Todos podemos imaginar a arte buscando representar algo. Acredito nisso. Algumas vezes pode acontecer até de modo subconsciente, sem um preparo prévio. Este ensaio mesmo, não sei ao certo seu objetivo, mas esta seria sua grande beleza. Tal flexibilidade aproxima as pessoas da arte e as permite interpretar de diversas maneiras. Sendo uma delas a metáfora.
Metáfora é basicamente dizer algo com outra roupagem, menos ou mais explicitamente, e tem a força de gerar reflexões inúmeras. Durante um banho, uma dessas metáforas me atingiu: posso entender tranquilamente Jogos Vorazes, a trilogia de livros e filmes, como representativo da realidade social de um solteiro.
Me acompanhe nessas comparações. Usarei termos menos formais, muitas vezes, pois o jogo de palavras será de suma importância para estabelecer alguns paralelos. Além de deixar todo o texto mais palatável para você. Ou assim espero.
Comecemos com o mundo pós-apocalíptico de JV (Jogos Vorazes). Jovens de diversas castas, ou distritos, são lançados sem dó em arenas engenhadas por humanos para foderem o máximo que puderem com os outros, antes de serem eles mesmos fodidos. Abusando do trocadilho, isso não seria o mesmo que nós temos de fazer após entrar na puberdade? Somos socialmente “forçados” a ir para locais artificialmente engenhados, como baladas, festas, shows e afins, com o objetivo de “se dar bem”. Logo… foder com o máximo de pessoas.
Na obra, são contados os abatidos, surgem torcidas, planos são traçados. Aqueles fora da arena se deliciam com isso. E para a vida de solteiro? O mesmo surge. Quem nunca participou ou presenciou (acredito ser uma coisa mais masculina de se fazer, mas enfim…) de uma contagem de pontos de “ficadas” na balada. Grupos de solteiros contando vantagens com a quantidade de vitórias e, por que não, “abatimentos” num final de semana. Isso os empodera e melhora sua performance, algo a ser tratado mais à frente também. Já as torcidas, isso é obviamente mostrado no sucesso de reality-shows das TVs do mundo inteiro, gerando audiência e repercussão. Quando alguém transa em um BBB da vida, o Facebook e sites de notícias vão ao delírio por dias.
Assistir aos Jogos Vorazes é socialmente obrigatório nos livros e a grande massa, por estar fora desse processo, acaba se divertindo. Principalmente os viventes do capitólio, isento de enviar tributos. Chegue numa roda de conversa de pessoas comuns, no AUGE de um BBB, e diga que esse programa é uma pura exposição de assédio, besteira e desinformação. Aposto como será olhado de outra forma por aquele grupo, com estranheza ou sarro. Ou seja, nossa sociedade também “obrigatoriezou” o acompanhamento de tais coisas para ser bem aceito.
Seguindo adiante para um outro paralelo, temos a questão das amizades e dos aliados. Em JV, “grupos de caça” surgem para retirar do jogo o maior número de concorrentes possíveis, com a menor baixa para eles. Tributos com preparos próximos ou similares se unem e se protegem numa primeira etapa. Entretanto, avançado o jogo, apenas um pode restar e os grupos se despedaçam e seus membros se digladiam pelo prêmio final. Na vida de solteiro temos uma percepção similar. Pessoas similares, ou amigos, se unem e vão para a balada juntos. Dessa forma conseguem chamar a atenção das pessoas, se expor e arriscar mais, ainda dentro de um grau tolerável de proteção. Uma rejeição é menos impactante quando seus amigos passam por isso também e tudo é levado na brincadeira. Seria como, nos JV, se os membros dos grupos se machucassem, mas não fossem mortos. Porém, quando essa etapa termina e uma pré-seleção foi feita, os amigos também se separam na balada e passam a ser concorrentes. Irão, ao final da noite, se reunir e começar a se “digladiar”, contando vantagens e histórias ocorridas. Aquele que não tiver tanto êxito, sofrerá muito mais bullying em relação aos outros.
Podemos até associar esse conceito com a temível “friend zone”, um termo cunhado de modo cretino e do qual discordo inteiramente, mas isso seria assunto para uma outra reflexão. Um solteiro (uso os termos masculinos pelo caráter machista da nossa gramática, mas entendam: podem ser homens ou mulheres) que se dedica exclusivamente ao cuidados de outra pessoa, irá fatalmente acabar sozinho. Chamam isso de “FriendZone”, mas para mim é apenas falta de atitude. Nos livros, a fatalidade se mostra presente para aquele que também se comportar assim num grupo de caça. Se cuidar demais e proteger os outros, provavelmente será o primeiro a ser deixado para trás ou, simplesmente, morto, por puro comodismo. O solteiro e o tributo com esse perfil são vistos da mesma forma. Algo menor e de pouca valia. Apenas tolerável ou divertido de estar por perto, até não ser mais necessário e conflitar com os pensamentos dos mais preparados.
Falando em preparo e incluindo o tópico de ajuda externa, sigo para outro pensamento. Manterei uma sequência cronológica da vida dos tributos, traçando os devidos paralelos com a “solteirisse”.
O mundo de JV não é fácil de ser vivido, tirando para uma seleta elite, e a vida de solteiro também não. No livro, os jovens são recompensados e incentivados a se inscreverem para os jogos, ganham mais rações de comida e outras regalias conforme se colocam mais e mais à disposição para jogar. Correndo riscos tremendos, mas, ainda sim, considerando o menor dos males. Na vida de solteiro acontece o mesmo. Socialmente incentivamos os solteiros a sair mais e se expor mais. Incentivamos em casa, é incentivado nas mídias e por assim vai. E qual a recompensa desse maior esforço? Respeito social e integração com os que já passaram por isso. Fale para a sua mãe, ainda morando com ela aos 30 anos, que não quer se relacionar com ninguém. Que quer fugir de qualquer contato humano no quesito relacionamento e sexo. Será uma briga boa. Tenho alguns amigos assexuados, no sentido literal emotivo do conceito. São vistos como aberrações, mutações inadequadas e até mentirosos. Sofrem ou já sofreram muito com descolamento social por suas escolhas.
Em nossa realidade, solteiros têm preparos e capacitações diferenciadas para irem atrás de parceiros e conquistas sexuais, seja intelectual, financeira ou socialmente. Um rapaz que o papai deixa usar o carro elitista, têm mais chances de sucesso que o utilizador de um veículo popular, mas ainda é melhor que o coitado com uma bicicleta. Inclusive, se alguém conta que levou a garota para o motel de bike ou de ônibus, é visto como um rei da sedução, pela pura desvantagem inicial possuída. A arte, mais uma vez, copiou a vida. Vemos claramente os tributos de distritos mais nobres, com números menores, infinitamente mais preparados para o combate que a galera dos distritos onze e doze. Possuem preparo físico definido, equipamentos e regalias. Chegam nos jogos como quase garantias de vencedores. E, como mencionei acima, costumam ser os principais integrantes dos grupos de caça.
Fechando esse aspecto. Todos os tributos devem conquistar patrocinadores, os quais irão ajudá-los antes e durante os jogos. Para isso, cada um expõe incansavelmente suas melhores habilidades e características. O desejo é ser notado e gerar interesse. Onde fazemos isso nos nossos jogos solteiros? Nas redes sociais. A apresentação dos tributos é uma metáfora maravilhosa para o Facebook. Aqueles chamando a atenção são gratificados e patrocinados também. Têm seus posts e comentários replicados, são chamados para conversas, “tagados” e assim por diante. Todo esse auxílio dos “patrocinadores” é refletido em exposição benéfica, atraindo mais o olhar de outros solteiros ou pessoas disponíveis.
Enfim, como um fechamento, afinal já me alonguei demais. Trago para debate o prêmio final, a peculiaridade da vitória mostrada no livro e a frustração da sociedade perante a realidade do casamento.
Quem sobrevive nos JV, único naquele ano, é recompensado com riquezas sem fim, a segurança de seu status de vencedor e uma vida de prazeres. Pois bem, o vencedor da balada também. O solteiro vencedor leva o último ficante da noite para a cama, obviamente representado pela vida de riquezas e prazer. Além de, dali para frente, ser visto como um vencedor pelos seus pares. Sua segurança de status é a confiança, facilitando todo o processo da festa seguinte.
O que quero dizer com peculiaridade da vitória? Bom, no primeiro livro temos uma vitória diferente. Dois tributos, mostrando amor incondicional, são considerados vitoriosos e premiados. O que é isso, em paralelo? O casamento. Dois solteiros que “vencem” juntos se tornam algo diferente, algo peculiar. Tudo isso baseado numa promessa pública de união, lealdade e envolvimento. A particularidade é tão atípica (para nós, querer casar é até estranho, hoje em dia, e visto como uma bomba relógio) que afeta a segurança dos vencedores no ano seguinte, sendo obrigados a retornar aos Jogos como tributos. Tanto na separação, quanto no trato social, existe um limite para os solteiros vitoriosos. Estão fadados a retornar ao jogo e se arriscar a, finalmente, perderem.
A frustração social está relacionada a essa peculiaridade também. No livro, Katniss e Peeta tem de ficar se expondo e se mostrando constantemente como um casal perfeito e feliz, recontando sua história e reafirmando seu amor indestrutível. Só assim a sociedade julgadora, a elite do capitólio, pode tolerar aquela situação. A transfiguração do ato em fato onírico é suficiente para ser visto como maravilhoso e justificado mentalmente como fantástico, algo similar aos contos de fadas. Quando Katniss usa esse canal de comunicação para se transformar em MockingJay, queimando suas delicadas roupas e apresentando a realidade negra por baixo, tudo desmorona. Essa cena não é nada menos, nesse nosso contexto, que um casal supostamente feliz e realizado usar as mídias de comunicação para discutir e expor seus problemas, mostrar que o casamento existe e é válido, mas não chega nem perto de ser perfeito. Um post com esse conteúdo nas redes sociais reverbera brutalmente. Basta lembrarmos quando a Fátima Bernardes e o Bonner avisaram de sua separação. O Facebook quase mudou de azul para o preto, com o “luto” pelo casal.
Pois bem, poderíamos falar outros pontos, como Katniss se sacrificando para proteger a irmã demasiadamente jovem dos jogos e assim vai, mas deixo isso com vocês. E espero seus comentários.
Um enorme e metafórico abraço!