Texto de Lucas Kolln

A imigração foi e segue sendo um fator central da história dos Estados Unidos. A disparatada proposta de construção de um muro na fronteira com o México [1] e os ônibus fretados para levar os imigrantes do Texas a Nova York [2] são somente o capítulo mais recente de uma longa e conflituosa história. Um movimento de questionamento quanto à continuidade da imigração e quanto à política imigratória norte-americana já ocorreu antes, entre o fim do século XIX e início do século XX, de modo que pôr em perspectiva a historicidade dos eventos recentes ajuda a entender em que tipo de base eles se apoiam.

 

A Comissão de Imigração e a política imigratória

Quando a U.S. Commission of Immigration se reuniu entre 1907-1911 para estabelecer uma investigação sistemática sobre a imigração nos Estados Unidos, com o objetivo de reformar a política imigratória do país, os temores sociais e as pressões políticas já contavam algumas décadas de existência. Também conhecida como Dillingham Commission, essa “força-tarefa” do Congresso americano produziu um monumental relatório (41 volumes) discriminando de modo minucioso quem eram os principais grupos de imigrantes, de onde saíam, para onde iam, quantos eram, qual sua formação profissional, como subsistiam em território americano etc.

A enorme investigação serviu de base para a indicação de uma série de diretivas e recomendações ao Congresso e à Presidência norte-americanos acerca da política imigratória. Em especial, a Dillingham Commission advogava pela restrição da imigração, e o recente livro de Katherine Benton-Cohen argumenta que a intensidade restritiva das diretivas era muito maior do que os dados da investigação autorizavam-na a ser [3].

Os trabalhos da Comissão foram rapidamente utilizados como referência para legislar acerca da questão imigratória. Os relatórios vieram a público em 1911-1912 e, pouco mais de uma década depois, em 1924, foi aprovado o Immigration Act, que estabelecia cotas de imigrantes por país e por ano, restringindo severamente a entrada de pessoas de outros países nos Estados Unidos. Esse sistema de permissão de quantidades restritas de imigrantes já vinha sendo testado desde 1921, com o Emergency Quota Act, e só foi efetivamente desmontado em 1965, durante o mandato de Lyndon Johnson, por meio do Immigration and Nationality Act.

Em termos de trajetória político-institucional, esse é um resumo apertado da questão imigratória nos Estados Unidos do início do século XX, e ajuda a entender que existem precedentes históricos para a escaramuça que atualmente se trava em torno a questão da imigração. Esse resumo, no entanto, não explica que tipo de atmosfera social e material participou da cristalização legal da política restritiva. É preciso sondá-lo.

 

Estranhos numa terra estranha (e em transformação)

É um ponto pacífico (ou quase) entre os historiadores, sociólogos e economistas o reconhecimento de que houve acentuadas transformações na história dos Estados Unidos entre as décadas finais do século XIX e as primeiras do século XX. Elas tinham várias formas: urbanização, formação de uma nova classe média, ascensão de um novo regime de capitalismo, industrialização, formação de uma classe trabalhadora urbana etc. A transformação histórica se pôde verificar, também, no massivo crescimento da imigração para os Estados Unidos desde 1880. Para se ter uma ideia da proporção dessa entrada, pode-se considerar o número de imigrantes que chegaram entre 1900-1909 (8,2 milhões), que equivalia, então, a cerca de 9% da população norte-americana [4].

A entrada massiva de imigrantes ocorria simultaneamente ao aumento da concentração econômica, que fez a economia mudar de marcha e estabeleceu um regime monopolista no capitalismo norte-americano.

O processo de industrialização, de urbanização e de formação de uma classe trabalhadora urbana no sentido moderno (de um operariado industrial, grosso modo) são, cada qual a seu modo, partes desse estabelecimento de uma nova dinâmica econômica.

A mecanização e a concentração econômica resultaram em taxas crescentes de desemprego e de precarização das relações de trabalho, criando, em seu rastro, um tipo novo de pobreza e de pobres, os quais Jack London chamou de “povo do Abismo”, e que aparecem nas impactantes fotografias de Jacob Riis e Lewis Hine.

Essa nova pobreza era medida numa escala numérica típica dos grandes fenômenos estatísticos, antes de ser mais “pessoalizada” e esporádica. A marcha do Exército de Coxey em direção a Washington durante a crise de 1893, por exemplo, ajuda a entender como o desemprego e a queda das condições de subsistência desses novos despossuídos ocorria numa escala distinta da de antes.

As outrora prósperas classes médias rurais e urbanas dos Estados Unidos, protagonistas do velho folclore liberal do país, foram gradativamente sendo esmagadas pela concorrência desproporcional e proletarizadas. Suas pequenas propriedades e diminutos estabelecimentos comerciais foram sendo eliminados ou absorvidos pelas grandes fortunas da era monopolista, pondo em xeque a velha estabilidade de seu mundo, o qual se tornará, a partir de então, seu eterno Rosebud, o palco de uma quase-mítica idade de ouro da história norte-americana.

A mudança de atitude diante da imigração e dos imigrantes entre o final do século XIX e início do XX, portanto, esteve enraizada nesse processo de transição histórica que desestabilizou as velhas certezas do otimismo liberal dos Estados Unidos. É razoável supor que os estrangeiros se tornaram tão mais ameaçadores aos americanos quanto mais instáveis eram suas próprias condições de vida e de sustento.

 

Entre o “Nós, o povo” e “Nós, quem, cara pálida?”

As incertezas desse mundo em transformação, que chocavam observadores conscienciosos e tão distintos como Henry George e Lincoln Steffens, compunham as circunstâncias em que se formou uma espécie de resposta sociocultural, no interior da qual uma atitude de desconfiança ante os imigrantes esteve presente.

Disto não se pode inferir, no entanto, que crises sociais e econômicas necessariamente levem ao crescimento de atitudes xenofóbicas, por mais perturbadoramente recorrente que seja a associação entre os dois fenômenos. Não há uma correia de transmissão direta entre as duas coisas. É preciso que haja também movimentos e correntes sociais e culturais dispostos e capazes de capitalizar politicamente a questão, e que as forças que podem se opor a isto se calem ou sejam desmoralizadas e derrotadas. Situações extraordinárias franqueiam medidas excepcionais, mas não sem uma grande dose de ação de uns e inação de outros.

Nas primeiras décadas do século XX, fios isolados de anti-imigracionismo, discriminação racial e xenofobia foram costurados pelo chamado “Americanismo”, que juntava entre suas fileiras desde membros da Ku Klux Klan até classes médias proletarizadas, de opositores do comércio de álcool até protestantes anticatólicos.

O enfeixamento de todas essas causas “anti-” (-imigrantes, -negros, -católicos, -judeus internacionalistas, -comunistas etc.) numa causa “pro-” (-Estados Unidos, i.e., o chamado Americanismo) aglutinou parte substancial da sociedade norte-americana em torno de um nacionalismo aguerrido e, sob vários aspectos, discriminatório.

Esse nacionalismo equacionava aquele conjunto de oposições a uma suposta defesa do “modo de vida americano”. Assim, o faccionismo político deu a têmpera dos anos 1920, que o historiador norte-americano John Higham, uma das maiores autoridades sobre o assunto, chamou de “os tribais anos 20”[5].

O presente nasce da costela de Adão do passado. Como dissemos no início do texto, o crescimento da insegurança social, econômica e política recente, junto com o aumento de uma atitude de desconfiança e hostilidade aos imigrantes, são o capítulo de uma história mais longa, à qual pertence também os “tribais anos 1920”. Esse passado, se não nos serve de exemplo, pode servir ao menos como alerta e como lição.

 


Lucas Kolln

Formado em História e frequentador de bibliotecas desde o tempo em que sua idade cabia nos dedos das mãos. É adepto da historiografia e da literatura como modo de vida.

 

Notas:

[1] Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/02/15/veja-como-os-eua-vao-construir-o-muro-na-fronteira-com-o-mexico.ghtml Acesso em 18 out 2022.

[2] Disponível em: https://www.braziliantimes.com/imigracao/2022/08/17/texas-envia-mais-onibus-com-imigrantes-indocumentados-para-ny.html Acesso em 17 out 2022.

[3] BENTON-COHEN, Katherine. Inventing the Immigration Problem – The Dilingham Commission and Its Legacy. Cambridge: Harvard University Press, 2018.

[4] Dados retirados de: U.S. Department of Homeland Security. Yearbook of Immigration Statistics: 2010. Washington, D.C.: U.S. Department of Homeland Security, Office of Immigration Statistics, 2011. e U.S. Census Bureau. Thirteenth Census of the United States taken in the year 1910 – Volume I – Population. Disponível em: https://www.census.gov/library/publications/1913/ dec/vol-1-population.html Acesso em 5 dez 2021.

[5] HIGHAM, John. Strangers in the Land: Patterns of American Nativism, 1860-1925. New Brunswick: Rutgers University Press, 1999.

Fonte da imagem de capa: https://www.loc.gov/resource/nclc.03402/