Eu sempre achei muito interessante e importante a representação da diversidade, nas suas mais variadas características, em todos os meios de mídia. Afinal, quem não gosta de se identificar com o meio que mais te entretém?
Quando vemos a representação de minorias, o principal assunto que vem a pauta, naturalmente, são questões relativas a etnias, sexualidade e origens culturais, sendo muito relevantes diante dos históricos casos de violências e preconceito. Outra forma que vem ganhando atenção é a representatividade positiva das classes econômicas mais humildes, sem o rebaixamento perante classes de maior capacidade financeira, como, por exemplo, no filme “Que Horas Ela Volta?”, de 2015.
No que toca a representatividade de pessoas com deficiência, é bastante comum a vermos mediante histórias de superação ou frente a deficiência físicas, tal como visual, de locomoção, etc. Alguns filmes e séries são bastante interessantes, conhecidos e respeitados nesse tópico, como, por exemplo, o filme francês Os Intocáveis, que trata de um homem tetraplégico, e o filme de animação japonesa A Voz do Silêncio, que trata de uma garota com perda auditiva e dos efeitos negativos que um garoto que pratica bullying com ela sofre.
Dito isso, são poucas as obras que retratam pessoas neurodivergentes. E as poucas que existem as colocam, na maior parte, como párias, pessoas disfuncionais com graves problemas de socialização e solução de conflitos, ou, então, pessoas com algum tipo de “superpoder” incompreendido.
Os exemplos mais famosos e recentes nesse sentido são as séries Atypical (Netflix, 2017), The Good Doctor (American Broadcasting Company, 2017) e Uma Advogada Extraordinária (Netflix, 2022).
Dos exemplos citados acima, dois deles caem no equívoco do “superpoder”, como o médico Dr. Murphy, que tem lampejos de genialidade e memória fotográfica, o que, em parte, é compartilhado pela advogada Woo Young Woo. Atypical, por sua vez, trata a história de um ponto de vista dramático, mais ligado às dificuldades das terapias, enorme consumo de energia da família para auxiliar no tratamento e na habilitação da pessoa autista para se enquadrar no padrão social.
Longe de querer ditar o gosto das pessoas, eu sentia essas questões como incompletas. Senti que faltava a presença de um autista atuante, alguém capaz de tomar decisões por si, sem medo, apesar de suas dificuldades decorrentes do Transtorno do Espectro Autista.
E, talvez mesmo que sem querer, Ryoko Kui deu de presente à comunidade Dungeon Meshi, ou no título dos EUA, Delicious in Dungeon.
A série, originada do mangá de 2014, é uma aventura de fantasia medieval, com elementos clássicos de aventuras de RPG, em que os personagens formam um grupo para se aventurar na masmorra em busca de um objetivo, no caso, salvar a irmã do líder da equipe, Laios Touden.
Cada membro da equipe de protagonistas e dos personagens secundários expressa culturas bastante diferentes e, embora a criadora, quando questionada, disse não ter se inspirado no TEA para a criação dos irmãos Touden (que refletia mais uma diferença de culturas com a visão japonesa), é bastante evidente que o personagem tem claros traços de personalidade que poderiam ser interpretados como se enquadrando dentro do espectro autista.
Laios é o líder do seu grupo de aventureiros, e uma personalidade bastante ativa na comunidade que participa. Ele é conhecido por uma curiosidade ingênua e por sua clara dificuldade em “ler o ambiente” e identificar os sentimentos e intenções das pessoas a sua volta. Já nos primeiros episódios o personagem demonstra sua clara falta de preocupação com o julgamento alheio na forma que fala e se comporta, além de um evidente hiperfoco no estudo de monstros, sua ecologia, história e, claro, em quão gostosos eles são quando cozidos (um dos temas do anime).
Mas, o que é mais relevante, esses detalhes de Laios somente são aparentes para as pessoas mais próximas a ele. Para a sociedade em geral, ele só é um cara meio “esquisito”.
Em 2024, a criadora Ryoko Kui disse não pensar em nada especial quando criou o personagem, e que ela acredita que “qualquer um pode se identificar com uma pessoa como ele”. Aí é que está!
Uma pessoa autista pode ser qualquer um mesmo, e muitas vezes ela não passará de alguém meio estranho. Um autista não precisa ser alguém com “superpoderes” nem um personagem trágico. Somente alguém. Uma pessoa como qualquer outra, com seus pontos fortes e desafios perante o mundo a sua volta.
No começo da história, Laios já é muito bem conhecido pela sua excentricidade pela maior parte do elenco mas, mesmo assim, não é visto como incapaz de ser um aventureiro competente. Ao contrário, ele é bastante competente angariando riquezas no início de suas aventuras, as quais compartilha com seus colegas aventureiros.
Os pontos de divergência, no entanto, são bastante evidentes. Laios é incrivelmente focado em aprender sobre monstros, o que faz ele estudar livros e o comportamento deles. Esse fascínio por criaturas que ameaçam a vida dele e de seus companheiros não é usualmente compartilhado pelos outros, visto como algo bizarro e desagradável. Porém, é esse mesmo fascínio que, por diversas vezes, salva a vida sua e dos demais companheiros, entendendo como se defender corretamente das ameaças.
Essa visão de um estudo da realidade de forma aprofundada, encontrando satisfação no conhecimento em si e na interação com o ecossistema da masmorra, me parece bastante similar ao hiperfoco que eu e muitos neurodivergentes e pessoas com TEA experimentamos. E, embora sejamos considerados “esquisitões”, muitas vezes é esse mesmo comportamento que faz com que sejamos reconhecidos pelo que produzimos.
Laios, também, tem o hábito de não conseguir interpretar corretamente o que os outros pensam, ou como se comportar perante os outros. Mas, apesar de isso ser um problema para ele, não deixa de ser uma pessoa ativa socialmente.
Dois episódios são bastante emblemáticos nisso [ALERTA: spoilers leves a frente].
Um faz referência a um antigo colega do grupo de aventuras, que Laios via como seu primeiro e mais querido amigo, mas que na verdade desprezava Laios por ser invasivo com sua curiosidade e por não conseguir “ler” a emoção de que não estava interessado, o que gera uma briga entre eles. No meio da briga, Laios simplesmente diz “E por que não disse nada antes?”.
Sobre isso, para mim, está um claro destaque de como a comunicação é uma via de mão dupla e que, embora exista uma deficiência por parte de um neurodivergente, isso não significa que não queremos nos integrar de forma a sermos gentis e agradáveis. Basta uma simples conversa para entendermos coisas que, muitas vezes, não conseguimos perceber por simples subjetividade.
Porém, é por essa mesma visão diferente que Laios consegue observar detalhes das pessoas que admira. Em outro episódio, o grupo é alvo de um monstro que cria clones ilusórios de todos, e eles precisam descobrir quem são os clones. E cabe a Laios, o único cujos clones são obviamente falsos e são afastados, a resolver quem é real dentre os demais. São detalhes como o carinho, os interesses, os medos e até os gostos de seus companheiros, além de mera aparência ou comportamento simples, pontos de vista diferentes do padrão, que fazem Laios solucionar a questão e ajudar seus amigos.
A experiência do personagem, para mim, foi algo incrível e eu finalmente entendi o que é se sentir representado num personagem. Isso porque, como autista de grau de suporte 1, ou seja, uma pessoa com limitações mas com uma vida social e profissional regular, enfrento os mesmos problemas.
Uma pessoa com grau de suporte 1 é vista socialmente como “autista leve” e, por isso mesmo, sua deficiência é normalmente negligenciada ou desconsiderada. Ela é taxada como preguiçosa, distraída, pouco esforçada ou tantas outras questões pejorativas. Mas é sim uma pessoa capaz, que quer se esforçar a ser feliz e realizada. E com o suporte certo, é capaz de mover montanhas.
“Eu não sabia que era autista, mas sabia que era diferente”. Essa fala é da influenciadora Tabata Cristine (no Instagram, @tabata_meumundoatipico). Segundo ela costuma dizer (e eu compartilho), não existe autismo leve. Mas, ao que vejo, isso tudo dependente do suporte ao nosso redor, e do reconhecimento dos nossos esforços em viver juntos em sociedade.
Porque, acreditem, nós autistas também queremos ser felizes e queremos nos sentir orgulhosos com nossas realizações. E, por isso que personagens como Laios, para mim, são tão incríveis. Eles trazem uma luz de que pessoas autistas podem ser qualquer um, alguém com quem você, neurotípico ou neurodivergente, “pode se identificar com uma pessoa como ele”. E, por isso, que me sinto tão feliz em me sentir representado assim.
Eu não tenho superpoderes, e minha vida não é um eterno drama. É comédia, é aventura, é ficção científica, é fantasia, e tudo mais. Eu sou alguém tão complexo como qualquer outra pessoa. Sou alguém como você.
Abraços, um bom final de ano a todos, todas e todes!
(Imagem de capa. Retrata o personagem Laios da série Dungeon Meshi. Direção por Yoshihiro Miyajima. Escrito por Kimiko Ueno. Roteiro original em mangá de Ryoko Kui. Estúdio Trigger, 2024. Disponível na Netflix.)