A essa altura do campeonato, é possível que você já conheça pelo menos um pouquinho do SUS, certo? Se você leu meu texto anterior, sabe que quero transformar você e o Sistema Único de Saúde em grandes amigos. Então, para encerrar essa série em grande estilo, vamos conversar um pouquinho sobre ciência, tecnologia e inovação na saúde pública brasileira.

Vocês já devem estar carecas de saber que a Constituição Federal de 1988 é a certidão de nascimento do SUS. Mas e se eu te disser que ela também fala sobre inovação em saúde? Pois é, no seu artigo 200, inciso V, ela responsabiliza o governo federal pela promoção do desenvolvimento científico e tecnológico nessa área.

Para estimular a produção do conhecimento voltado às necessidades do SUS, em 2003 foi criada a Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE). Ela também é responsável pela implementação das políticas de assistência farmacêutica, de avaliação e incorporação de tecnologias no SUS.

E se é para dar conta de tanta coisa, obviamente que a SCTIE não ia trabalhar sozinha, tendo como principais parceiros o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), as Fundações de Amparo à Pesquisa estaduais (FAPEs) e as secretarias estaduais de saúde.

Mas a história da inovação em saúde começa bem antes disso, em 1994, com a I Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde. Nela foram definidas as bases da Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde (PNCIS), que é parte integrante da Política Nacional de Saúde. Apesar de tão antiga, a PNCIS só é consolidada 10 anos depois, através da SCTIES – e qualquer semelhança disso com a própria implantação do SUS é mera coincidência, risos.

E falando nisso, lembram que o SUS tem 3 princípios, não é? Universidade, integralidade e equidade. Como a PNCIS é parte integrante desse grupo, suas ações devem ser coerentes com uma concepção integral de saúde e dos seus determinantes.

Porém nem tudo são flores, e muitas vezes não é possível seguir à risca nem os princípios doutrinários ou até os organizacionais – municipalização, hierarquização e regionalização – pela natureza das ações mesmo. Mas ainda assim, esses fatores devem ser levados em conta sempre que possível.

Princípios da PNCIS

Além e seguir os princípios do SUS, a PNCIS estabelece 5 itens que devem nortear todas as pesquisas realizadas por seus parceiros:

  1. Respeito a vida e a dignidade humana;
  2. Melhoria da saúde da população brasileira;
  3. Busca da equidade;
  4. Inclusão e controle social;
  5. Respeito à pluralidade filosófica e metodológica.

Dessa forma, para colocar em prática seus princípios, as pesquisas subsidiadas pela PNCIS devem estar em consonância com 9 parâmetros básicos:

  1. Extensividade: essa palavrinha complicada significa que as pesquisas precisam buscar intervir em diferentes âmbitos do conhecimento, mesmo que não haja aplicação imediata para seus resultados. Deve incluir ainda concepções diferentes sobre saúde, com respeito ao conhecimento popular e tradicional de povos originários, quilombolas, ribeirinhos, populações rurais, dentre outras;
  2. Inclusividade: incluir diferentes atores sociais – pesquisadores, gestores, profissionais e usuários do SUS – no processo de produção do conhecimento científico, apoiando-os em suas iniciativas e disseminando os resultados;
  3. Seletividade: escolha de temas prioritários de pesquisa conforme necessidade mais proeminentes do SUS;
  4. Complementaridade: combinação entre a indução de temáticas e a demanda espontânea. É um item importante para não minar a criatividade envolvida no processo de pesquisa;
  5. Competitividade: os projetos financiados são escolhidos de acordo com a lista de temas prioritários e por sua relevância;
  6. Mérito: item que busca garantir a qualidade das pesquisas, avalia os méritos científico, tecnológico e ético;
  7. Relevância: leva em consideração a aplicabilidade e os benefícios sociais, econômicos e técnicos trazidos pelos projetos;
  8. Responsabilidade gestora: diz respeito ao dever de transparência e fiscalização dos recursos;
  9. Controle social: é realizado através dos conselhos em âmbito local, municipal, estadual e nacional, que fiscalizam e acompanham o andamento das ações.

Como é na prática?

Tradicionalmente os levantamentos de dados sobre as pesquisas em saúde contabilizam apenas os estudos das áreas clínica, biomédica e de saúde pública. Assim, ficam de fora obras de outros campos do conhecimento que podem abordar temáticas ligadas à saúde e seus determinantes, como engenharias, ciências sociais e agrárias, por exemplo.

Sobre os custos com ações de CTI/S também não há dados consolidados unificados, por conta da diversidade de setores produtivos envolvidos. Já na área acadêmica, as informações sobre os investimentos costumam oferecer estimativas, mas levando em conta quais projetos são considerados como pesquisa em saúde, é provável que os valores estejam abaixo do estimado – e vocês não tem noção do quanto esses dados estão dispersos! Em bom português, as informações não são precisas e estão espalhadas.

Mas e agora, José? Então não se sabe o que esse povo pesquisa? Calma, não é bem assim. Vamos lá, lembram que lá em cima falei quem existiam temas prioritários? Pois é, são 2 listagens elaboradas com metodologias diferentes, que servem para a mesma coisa, mas chegaram em resultados diversos.

Agendas de pesquisa:

A Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde é composta por 24 subagendas e foi elaborada através de 5 etapas: avaliação da situação de saúde, através de consulta a especialistas; definição de subagendas; escolha das temáticas de pesquisa, desde a básica até a operacional e realizada através de plenárias; consulta pública aos trabalhadores e usuários do SUS em 2004; e a realização da 2ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde.

Deu para perceber que foi um processo bem comunitário e que envolveu vários setores, não é? Segue a listagem dos temas definidos:

  1. Saúde dos povos indígenas;
  2. Saúde mental;
  3. Violência, acidentes e trauma;
  4. Saúde da população negra;
  5. Doenças não-transmissíveis;
  6. Saúde do idoso;
  7. Saúde da criança e do adolescente;
  8. Saúde da mulher;
  9. Saúde dos portadores de necessidades especiais [gente, eu sei que esse termo não é mais usado, mas como é ele que está no documento, optei por manter];
  10. Alimentação e nutrição;
  11. Bioética e ética na pesquisa;
  12. Pesquisa clínica;
  13. Complexo produtivo da saúde;
  14. Avaliação de tecnologias e economia da saúde;
  15. Epidemiologia;
  16. Demografia e saúde;
  17. Saúde bucal;
  18. Promoção da saúde;
  19. Doenças transmissíveis;
  20. Comunicação e informação em saúde;
  21. Gestão do trabalho e educação em saúde;
  22. Sistemas e políticas de saúde;
  23. Saúde, ambiente, trabalho e biossegurança;
  24. Assistência farmacêutica.

Mesmo com esse mundaréu de temas, o Ministério da Saúde publicou uma agenda própria de prioridades, composta de 172 linhas distribuídas em 14 eixos. Segundo o órgão, essa lista não substitui a anterior e só foi criada para servir de base ao planejamento institucional e destinação de recursos nos próximos 2 anos. Na prática, é como se fosse a prioridade da prioridade, diminuindo a quantidade de verba a ser destinada. Vamos a lista:

  1. Ambiente, trabalho e saúde;
  2. Assistência farmacêutica;
  3. Avaliação pós-incorporação;
  4. Desenvolvimento de tecnologia e inovação em saúde;
  5. Doenças crônicas não-transmissíveis;
  6. Doenças transmissíveis;
  7. Economia e gestão em saúde;
  8. Gestão do trabalho e gestão em saúde;
  9. Programas e políticas de saúde;
  10. Saúde da mulher;
  11. Saúde da população negra e das comunidades tradicionais;
  12. Saúde do idoso;
  13. Saúde indígena;
  14. Saúde materno-infantil.

Algumas áreas foram distribuídas em subtemas dos eixos, como foi o caso de saúde mental; já outras sumiram completamente, tipo a saúde bucal. Isso somado a um cenário de diminuição progressiva dos investimentos em pesquisa, cortes de bolsas em programas de iniciação científica e de pós-graduação, além de quedas nos repasses e mudanças no financiamento de diversos serviços no SUS, tornam o cenário preocupante há bastante tempo.

A ideia central dessa série de textos nunca foi mostrar o SUS como se fosse perfeito, mas sim mostrar sua amplitude e desafios inerentes ao próprio sistema. Desde o começo dessa aventura quis passar informações que fui coletando para que cada um de vocês fizesse sua própria análise sobre a saúde pública no país.

O que abordei aqui foi somente um pedacinho do que é o fazer em saúde no Brasil. Ainda faltou falar de muita coisa, mas agradeço todo mundo que teve paciência e curiosidade de acompanhar. Fiquem à vontade para continuar pesquisando e tirando dúvidas! Mas me responde uma coisa, agora você conhece o SUS?

 

REFERÊNCIAS (clique para acessar):

Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde

Agenda de Prioridades de Pesquisa do Ministério da Saúde

Avaliação da implantação da Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde no Brasil

Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde

Lei Orgânica da Saúde

Observatório de Análise Política em Saúde

O que é inovação em saúde pública?

Pense SUS

Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde