Qual é o objetivo principal da ciência? Se concordarmos que é fazer predições para situações desconhecidas, uma ferramenta que pudesse fazer predições corretas apenas observando dados excluiria a necessidade de termos teorias científicas? É bom pensarmos sobre isso, pois já está acontecendo.

Um artigo publicado na Nature Scientifc Reports está mexendo com a cabeça de muitos cientistas. Um resumo simples desse artigo seria:

O cientista Hong Qin do Laboratório de Física do Plasma de Princeton criou uma nova metodologia de aprendizado de máquina (machine learning) que é capaz de prever de maneira acurada as órbitas dos planetas do sistema solar. Além disso, ainda pode ser usada para predizer e controlar o comportamento de plasma em experimentos de fusão nuclear.

Ok, até aí não há nada muito novo, pois machine learning vem sendo usado na ciência de base a bastante tempo pra fazer previsões baseado em dados. Inclusive muitos métodos e algoritmos foram criados por físicos ou inspirados por problemas de física. O que é interessante sobre esse trabalho é a maneira como a metodologia foi construída, tendo sua base na filosofia e na possibilidade do universo fazer parte de uma simulação de computador.

Tutorial de Física

Bom, primeiro vamos pensar como usualmente ocorre o trabalho de um físico, com exemplos, para entendermos bem o contexto. 

Antes de tudo surge um problema a ser estudado. Pode ser por pura curiosodade ou por necessidade. Digamos que temos como objetivo estudar os planetas do sistema solar: queremos mandar sondas para eles; saber sua composição; conhecer o destino dos planetas no futuro.

Para atingir esse objetivo precisamos saber onde os planetas estão e estarão no futuro, para podermos enviar as sondas, certo? Assim, temos uma necessidade de obter uma teoria que possa nos dizer qual será a posição dos planetas em cada instante de tempo.

Com isso fazemos observações (medições de algum tipo), ou seja, usamos telescópios para mapear, digamos, a posição em que cada um está em cada instante de tempo.

Com base nesses dados damos início a um estudo rigoroso para criar uma teoria. Essa teoria é composta de um conjunto de regras (normalmente aliadas a relações matemáticas entre as variáveis que desejamos prever) que devem ser testadas dentro do contexto desejado. Devemos lembrar que essas regras não precisam funcionar para todo e qualquer fenômeno, elas podem ser uma aproximação ou simplificação que funciona para os casos específicos que estamos estudando (veja: As suas memórias são uma mentira).

Para o problema proposto podemos ter criado uma teoria como a da Gravitação Universal de Newton ou ainda a Relatividade Geral de Einstein. Com as equações que desenvolvemos podemos inserir as posições desse exato momento da Terra e Marte, por exemplo, e “perguntar” quais serão elas daqui a um ano. A “resposta” é a predição da nossa teoria.

Agora podemos começar a planejar como enviaremos as sondas para os outros planetas, além de usar a teoria também para predizer e controlar o comportamento da sonda durante a viagem, pouso e etc.

Esse desenvolvimento é um roteiro simplificado de como funciona o desenvolvimento de estudos científicos:

  1. Problema
  2. Observações
  3. Teoria
  4. Testes
  5. Predições
  6. Aplicações

A caixa preta

Quando um algoritmo de aprendizado de máquina é usado para fazer predições, uma etapa desse processo é pulada, a parte da teoria. Damos ao algoritmo diversas observações para que ele aprenda.

Boa parte dos algoritmos é de um tipo chamado de caixa preta (redes neurais, por exemplo). Recebem esse nome por que não é possível ou é muito difícil descobrir como eles tomam as decisões. Não é como se eles formassem uma equação que pudéssemos olhar e ver como cada variável está contribuindo para o resultado.

Pense nisso como se déssemos várias observações para uma pessoa para que ela desenvolva uma teoria (que não nos importa qual é ou como funciona). Depois de pronta fazemos perguntas para a pessoa e ela nos dirá (com base na teoria) qual é a predição (resposta da nossa pergunta).

O resumo desse desenvolvimento é:

  1. Problema
  2. Observações
  3. Treino do algoritmo
  4. Predições
  5. Aplicações

Durante a etapa de treino do algoritmo ele faz o processo que seria equivalente a criação da teoria e seus testes.

A boa e velha Matrix

Algumas pessoas podem dizer que desse jeito podemos até fazer predições, mas não estamos entendendo o que acontece, quais são as leis da física por trás daquele fenômeno. As leis podem ser a coisa mais importante de todo o desenvolvimento científico.

Por outro lado, outras pessoas podem afirmar que a compreensão da teoria tem como utilidade fazer as predições corretamente, ou seja, as predições são o objetivo primordial da teoria.

Se for assim, o próprio algoritmo está fazendo ciência por nós, ele aprende as leis da física, só não ficamos sabendo quais são elas. Só esse assunto já renderia uma discussão longa, mas vamos seguir para o próximo passo.

O autor desse trabalho, Hong Chin, foi inspirado pelo experimento mental do filósofo Nick Bostrom de que o Universo é uma simulação de computador. Se isso for verdade, o universo não pode ser contínuo, deve ser discreto.

Invarialvelmente, por mais que se aumente a precisão dos cálculos de um computador, ele sempre irá fazer contas com números discretos. Isso quer dizer que o Universo é feito pedaços individuais de espaço-tempo, como se fossem pixels em um jogo de video game.

Com essa ideia de Universo discreto, o autor usou uma metodologia comum na Física chamada, Teoria de Campos Discreta. Esta é uma maneira de explicar o Universo como se ele fosse composto dessas pequenas unidades de espaço-tempo. Para o computador é então apenas uma questão aprender a organizar essas unidades, sem a necessidade de tentar explicar o comportamento do Universo em si.

Usando essa metodologia (para um aprofundamento maior veja o artigo original) ele conseguiu predizer órbitas de planetas de maneira muito acurada. Agora ele e um colega estão aplicando o método para predizer o comportamento de partículas que formam plasma, com o objetivo de poder manipular fusão nuclear.

Conclusão

Esse trabalho nos faz pensar em questões importantes:

  • Se algoritmos desse tipo fossem capazes de predizer qualquer coisa desde que tivéssemos observações, precisaríamos de teorias?
  • Iríamos querer essas teorias?
  • E se isso acontecer, o papel da ciência mudaria para nós?

Entretanto a pergunta mais intrigante na minha opinião é:

  • Se esse tipo de metodologia funcionar sempre, teríamos um forte indício de que estaríamos vivendo em uma simulação?

Se esse texto te despertou curiosidade recomendo ler os trabalhos do filósofo Nick Bostrom. Uma seleção dos seus trabalhos pode ser encontrada no seu site pessoal.