Em 08/06/2022, o Superior Tribunal de Justiça pôs um fim a um questionamento que se arrastava há tempos em relação aos planos de saúde. Por maioria de votos, a Segunda Turma do STJ decidiu por declarar como taxativo, ou seja, um limite máximo de cobertura, o rol de procedimentos editado e publicado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar. E agora, quais os efeitos disso para quem depende de tratamento médico coberto por planos de saúde?

Em abril, eu escrevi aqui um texto em homenagem ao Dia Mundial de Conscientização do Autismo, em que eu analisava a situação do rol da ANS e os possíveis riscos a que estariam expostas as pessoas que dependem de plano de saúde. Você pode ler o artigo inteiro, mas vamos recapitular.

Em resumo, a ANS é uma agência responsável por regulamentar o serviço de planos de saúde privados no Brasil e, dentre as suas atribuições, é responsável por criar e atualizar o conhecido Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, o qual define quais procedimentos deverão ser atendidos, mesmo que não constem expressamente nos contratos assinados com seus clientes.

A versão atual do Rol, de 2021, já conta com várias revisões de sua lista de procedimentos, considerando novas tecnologias ou procedimentos mais eficazes que têm sido adotados nos últimos anos.

A existência do rol está prevista no inciso III do artigo 4º da Lei nº 9.961/2000, que define esse como uma referência básica (lembremos desse termo) para os serviços de saúde fornecidos no âmbito dos planos de saúde.

Em outras palavras, era para ser uma referência mínima, para evitar que planos de saúde negassem arbitrariamente coberturas, e estabelecer um limite mínimo do que poderia ser considerado essencial para a manutenção da saúde.

Ocorre que, por interesse das próprias empresas de planos de saúde, o que era para ser o mínimo se tornou o máximo. Em outras palavras, os planos de saúde passaram a rejeitar cobrir qualquer procedimento que não estivesse previsto no Rol (ou, mesmo se estivesse, limitavam o acesso a determinados métodos ou tecnologias que poderiam ser mais custosos).

Isso gerou uma busca dos clientes por atendimento junto ao Poder Judiciário. Houve uma enxurrada de ações judiciais pedindo a cobertura frente a pedidos rejeitados, questionando que, pelos termos da Lei, o rol deveria ser apenas um guia, exemplificativo. Em contrapartida, os planos de saúde acreditavam que o rol seria um teto, um parâmetro máximo, um rol taxativo.

O principal argumento dos clientes sempre foi de que a ANS sempre demorou muito para se atualizar, e novos tratamentos e procedimentos desenvolvidos com o tempo não entravam no Rol. Além disso, sempre se questionou o melhor interesse do paciente a um tratamento mais eficaz, em comparação com outros tipos de tratamento, requisitado o atendimento, mesmo que mais custoso.

Já os planos de saúde argumentavam insegurança jurídica e instabilidade financeira. Pelo argumento, quando você monta a empresa você dimensiona o atendimento, os preços e a expectativa de custos com base no Rol. Estendê-lo sem previsão de análise da ANS seria um custo inesperado, tanto financeiro como administrativo, que tornaria a atividade econômica de fornecer os planos da saúde inviável.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou dois recursos que estão sendo tomados como casos emblemáticos. Nesse julgamento, foi definido que o Rol deve ser interpretado como taxativo, ou seja, um limite máximo de cobertura, com algumas exceções. A notícia oficial sobre o julgamento você pode ler aqui.

Não foi disponibilizado acesso ao voto integral ainda. Por isso, peço desculpas por não passar a vocês. Mas o resultado foi resumido nas notícias sobre o caso. Em linhas gerais, as regras atuais são as seguintes:

  1. Em regra, o Rol deverá ser interpretado como taxativo, com algumas exceções;
  2. O plano de saúde não será obrigado a pagar um tratamento ou procedimento não previsto no Rol se existir alguma alternativa eficaz e segura que seja prevista;
  3. Se o cliente quiser contratar cobertura ampliada, deverá fazê-lo em um contrato apropriado em que serão descritos os procedimentos (contrato que também será considerado taxativo).

 

As, exceções, por sua vez, seriam as seguintes:

  1. Só serão aplicáveis exceções de cobertura se não existir tratamento necessário dentro do Rol da ANS, e somente após tentativa ineficaz de outros tratamentos previstos no Rol;
  2. É necessário que o tratamento excepcional seja devidamente prescrito por profissional médico ou odontólogo;
  3. Não serão cobertos tratamentos que, expressamente, já tenham sido negados pela ANS a serem incluídos no Rol;
  4. Será necessária prova de efetividade dos tratamentos ou procedimentos, com base em evidências científicas (não especificados os tipos de evidência pelas notícias disponíveis até o momento);
  5. Será necessário que o tratamento ou procedimento seja recomendado por órgãos técnicos e entidades nacionais e/ou internacionais de renome, como, por exemplo, a Organização Mundial da Saúde, o Conselho Federal de Medicina, ou a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia do SUS (CONITEC);
  6. No curso de um processo judicial discutindo o tema, o juiz deverá chamar a ANS e especialistas renomados sobre o assunto para expedirem pareceres sobre o pedido de cobertura extra.

 

É verdade que a necessidade de ter que entrar na Justiça continua como sempre foi. Mas as novas regras, com certeza, geram uma grande quantidade de burocracia para um procedimento que, antes, era mais simples.

Mas, antes das críticas, gostaria de fazer um comentário aos pontos positivos da decisão.

Medicina baseada em evidências científicas é, até surpreendentemente, um conceito novo na prática médica. Os problemas para seu uso efetivo são vários, incluindo dificuldade de acesso aos estudos e materiais de pesquisa científica dentro da própria comunidade médica, a falta de preparo técnico dos profissionais em saber identificar e pesquisar esses conteúdos (frente a uma educação mais voltada à prática e gestão de demandas do dia a dia), o próprio acúmulo de trabalho, dentre outros. Se quiser saber mais o assunto, temos aqui um texto do Diogo Ribeiro que fala sobre o assunto, ou, ainda, um artigo da PEBMED, um portal exclusivo da área médica para divulgação e debate de questões do segmento.

No entanto, a existência de dificuldades não significa que não devemos caminhar em direção das evidências científicas nos tratamentos. Isso pode não apenas melhor a efetividade, como também evitar a perda de precioso tempo no atendimento do paciente com supostos tratamentos indistinguíveis de placebo, como homeopatia, ou, ainda, potencialmente prejudiciais aos pacientes, como a troca da alopatia por medicamentos caseiros que podem causar reações adversas perigosas.

Assim, o que entendo ser um ponto forte da decisão é o alinhamento dos tratamentos com a Ciência, evitando o acesso a supostos tratamentos alternativos, cujo único real interesse é a convicção pessoal de um paciente ou os interesses particulares de alguns profissionais na inclusão de um suposto método milagroso. É um alinhamento importante contrário aos recentes eventos envolvendo a fosfoetanolamina, a cloroquina e o ozônio retal, por exemplo.

Sobre o assunto, indico acompanharem o trabalho do Instituto Questão de Ciência. Como sugestão, indico um texto do ano passado, escrito por Cesar Baima, que trata exatamente disso.

Exigir a presença de evidências e indicação de órgãos e entidades de saúde para os tratamentos, portanto, parece um passo importante na preservação dos interesses dos próprios pacientes, para evitar atos involuntários de dano a si mesmos diante da crescente influência de fake news e do mercado de artigos científicos escusos em revistas predatórias.

O ponto negativo da situação, no entanto, se encontra na burocracia que isso envolve. Muitas vezes, a situação do paciente exige intervenção imediata, e não é possível se aguardar um estudo exauriente sobre o tema sem que isso implique em prejuízo à saúde ou efetividade do tratamento.

O maior exemplo que podemos citar é o caso de pessoas portadoras de condições dentro do espectro autista, cujo tratamento precoce auxilia muito no desenvolvimento desde a infância e permite uma melhor inserção do paciente na sociedade com habilidades que permitam uma melhor qualidade de vida. Outro exemplo é o de pacientes com tumores graves, que podem ter uma piora rápida, necessitando intervenção rápida.

Por essa razão que esperar uma possível análise exauriente do caso e tentativa de tratamento por métodos dentro do Rol da ANS, para só então se iniciar um tratamento que seria mais apropriado, é prejudicial.

Há ainda um ponto complicado que é a recusa de atendimento em caso de o pedido de inclusão de um determinado tratamento ou método no Rol já ter sido indeferido no passado em análise da ANS.

Sabidamente, a ANS sofre pressão dos interesses privados das empresas fornecedoras de planos de saúde e, por vezes, pode vir a rejeitar um determinado tratamento ou método baseada unicamente no interesse econômico envolvido.

Assim, a negativa de cobertura por mero registro de não deferimento no passado me parece bastante temerária, porque não prevê a possibilidade de enfrentamento das razões dessa recusa.

Em resumo, a decisão cria uma expectativa de boa fé da ANS em manter-se atualizada e de acordo com os interesses científicos, o que, podemos pressupor, é permitir uma subjetividade perigosa.

Mudando completamente de assunto, no entanto, gostaria de propor outra discussão que pouco vejo ser questionada, que é o efeito que o julgamento faz de efetivamente legislar sobre o tema.

Não cabe ao Poder Judiciário criar leis ou normas. Ele deve, apenas, julgar e aplicar a Lei vigente. No entanto, não é incomum que tenhamos situações nesse sentido, nas quais os julgamentos criam verdadeiras normas, com indicações de hipóteses de aplicação de um ou outro direito.

Esse caso, em especifico, parece fortemente ter se inclinado nesse sentido, ao estabelecer uma longa categoria de normas e exceções, sem que haja expressamente leis ou normas válidas que as embasem. Certamente, isso será objeto de discussão por ambos os lados nos casos citados, já que ainda há espaço para recurso.

Esse tema, aliás, acredito que peça um artigo só para falarmos disso. Peço que continuem, por favor, me acompanhando para falarmos mais do assunto.

Em conclusão, e aqui peço licença para incluir minha opinião, o julgamento traz medidas rígidas e limita muito o acesso do consumidor a tratamentos fora do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, mas apresenta exceções razoáveis, com um espírito voltado ao atendimento à Ciência. O problema reside na possível urgência de tratamentos, bem como no risco de complicações frente à burocracia e ao jogo de interesses de empresas privadas e órgãos de classe, o que pode deixar o paciente desprotegido.

Mais do que nunca, buscar um bom advogado vai ser necessário. E, como sabemos, nem todos têm recursos para contratar um, o que implica em ainda mais espera da população por um atendimento nas Defensorias Públicas dos estados.

Vejamos os próximos capítulos dessa discussão. Até lá, saúde a todos!