Como podemos perceber na resenha que escrevi sobre o livro “Valentes: História de pessoas refugiadas no Brasil” (link aqui), as pessoas que buscam um país para servir de sua nova moradia pelos mais variados motivos geralmente carregam valores, crenças e tabus que podem ser um pouco diferentes dos valores “comuns” da nova localidade.

Logicamente estes pensamentos são um reflexo da historiografia e dos aspectos geográficos de sua antiga localização, e, portanto, seus hábitos alimentares carregam simbolismos que são estrangeiros para as pessoas da região. Por meio deste texto, pretendo mostrar as diferentes maneiras que são percebidos os estrangeirismos na alimentação brasileira, uma identidade que carrega a hibridização cultural desde o seu nascimento como nação!

Este tema é muito amplo, pois a própria identidade brasileira é um amálgama de valores estrangeiros… Mas calma que mais textos serão feitos para aprofundar sobre o assunto!

O que conhecemos por culinária brasileira, em algum momento do tempo, já foi dada como culinária estrangeira, mas hoje passou pelo crivo histórico para ser remodelada e resignificada na temporalidade. Um exemplo clássico é o caso da Bahia, que por anos como porto de recebimento de cativos escravizados da África acabou-se por remodelar alguns de seus valores, levando a mudanças gastronômicas que desempenham um papel religioso e de turismo na região.

A comida serve de início para entendermos a relacionalidade desenvolvida entre os baianos e os padrões mixofílicos que são únicos daquele local (mixofilia se refere a  “tendência a misturar”). A comida baiana desempenha um papel importante nas religiões de matriz africana como Candomblé (africana strictu sensu) e Umbanda, onde a comida é a porta de entrada da ética e sensibilidade dos valores africanos e dos orixás, entidades santas que são conhecidas e homenageadas pelos seus alimentos favoritos [1].

O preparo, a oferta, distribuição e consumo de alimentos como vatapá, cocada, bolinho de tapioca, cuscuz, licores e acarajé são dados como um complexo de misturas, transformações e fluxos que são únicos para os adoradores dos orixás [2]. Acho válido um texto só para alimentação religiosa desta e de outras crenças!

Os valores da identidade baiana já foram incorporados por mais de 400 anos de diáspora africana para a região, mas existem outros locais no país que sofreram colonizações mais recentes. A identidade pomerana é um exemplo, onde o Brasil recebeu um fluxo enorme de pomeranos em virtude da extinção do país Pomerânia no século XIX.

Recebendo guerras de dominação da frente polonesa e alemã nos anos de 1859 a 1874 pelo domínio da Pomerânia, uma grande quantidade dessas pessoas buscou o estado do Espírito Santo como sua nova moradia, já que não podiam expressar sua fé luterana com liberdade na Europa. Com o passar dos anos, as diferentes colônias pomeranas sofreram hibridização de seus valores com os mais variados imigrantes que já estavam instalados no país.

O traço cultural alimentar mais proeminente do pomerano é a diversificação de comida dependendo das festividades e rituais religiosos da crença judaico-cristã, porém seus marcadores étnicos originais foram sofrendo modificações baseadas nas culturas agrícolas praticadas em suas colônias [3].

Dentre os alimentos típicos, destaca-se o miyherbroud ou brote (pão de milho com mistura de batata-doce, aipim, inhame, cará, fubá de milho branco e banana), com sua variação mais simples, whitbroud (que leva farinha de trigo, fubá, batata, entre outros) geralmente feito em rituais como velórios ou a ceia de natal (que necessitava de preparos mais rápidos e que não podiam esperar pela colheita de raízes e a moagem dos grãos). A alimentação com arroz doce e ensopados juntos ainda é um traço cultural preservado por pomeranos de mais idade [3]. Matanças de animais também são praticadas próximo de rituais como casamento, com o aproveitamento de gordura de porco para fritar as carnes.

Mesmo para uma etnia tão destoante das colonizações europeias tradicionais como a pomerana, está sendo um traço firme em sua cultura a aproximação com os valores de pessoas de fora do círculo familiar do pomerano comum, agregando em mais conhecimento para ajudar a quebrar a fobia de mistura que este povo sofreu por anos de perseguição étnica e religiosa.

 

O botequim (restaurante de dia, bar de noite) é um estabelecimento de origem portuguesa e que agregou na história nacional ao longo dos anos. Na figura, o empreendimento do português Adelino Antônio de Souza (48), serve também como uma maneira de espalhar seus conhecimentos sobre a atlântica gastronomia portuguesa, ao mesmo tempo que homenageia sua vila natal, Cascais. Reportagem de Lucas Mamédio [4].

Nosso país foi crescendo em imaginário alimentar em decorrência dos fenômenos da globalização, resignificando comidas típicas e tradicionais de diferentes localidades do mundo. Ao fazer isso, o brasileiro agrega seus valores aos estrangeirismos e a história da culinária do local de origem.

Exemplos de hibridização alimentar na cultura brasileira é o que não falta! Existem pratos e receitas que, de tão destoantes do seu local de origem, podem se dizer que são brasileiras, como as famosas pizzas massudas de muçarela (diferentes das pizzas italianas), o pão francês (desconhecido pelos franceses), a torta holandesa (que de holandesa não tem nada) e até mesmo o rolinho primavera (com as diferentes variações de sabores, deixariam qualquer japonês irado!) [5].

Ainda existem os casos de receitas que, apesar de levarem os nomes clássicos de origem, nem sequer se assemelham com os pratos conhecidos em suas terras de origem!

O strogonoff praticado no Brasil é um exemplo, muito diferente do picadinho de carne sem molho e com batata chips na Rússia. Um terreno propício para a miscigenação cultural como nosso país é um dos temperos mais rebuscados para a criação destas novas receitas [5]. Porém, a utilização de valores e receitas de etnias e grupos tradicionais passa por apontamentos polêmicos decorrentes da globalização.

A apropriação cultural é um tema que vira e mexe aparece nas redes sociais, angariando em pessoas que julgam e dão seus pareceres sobre temas como a abertura de restaurantes chineses por pessoas brancas ou criando pratos veganos com recursos simbólicos indiano [6]. Para pessoas que foram discriminadas pela sua alimentação no passado, ainda é polêmico observar o crescimento de pessoas que enaltecem o simulacro da vontade real dos criadores daquele prato.

Esta apropriação é vista como uma forma de domesticação de uma cultura que possui valores, crenças e tabus diferentes dos padrões globais e, desta forma, busca a criação de iconografias parecidas com as reais. Mexer com a nostalgia de etnias inteiras ainda é um tema polêmico no Brasil, que angaria discussões intermináveis em diferentes tópicos na internet.

 

Supostamente como a primeira nação a privilegiar os aspectos artísticos da alimentação, a culinária francesa serviu de inspiração para a alta cozinha brasileira sobretudo nos anos 60, considerada “bela” e de ‘alta classe”. Com o aprofundamento de estudos revisionistas sobre o real efeito dos mesmos no processo de criação da identidade brasileira, outras gastronomias têm sido cada vez mais valorizadas entre os cozinheiros de elite [7].

De forma análoga ao preconceito que os primeiros imigrantes sofreram em nosso país, a etnia e a culinária chinesa têm sido alvo de xenofobia desde a instalação dos primeiros estabelecimentos de origem asiática, geralmente ligada a eventos do governo chinês que são impopulares no Brasil.

Por vezes a analogia utilizada pelos xenófobos envolve expressar a culinária chinesa como “comida de lixo”, feita com “carne de cachorro” ou pratos “xingling” [8]. Com o advento do vírus covid-19 este ano, sino-brasileiros foram alvos de piadas e de xingamentos com relação a sua alimentação, como se os mesmos fossem culpados diretamente pelo acontecido. Respeitar descendentes do extremo-oriente têm se provado um desafio em particular para grande parte dos brasileiros.

Entre os imigrantes econômicos mais recentes a integrar a nacionalidade brasileira, encontra-se os venezuelanos, que buscam o distanciamento das políticas sociais, militares e econômicas disseminadas pelo ditador Nicolás Maduro.

Os destinos preferidos dos venezuelanos envolvem principalmente a Colômbia, os Estados Unidos e a Espanha, mas uma minoria busca o Brasil pela proximidade [9]. Porém, os refugiados que chegam em nosso país passam por alguns processos de xenofobia, ligado a ideia de que todo venezuelano “gosta de viver com base no assistencialismo brasileiro” ou fazendo os mesmos de bode expiatório pelos problemas estruturais em serviços públicos.

A culinária que os refugiados trazem para nosso país têm se mostrado como uma forma de mitigação dos efeitos da xenofobia, pois ao mesmo tempo que abre oportunidades de trabalho e renda, conta um pouco da história de vida e do contexto social que os refugiados viveram, ajudando na permeabilidade cultural e aceitação destes estilos de vida.

A experiência de Andreina Gedler Vivas, refugiada Venezuelana, nos mostra a valorização da culinária de seu país de origem como um meio de incremento de renda e na diminuição de crenças e tabus negativos oriundos da xenofobia [10]. Por meio de pastéis e empanadas de milho, arepas recheadas e cachitos, a empreendedora valoriza sua história e a tradição dos meios de preparo. Os efeitos da hibridização destes valores da culinária venezuelana em mistura com a brasileira estarão em desenvolvimento com o passar dos anos, ajudando a mostrar que qualquer oportunidade de crescimento é bem vinda no país.

Terminando por escrever este texto, eu não poderia deixar de lembrar o caso do ‘esfihaço’ promovido por brasileiros para demonstrar solidariedade ao imigrante sírio que tinha sofrido xenofobia nas praias de Ipanema [11]. O sucesso do evento demonstra que nosso país possui talento no abraço de valores culturais diferentes do nosso, e com um pouco mais de trabalho poderemos transformar esta nação em uma potência do progresso humano e gastronômico!

O que acharam deste texto? Conhece algum caso de refugiado ou imigração que mereça destaque? Não esqueça de comentar sua experiência e até o mês que vem!

 

Referências:

 

[1]: RABELO, Miriam. Os percursos da comida no candomblé de Salvador. Papeles de trabajo. La revista eletrônica del IDEAS. v. 7, n. 11, p. 86-108, 2013. Disponível aqui. Acesso em 05 set. 2020;

[2]: CASCUDO, L. C. Antologia da alimentação no Brasil. Rio de Janeiro: Livros técnicos e científicos, 1977;

[3]: SCHMIDT, Adriele; FARIAS, Rita De Cássia Pereira. Alimentação, identidade cultural e tradição em uma comunidade pomerana no Brasil. II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades. Belo Horizonte, 08 out. 2013. Disponível aqui. Acesso em 06 set. 2020;

[4]: MAMÉDIO, Lucas. Com shot de nata e bacalhau, bar homenageia vila de Portugal. Portal Campo Grande News, 03 set. 2020. Disponível aqui. Acesso em 06 set. 2020;

[5]: MUNDO, Gastronomia. Comidas estrangeiras consumidas pelo brasileiro (… e que não são parecidas com as originais). Portal Gastronomia Universal, 26 jun. 2017. Disponível @gastronomiauniversal1/comidas-estrangeiras-consumidas-pelo-brasileiro-4035d97aa9af">aqui. Acesso em 08 set. 2020;

[6]: CHEUNG, Helier. Apropriação cultural? Por que a comida se tornou um tema tão sensível.  Portal BBC News, 16 abr. 2019. Disponível aqui. Acesso em 08 set. 2020;

[7]: TURÍSTICO, Olhar. França – Origem da alta gastronomia. Portal Olhar Turístico. Disponível aqui. Acesso em 08 set. 2020;

[8]: TAI, Lian. Vírus chinês e o racismo contra asiáticos no Brasil. Portal Operamundi, 31 mar. 2020. Disponível aqui. Acesso em 08 set. 2020;

[9]: MILESI, Rosita; COURY, Paula; ROVERY, Julia. Migração Venezuelana ao Brasil: discurso político e xenofobia no contexto atual. AEDOS, v. 10, n. 22, p. 53-70, 2018. Disponível aqui. Acesso em 10 set. 2020.

[10]: SILVA, Jeilson. Pratos típicos impulsionam oportunidades para cozinheira venezuelana. Portal DC, 18 ago. 2020. Disponível aqui. Acesso em 10 set. 2020;

[11]: RODRIGUES, Matheus. Cariocas fazem fila em ‘esfihaço’ para apoiar refugiado sírio agredido em Copacabana. Portal G1, 12 ago. 2017. Disponível aqui. Acesso em 10 set. 2020.