Muitas vezes somos pegos de surpresa em nossa vida como consumidores quando um fornecedor nega atendimento a um pedido ou reclamação nossa usando como argumento alguma regra obscura, tal como uma Portaria de uma Agência Reguladora, que contradiz uma norma prevista em Lei. Alguns podem aceitar esse argumento, mas ele pode estar bem errado.

Recentemente, recebi um caso de uma cliente buscando ajuda frente a uma agência de viagens. Ela tentava um reembolso de compra de passagem aérea, dizendo ter feito o pedido de cancelamento uns dois dias depois da compra pela internet, mas a empresa dizia que não iria devolver valor algum porque existiria uma norma da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC, para os íntimos) que impedia.

Minha cliente ficou com dúvida porque sabia que o Código de Defesa do Consumidor dá 7 dias para cancelar uma compra feita pela Internet, mas a regra da ANAC supostamente daria só 24 horas, como alegava a empresa. Será que eles não tinham razão? A norma da ANAC seria aplicada, em vez do Código de Defesa do Consumidor, e ela teria perdido seu dinheiro? Seria um esforço em vão discutir isso numa ação judicial?

Antes de qualquer outra coisa, vou só aproveitar aqui para fazer um comentário off topic. Não existe ação judicial sem riscos! Se você encontrar alguém que te diga de “causa ganha” ou fale que entrar numa discussão jurídica não teria risco algum, desconfie. Toda ação é diferente e em toda situação jurídica cabe discussão. O famoso “depende”, tanto do caso, como da convicção do juiz.

Dito isso, vamos formular a pergunta no caso.

Quando existe mais de uma norma que trate de um mesmo assunto, qual se aplica?

E a resposta é, mais uma vez, depende.

Temos três regrinhas, três critérios, que ajudam a gente a responder às questões. Esses são a Hierarquia, o Tempo e a Especialidade.

Começando do começo, a Hierarquia.

No Brasil, assim como muitos outros países, as leis são estruturadas de cima para baixo, numa escala hierárquica, de direitos considerados mais importantes até os menos importantes.

No topo temos a Constituição Federal. Em seguida, as normas expedidas pelo Legislativo. Dentro dessas e nessa ordem, estão as Leis Complementares, que regulamentam assuntos especiais de maior atenção e importância (e que exigem um número maior de votos a favor para serem válidas), seguidas de Leis Ordinárias. Após, normas expedidas pelo Executivo e Judiciário, incluindo governos estaduais, municipais, agências reguladoras, etc., como Decretos, Portarias de Ministérios, dentre outras.

Devemos pensar nas normas jurídicas como uma pirâmide de hierarquia, na qual devemos buscar a norma aplicável sempre de cima para baixo, começando, portanto, da Constituição.

 

Imagem: G Lopez R.

 

Pelo critério da hierarquia, sempre que duas normas determinarem algo sobre um mesmo assunto, prevalece a norma de maior hierarquia.

Nota: Para quem quiser saber mais, a estrutura teórica da pirâmide normativa foi difundida pelo jurista austríaco Hans Kelsen, no livro Teoria Pura do Direito, que você pode encontrar em diversas versões e traduções dos mais variados preços. É uma leitura densa e mais apropriada para quem está no ensino superior sobre o tema. Mas, fica aí como indicação caso alguém tenha interesse.

Mas, lembrando, temos outros dois critérios.

O critério Tempo é bem simples. A norma mais recente prevalece sobre as demais, considerando que essa reflete o entendimento atualizado sobre o tema. Ou seja, mesmo que a norma antiga não tenha sido expressamente revogada, a mera existência da norma nova, sobre o mesmo tema, considera essa aplicável.

Um exemplo que podemos citar é o artigo 34 do Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689/1941 – o Decreto-Lei é um tipo antigo de norma, que hoje é equivalente, na maioria dos casos, ao conceito de Lei Ordinária). Quando publicado, o Código ainda previa regras sobre tratamento diferenciado para crimes cometidos para maiores de 18 e menores de 21, porque a maioridade civil só era atingida aos 21 anos pelas regras do antigo Código Civil (Lei nº 3.071/1916).

Com a entrada em vigor do atual Código Civil (Lei nº 10.402/2002), que estabeleceu a maioridade aos 18 anos (artigo 5º), embora a norma do Código de Processo Penal ainda esteja escrita e não tenha sido expressamente revogada, ela pode ser dada por superada e não é mais aplicável.

Por fim, temos o critério Especialidade, pelo qual a norma mais específica sobre um determinado tema prevalece. Isso porque podemos ter no Direito o que chamamos de Normas Gerais e Normas Especiais.

Se formos pensar na forma mais básica, a Constituição deveria ser a mais geral de todas as normas e, por isso, tem disposições mais generalistas, definindo questões mais amplas, como direito à vida, à saúde, à liberdade, etc. As leis produzidas abaixo da Constituição, assim, regulam como exercitar esses direitos, e as exceções.

Isso não significa que a Lei Ordinária está acima da Constituição. Só que, para um assunto específico, o exercício de um direito deve levar em consideração a situação específica e, por isso, aplica-se a Norma Especial.

Mudando um pouco o exemplo, o Código Civil é uma norma geral no que se refere à vida civil, já que, dentre suas regras, ele regulamenta contratos de compra e venda, por exemplo. Já o Código de Defesa do Consumidor regulamenta, especialmente, casos de relação de consumo. Ou seja, uma compra e venda entre um fornecedor e um consumidor será regulamentada pelo Código de Defesa do Consumidor, e não pelo Código Civil.

A Especialidade parece rivalizar com a Hierarquia, mas só parece. Isso porque a Especialidade cria exceções e indica condições, mas ela jamais pode negar acesso a direitos mais amplos. A norma hierarquicamente superior precisa ser preservada.

A exemplo, podemos citar leis que foram julgadas como inconstitucionais por impedirem acesso a direitos, como a proibição da circulação de motocicletas ou serviços de mototáxi, que aconteceu na cidade de São Paulo. Apesar de, teoricamente, visarem garantir mobilidade e segurança, na prática, elas impediam a utilização de motocicletas, a livre circulação e o exercício de direitos garantidos pela Constituição.

Em outras palavras, mesmo uma exceção criada por uma Lei Especial tem limites que garantem a preservação de direitos mais amplos.

Com esses argumentos em mente, vamos voltar para o caso que citei, da minha cliente.

A tal norma da ANAC realmente existia, a Resolução nº 400/2016, que dizia:

Art. 11. O usuário poderá desistir da passagem aérea adquirida, sem qualquer ônus, desde que o faça no prazo de até 24 (vinte e quatro) horas, a contar do recebimento do seu comprovante.

Parágrafo único. A regra descrita no caput deste artigo somente se aplica às compras feitas com antecedência igual ou superior a 7 (sete) dias em relação à data de embarque

A interpretação adotada pela agência de viagens estava errada, na medida em que a norma não dizia que seria impedida a desistência, só que essa não seria aceita “sem qualquer ônus”, ou seja, seria permitida aplicação de eventual multa.

Contudo, as normas da ANAC são aplicáveis para qualquer compra de passagem aérea, sendo, nesse sentido, generalistas. Além disso, são normas criadas por uma Agência Regulatória, abaixo do padrão de regramento de uma Lei, como é a Lei nº 8.078/1990, Código de Defesa do Consumidor, que é aprovada pelo Legislativo, com amplo quórum.

O Código de Defesa do Consumidor, além da hierarquia superior, é norma especial, pois estabelece regras para as relações entre fornecedor de produtos e serviços (aquele que atua com regularidade num determinado ramo, como objeto de trabalho) e o consumidor (que consome para uso final e pessoal).

E, nesse caso, o Código de Defesa do Consumidor determina o seguinte:

Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.

Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.

Em outras palavras, até 7 dias da data da compra, seria possível o cancelamento sem custos.

Então, por dois critérios, podemos entender que, sim, o Código de Defesa do Consumidor deveria ser respeitado.

E foi o que aconteceu no caso. Foi reconhecido o direito no cancelamento da compra e a devolução do dinheiro integral.

Se tiver interesse, a Sentença do caso é pública, e pode ser consultada no site do Tribunal de Justiça de São Paulo, Processo nº 1022911-48.2021.8.26.0003, ou, ainda, se quiser analisar o meu trabalho, pode acessar a Petição Inicial do processo, feita por mim.

Espero que esse texto tenha dado um gosto de como é trabalhar com o Direito a vocês, leitores. Mas, como sempre digo, procure sempre um advogado. Existem muitos detalhes escorregadios e pegadinhas, e um profissional vai poder te auxiliar nisso.

Ah, e havendo algum assunto de interesse que eu aborde num futuro texto, por favor, manda aqui nos comentários.

Abraços causídicos.

 


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