Já repararam o quanto a comida, assim como diversos elementos cinematográficos – paleta de cores, música de fundo e o discurso em cena – exerce um efeito sobre os sentimentos daquele que observa uma obra audiovisual? Em capítulos de novelas e séries é comum observarmos o quanto uma mesa bem farta (ou mesmo a falta de refeição) é capaz de demonstrar apreensões que dificilmente seriam passados para o observador de outra forma.

Neste texto, iremos analisar um pouco a respeito de como os autores exercem a mensagem por meio do recurso da alimentação em suas obras. Vale dizer que o tema por si só é bastante complexo e neste primeiro momento irei me ater mais a novelas e outras obras mais conhecidas, porém não falta vontade de buscar mais análises com esta temática!

Assim como introduzi no primeiro parágrafo, a alimentação é um elemento de cena muito importante para a obra cinematográfica, uma vez que pode passar ideias, valores e crenças das pessoas que participam da cena, ou mesmo ser utilizada como um recurso complementar na cena para diálogos expositivos entre personagens.

O renomado diretor Quentin Tarantino é bastante conhecido pelos seus diálogos mais informais e pelo bom uso do silêncio em cena. O mesmo usa o tempo de refeição dos personagens para estabelecer uma troca de diálogos comum entre seres humanos (ao contrário de grande parte dos diretores, que preferem usar o tempo da refeição para estabelecer troca de informações para o prosseguimento da obra). A estratégia do Tarantino humaniza os personagens ao conseguirmos estabelecer uma reciprocidade emocional com os mesmos.

 

O filme Pulp Fiction (Tarantino), é famoso pelos seus diálogos mais humanizados e pacíficos, ao contrário dos acontecimentos da obra em geral [2]. Lanchonetes e bares roubam a cena, além de conversas sobre alimentação e desejo alimentício, deixando implícito a comida como um elemento adicional para entendermos as motivações dos personagens.

Partindo para produções brasileiras, observamos o quão importante pode ser a alimentação para entendermos um pouco da psicologia dos personagens em cena. Novelas em geral são importantes elementos de reprodução de um discurso único no cenário da produção artística, de representar a natureza humana em sua forma mais “totalizante”, por vezes teatralizado e elitizado demais.

Através da produção televisiva, observamos a construção de um modelo hierarquizado do meio social real, com o predomínio do discurso mítico sendo passado para os consumidores da obra [1]. Por meio do discurso mítico, aprendemos a diferença dos indivíduos, que alguns exercem atividades e ocupam certas camadas sociais e que todos devem se comportar de acordo com o que se espera de sua posição na hierarquia da novela. Desta forma as diferenças são naturalizadas e podem se tornar a trama complementar da novela. Uma das melhores maneiras de reforçar o papel de um personagem é através da alimentação.

A segmentação de pessoas pode ser reforçada através da refeição, como por exemplo o café da manhã. É comum que personagens pertencentes da camada social mais alta possuam uma mesa com uma quantidade nutricionalmente superior de alimentos aos personagens menos abastados. Inclusive, a falta de comida em algumas ocasiões aparece como um elemento para demonstrar o sofrimento registrado pelos personagens pobres.

A mesa de refeição, o desperdício e a alta quantidade de opções de alimentos aparecem como uma forma para reforçar a contraposição de realidades que são vivenciadas na obra televisiva, bem como a liberdade de escolha dos personagens [1]. Enquanto o rico tem total domínio sobre as circunstâncias, o personagem pobre é totalmente passivo para a escolha, inclusive dos elementos nutricionais que lhe é posto em sua alimentação.

Um seriado em especial que ajuda a entender este ponto é o famoso “A diarista”, exibido e produzido pela rede Globo na primeira década dos anos 2000. A protagonista Marinete apresenta uma visão única dos demais personagens por ser a única que é capaz de conviver entre dois níveis de realidade distintos (dos ricos, representados pelos seus chefes; e dos pobres, sua vizinhança e amigos).

Neste seriado, alguns episódios reforçam o quanto o lugar da prática de consumo é capaz de exercer mudança de relação simbólica com o alimento. Enquanto o ambiente da classe social rica é permissivo para a prática de consumo de frutos do mar, drinks e produtos mais caros (bens aos quais a personagem Marinete mantém interesse de consumir), o ambiente da classe média possui o caráter funcional do alimento mais valorizado, não tendo tanto espaço para a valorização da gourmetização ou da etiqueta em mesa.

Mesmo quando a personagem consegue vencer a “barreira de entrada” para fazer parte do seleto grupo de consumo de algum produto, seus “habitus” de vida e sua postura revela que o objeto não foi feito para ela, com a Marinete se conformando de sua condição social.

Este seriado é um bom exemplo para escancarar este problema de representação das novelas brasileiras, que nos orientam a pensar na dicotomia da alimentação restrição (pobre) X excesso (rico), em que os personagens pobres são sempre passivos com relação aos elementos e os desejos em suas vidas. Mesmo com essa representação negativa da classe pobre, o seriado apresenta a personagem Marinete como uma pessoa esperta e ativa, sempre buscando resolver o problema dos ricos, representados como pessoas incapacitadas na resolução de dificuldades em suas vidas (mesmo que às vezes ela provoque certa confusão no processo).

Ao longo do seriado, a personagem pontua a dicotomia observada nos dois níveis de realidade em que convive com tiragens únicas, como “fruto do mar de pobre é banana d’água” ou “bêbada rica é divertida, bêbada pobre é pervertida” [3]. Infelizmente, a Marinete foi condicionada a pensar que todos os elementos de prestígio que sempre desejou (representados pela comida) não estariam nunca acessíveis para ela.

A comida vista neste seriado e nas novelas, de certa forma, exerce o papel de propaganda simbólica de como as pessoas das diferentes classes sociais devem se portar, sendo uma sátira aberta no programa “A diarista”, e um elemento de coesão psicológica nas novelas.

De uma forma totalmente diferente, o seriado A Grande Família (exibida na década de 90 até a décima década do 2º milênio) nos mostra outro tipo de relacionamento entre os personagens e os alimentos em cena. A afetividade dos personagens em cena é sempre reforçada pela presença das refeições em família, evento este que às vezes evolui para uma discussão sobre a trama do episódio.

Geralmente o evento principal do episódio varia com algum personagem do núcleo família revelando conflito moral dele ou de outro personagem, acarretando em decisões éticas e debates engraçados para a resolução do problema [4]. A hora da alimentação é o melhor momento para os conflitos entre os personagens, pois é fonte de debates acalorados e/ou momentos de afeto que são únicos do seriado.

A pastelaria do Beiçola, a mais famosa da vizinhança, é o ambiente preferido pelos personagens para a conversa informal sobre os problemas da casa (geralmente na forma de fofoca). Entre uma cerveja ou um pastel consumido pelos personagens, destaca-se o ambiente como um paraíso para o consumo e o lazer, o que nem sempre é bem visto por todos os personagens.

Entre estes personagens, destaca-se a figura de Lineu Silva, o chefe da família. Fiscal da vigilância sanitária, ele representa na trama o guardião do racionalismo, demonstrando conhecimentos e princípios éticos considerados superiores por todos os personagens. Sua figura de fiscalizador das leis, substâncias e serviços alimentícios lhe impõe certos princípios que, às vezes, vão de confronto com os defendidos por outros membros.

Pelas máximas universais defendidas por Lineu, os prazeres devem ser subjugados pela ordem, indo de encontro aos padrões de consumo dos personagens. Frases como “Nenê, você não pode comprar tudo o que vê” ou “de agora em diante, iremos gastar somente o estritamente necessário” revelam o discurso de sobriedade e austeridade do personagem, com o mesmo aplicando seus princípios fiscalizadores a qualquer preço, em qualquer tempo e em qualquer lugar. O personagem sofreu grandes transformações ao longo dos anos em virtude da convivência com outros personagens, como o Agostinho Carrara.

O Agostinho, caracterizado como irracionalista funcional, apresenta uma série de argumentações “lógicas” para sempre ter seus interesses na frente; sejam coisas simples (como a maior frequência de seu alimento preferido sendo servido no almoço) ou algo mais complexo (por exemplo ter sempre a segurança da ajuda financeira dos membros da família) [4]. Estes personagens sofreram transformações significativas para demonstrar que a convivência harmoniosa entre as pessoas se dá com o equilíbrio entre os prazeres e os deveres sociais.

 

Os conflitos morais da série são recorrentemente representados por alimentos ou outros bens de consumo. Nesta foto, Bebel (filha de Lineu e esposa do Agostinho) revela estar produzindo vinagrete para ser vendido na feira, visando ganhar dinheiro extra; mas acarreta em um sentimento de traição no Lineu, pois o alimento estava proibido pela fiscalização.

A representação das novelas (devido ao formato da trama e da estória a ser contada) não coloca objetivos tão valiosos aos alimentos ou as figuras que trabalham com os mesmos. Ao passar valores tão pobres a cultura alimentar e a elitização dos bens de consumo, esta modalidade de obra corrobora com a valorização da aculturação dos processos alimentares.

Este problema normalmente leva ao aumento de princípios de riscofobia e de cacofonia alimentar, que são próprios do efeito de gastro-anomia na sociedade moderna (um texto resumido sobre o assunto aqui).

A riscofobia pode ser entendida como o medo ou aversão aos riscos que um alimento pode conter [5]. Em novelas, é comum que personagens das mais altas classes se alimentem de comida mais cara (geralmente como uma forma de ostentar riqueza), demonstrando que o personagem da trama possui um grau maior de conhecimento e de controle dos excessos.

Este comportamento pode passar a imagem para o telespectador de que existem menores riscos alimentícios na refeição do personagem em tela (representado por atores ou atrizes saudáveis), deixando subentendido para quem acompanha o episódio de que aquele gênero de alimento em especial representa toda uma classe de costumes que deveria ser absorvida em sua vida.

Não sabendo que existe gênero alimentício mais saudável sendo comercializado na feira do bairro, o mesmo telespectador pode acabar gastando bem mais caro (as vezes, comprando marcas que passaram no episódio), porque o alimento de sua região é sub-representado na novela.

Logicamente, não é de responsabilidade do diretor de uma obra saber muito a respeito dos efeitos psicológicos da forma como o mesmo aborda as refeições entre personagens. Porém, existe toda uma indústria de informação sobre alimentação que é passada de forma paralela por atores e profissionais dos estúdios que pode ser revisada, para que assim os efeitos negativos da desinformação e da elitização sejam diminuídos.

A gastronomídia paralela gerada pela novela é capaz de exercer malefícios psicológicos para os leitores da revista ou participantes da mídia social [6]. Quando observamos o efeito de muitos meios midiáticos passando informações opostas à comunidade da nutrição, ou mesmo gerando notícias que corroboram ou negam dados entre si, observamos o crescimento da cacofonia alimentar.

Cacofonia tem o mesmo sentido de “barulho”, no qual o mar de dados é capaz de gerar inanição no comportamento dos consumidores dessas notícias. Estas informações causam imprecisão com relação a alimentos populares e seus benefícios, gerando quadros de baixa autoestima, “corpolatria”, anorexia, consumismo exacerbado e outros problemas de natureza psicológica.

Não condenando o conteúdo de entretenimento ou o motivo da dieta das pessoas, observa-se que a responsabilidade no quesito de segurança alimentícia é um tema que pode ser melhor levantada tanto dentro das telas quanto fora delas. Com a temática se tornando mais popular, provavelmente os diretores de obras televisivas abrirão seus olhos para a riquíssima possibilidade de trabalho alçado em serviços, consumo e cultura alimentar, como bem fizeram os roteiristas dos seriados citados e o Quentin Tarantino!

E quanto ao leitor? Consegue pensar em mais algum fator de risco para a saúde representada na televisão? E mais alguma informação curiosa que deixei passar? Não esqueça de comentar a sua visão! Comprometo-me a trazer um texto especial só para filmes logo mais para frente. Até a próxima!

 

Referências:

 

[1]: TRAVANCAS, I; NOGUEIRA, SG (orgs). Antropologia da comunicação de massa [online].
Campina Grande: EDUEPB, 2016. Paradigmas da Comunicação collection, 307 p. ISBN 978-85-
7879-332-6. Disponível em SciELO Books;
[2]: Portal Incrível Club. 5 diálogos de filmes de Tarantino que farão você refletir sobre as pequenas coisas da vida. Disponível aqui;
[3]: BARROS, Carla. Trocas, hierarquia e mediação: dimensões culturais do consumo em um grupo de empregadas domésticas. Tese (Doutorado em Administração). Rio de Janeiro: COPPEAD/UFRJ,
2007.
[4]: BARROS Filho, C. de, & MEUCCI, A. (2005). Da virtude à estratégia: os conflitos morais em A Grande Família. Comunicação & Educação, 10(2), 201-209. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9125.v10i2p201-209. Acesso em 06 dez. 2020.
[5]: VIDA SIMPLES. São Paulo: Caras, 2017. Edição especial. Acesso em 07 dez. 2020;
[6]: VIEGAS, Selma Maria Fonseca et al. Alimentação, uma das chaves para a saúde: Análise de Conteúdo de reportagens da revista Veja. Revista de Enfermagem do Centro-Oeste Mineiro, 2012. Disponível aqui. Acesso em 07 dez. 2020.