast/88-pensamento-cientifico/
[5] Física Quântica 1: https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast/scicast-152-fisica-quantica/
Física Quântica 2: https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast/scicast-165-fisica-quantica-2/
[6] W. Zurek, Decoherence and the transition from quantum to classical — REVISITED, arXiv:quant-ph/0306072, https://arxiv.org/pdf/quant-ph/0306072.pdf
[7] Lemos, Gabriela Barreto et al. Quantum imaging with undetected photons. Nature, v. 512, n. 7515, p. 409-412, (2014). Artigo que contém a imagem do gatinho na capa deste texto (a primeira autora é brasileira, cientista e professora).
Leo(nardo) A. M. Souza. Graduado em Física pela UFV (2004), Mestrado em Física pela UFMG (2005), Doutorado em Física pela UFMG (2009), com período sanduíche em Salerno, Itália (2008), Pós-doutorado em Física na Universidade de Nottingham, Reino Unido (2015). Professor da UFV Campus Florestal desde 2010. Coordena projetos de iniciação científica em Mecânica Quântica e Ensino de Física, e co-orienta projeto de Aerodesign (construção de aeronaves para competição estudantil). Entusiasta da ciência como fundamento para progresso humano, adora RPG, Nintendista “até o talo”, ama Rock, e também uma cervejinha no fim de semana (inclusive pra falar de ciência). Desde 2019 descobriu o maior e melhor amor, junto com a esposa, quando Eva surgiu em suas vidas.