Todo dia 2 de abril comemoramos o Dia Mundial de Conscientização do Autismo. Em razão disso, eu pedi ao pessoal aqui do portal Deviante para conversar com vocês um pouco sobre um assunto de interesse dessa parcela da população, que é a limitação de coberturas de procedimentos e tratamentos por planos de saúde frente ao rol editado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, a ANS.

Num país em que os recursos destinados à Saúde são distribuídos de forma desigual e onde, apesar dos esforços de inúmeros profissionais, há um sistema público escasso e deficitário, a cobertura ampla de procedimentos e tratamentos pela rede privada é essencial. E, mesmo para quem tem condição de pagar um plano de saúde, chegar a um tratamento pode se tornar cada vez mais difícil.

Primeiro, peço licença para uma breve introdução do assunto, para quem não esteja acompanhando.

A ANS é uma autarquia, uma espécie de serviço autônomo criado pelo Governo para uma finalidade específica. No caso, a ANS foi criada pela Lei nº 9.961/2000 e tem como objetivo regulamentar a assistência suplementar de saúde, ou seja, criar normas, portarias, regulamentações em geral para definir limites e garantir funcionamento dos planos de saúde no Brasil

Não vou me alongar (porque isso será assunto para um texto futuro), mas entendam que essas regulamentações são normas especiais, que estão sempre abaixo da Constituição e das Leis. Elas serão válidas em alguns casos, como, por exemplo, quando a Lei determina algo de uma forma genérica, e uma norma (Portaria, Resolução, etc.) trata do mesmo tema, mas de forma específica e limitada a um ramo de atividade (transporte aéreo, por exemplo). Nesses casos, mesmo que a norma especial seja diferente da Lei (e, às vezes, até a contrarie em algum ponto), pode ser que ela seja, sim, aplicável. Mas isso é um assunto complexo e, como disse, vai ser abordado em um outro texto no futuro.

Dito isso, dentre as inúmeras regulamentações da ANS está o seu rol de procedimentos e tratamentos, que é autorizado pelo § 1º do artigo 35 da Lei nº 9.656/1998. A referida autorização prevê o dever da ANS de definir as normas pelas quais os planos de saúde deverão prestar seus serviços, e quais procedimentos deverão ser atendidos, mesmo que não constem expressamente nos contratos assinados com seus clientes.

À princípio, o objetivo desse rol era garantir uma cobertura mínima aos segurados, evitando recusas arbitrárias pelos planos de saúde. Veja que, até hoje, esse é o sentido que o texto da norma da ANS prevê (ao menos no seu trecho inicial), como consta da Resolução Normativa nº 465/2021. Preste atenção a esse trecho, em destaque:

Art. 1º Esta Resolução Normativa – RN atualiza o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, que estabelece a cobertura assistencial obrigatória a ser garantida nos planos privados de assistência à saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 1999 e naqueles adaptados conforme previsto no art. 35 da Lei n.º 9.656, de 3 de junho de 1998.

(…)

§2º A cobertura assistencial estabelecida por esta Resolução Normativa e seus anexos será obrigatória independente da circunstância e do local de ocorrência do evento que ensejar o atendimento, respeitadas as segmentações, a área de atuação e de abrangência, a rede de prestadores de serviços contratada, credenciada ou referenciada da operadora, os prazos de carência e a cobertura parcial temporária – CPT.

Até aí, tudo bem. O problema, no entanto, começa logo depois, no artigo 2º da mesma norma, que declarada que o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde é taxativo, ou seja, o rol passou a ser considerado como uma lista dos únicos procedimentos que deverão ser efetivamente cobertos, excluindo qualquer outro. Veja:

Art. 2º Para fins de cobertura, considera-se taxativo o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde disposto nesta Resolução Normativa e seus anexos, podendo as operadoras de planos de assistência à saúde oferecer cobertura maior do que a obrigatória, por sua iniciativa ou mediante expressa previsão no instrumento contratual referente ao plano privado de assistência à saúde.

Assim, eventuais procedimentos que não estejam expressamente previstos no citado rol não seriam cobertos, mesmo que absolutamente necessários para a preservação da vida e da saúde do paciente.

Não sejamos inocentes em duvidar da influência dos interesses das empresas em gastar o mínimo possível com procedimentos. Isso porque a previsão de que o Rol de Procedimentos seria taxativo é algo recente, implementado apenas em 2021, na já citada Resolução Normativa nº 465/2021.

Até 2013, o texto então vigente, a Resolução Normativa nº 338/2013, não previa qualquer limite. A menção a um suposto limite, não expresso como lista taxativa ainda, veio a partir de 2015, com a Resolução Normativa nº 387/2015, que definiu o seguinte:

Art. 2º As operadoras de planos privados de assistência à saúde poderão oferecer cobertura maior do que a mínima obrigatória prevista nesta Resolução Normativa e nos seus Anexos, por sua iniciativa ou mediante expressa previsão no instrumento contratual referente ao plano privado de assistência à saúde.

A justificativa da ANS para a mudança é de que, sem a previsão de um rol taxativo, haveria insegurança jurídica no setor de saúde suplementar. Segundo a agência, isso geraria risco de um alto número de processos judiciais, o que prejudicaria o mercado e os preços. Além disso, novos procedimentos não previstos prejudicariam a fiscalização e regulamentação de tratamentos e procedimentos pela ANS.

Apesar de a norma atual prever uma brecha de coberturas adicionais, seu texto prevê que essas devem constar expressamente nos contratos. E, vamos ser sinceros, como consumidores, sabemos bem que qualquer cobertura contratual adicional que fuja do padrão é um produto de luxo, acessível a poucos.

Aí mora o problema, já que, muitas vezes, a situação dos pacientes é diversa e mutável, e pode exigir tratamentos que antes não existiam, como diante da adoção de novas tecnologias, do surgimento de novos medicamentos ou tratamentos, mas que são absolutamente essenciais ou têm um risco muito menor de causar prejuízos ou efeitos adversos aos pacientes.

Esse interesse dos pacientes conflita com o interesse das empresas prestadoras dos planos de saúde, as quais querem, claramente, economizar o máximo possível, evitando custear qualquer procedimento acima do mínimo essencial para operar no mercado.

A princípio, eram comuns decisões judiciais determinando aos planos de saúde a cobertura de procedimentos indicados por médicos que prestassem assistência aos pacientes, mesmo quando esses procedimentos não estavam previstos no rol da ANS. Nesses casos, era dada uma interpretação exemplificativa ao rol, ou seja, se considerava que a lista trazia apenas exemplos e, mesmo que não previsto, um procedimento ou tratamento deveria ser coberto sem custos ao paciente.

Por sua vez, decisões contrárias, que já não são absolutamente novidade, adotam a interpretação taxativa do rol, ou seja, limitante, de forma que não existiria razão legal ou normativa para se impor às empresas fornecedoras do plano o pagamento de qualquer procedimento, senão os expressamente previstos.

O tema é extremamente sensível para diversas pessoas portadoras de necessidades especiais e doenças raras, tal como são os portadores de Transtorno do Espectro do Autismo. São necessários diversos tratamentos para que haja atendimento às necessidades do paciente desse grupo, de forma a viabilizar um desenvolvimento saudável e o mais inclusivo possível desde os primeiros estágios da infância. Alguns desses tratamento, apesar de baseados em evidência científica, importante dizer, ainda não são regulamentados no Brasil e, portanto, não são previstos no rol da ANS.

Nota: eu tentei localizar informações sobre tratamentos específicos a pacientes portadores do Transtorno do Espectro do Autismo, mas confesso que fiquei com mais dúvidas que certezas (afinal, não é minha área de especialização). Um dos mais citados, a Análise de Comportamento Aplicada (no inglês, Applied Behavior Analysis – ABA), tem apoio da Organização Mundial da Saúde e é objeto de cursos específicos em diversas instituições nos Estados Unidos. Porém, o tema parece controverso, como vi em pesquisa pessoal que fiz sobre o tema. Assim, para não correr o risco de trazer qualquer desinformação a você, leitor, te convido a comentar abaixo suas experiências e dúvidas, para que algum colega das áreas médicas e de psicologia possa esclarecer.

Nesse sentido que, recentemente, o caso tomou proporções maiores. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) está julgando, em conjunto, dois recursos sobre o tema, os Embargos de Divergência em Recurso Especial de nºs 1886929 e 1889704. Esses recursos serão tomados como modelo a serem adotados em casos futuros e discutem, essencialmente, se o rol da ANS pode ser considerado taxativo ou não.

Notinha: não precisam se importar com o juridiquês do nome dos recursos nesse momento. O que importa é o efeito dessas decisões, que é ao que peço que a gente se atenha a observar aqui.

O julgamento dos recursos foi iniciado em setembro de 2021. Na época, o relator do caso, o Ministro Luis Felipe Salomão, entendeu que seria válida a restrição do rol da ANS como taxativo, ou seja, que os planos de saúde só precisam cobrir o que estiver descrito na norma que estiver vigente à época do pedido.

Os principais argumentos usados para a restrição eram a preocupação de manter segurança ao tratamento de pacientes, evitando o acesso a possíveis procedimentos ou tratamentos sem efetivo consenso científico, que poderiam ter efeitos prejudiciais, considerando, assim, que os procedimentos previstos já abrangeriam as melhores práticas vigentes. Considerou, também, a importância do impacto nos custos às empresas prestadoras.

O julgamento foi retomado em fevereiro deste ano, quando a Ministra Nancy Andrighi trouxe entendimento contrário, manifestando que não se poderia reconhecer como taxativa a lista prevista no rol.

Os argumentos da Ministra consideraram a necessidade de atendimento a novas tecnologias, mesmo que não previstas no rol, a impossibilidade de deixar de se considerar a função social da assistência à saúde frente à lucratividade das empresas, a dificuldade dos consumidores em entenderem os limites do rol, tanto pelo seu tamanho considerável (de mais de 3 mil procedimentos) quanto pelo seu linguajar técnico.

O julgamento foi novamente adiado, ainda sem previsão de data para ser retomado. No entanto, o relator, Ministro Salomão, em nova manifestação, em um aditamento, no qual explicou situações em que entende possível se garantir a cobertura de tratamentos, mesmo fora do rol da ANS.

Pelos termos da nova manifestação, seria prudente se condicionar que qualquer pedido de tratamento tenha evidências científicas claras, as quais o apontem como imprescindível, e seja expressamente aprovado pelo Conselho Federal de Medicina, por exemplo. Esse novo entendimento permitiria que tais exceções sejam observadas caso a caso, com base em laudo técnico produzido em processo judicial.

Embora se reconheça a necessidade de respeito à Ciência e seja, de fato, importante que a Medicina seja realizada mediante condutas baseadas em evidência, a decisão (e, aqui, expresso a minha opinião sobre o caso) é bastante dura para casos de urgência e emergência. Do modo que se expressa, exigindo laudos técnicos, que podem demorar a serem feitos, esse entendimento pode impedir o acesso a tratamento a tempo de evitar prejuízos à saúde ou à vida de muitos pacientes.

Além disso, vincular os casos à eventual aprovação do Conselho Federal de Medicina, uma instituição cujas posições, por vezes, já contrariou evidências científicas, como seu recente posicionamento a favor do Kit Covid, parece perigoso.

Num país onde temos audiências públicas para discutir pseudociências, como a realizada esse mês de março para defender a aplicação da Constelação Familiar no SUS, onde Homeopatia é reconhecida como especialidade médica, mas vacinas são deixadas de lado, mesmo durante uma pandemia, acho extremamente arriscado o posicionamento adotado.

A nós, resta esperar o destino do caso. Porém, esteja certo, essa decisão afetará a todos nós. Até lá, espero ter trazido aqui argumentos para que cada um forme um mínimo de convicção e, caso assim entenda, possa participar do debate público, que certamente vai pautar a decisão final no futuro.