Quando digo que a alimentação pode ser dividida entre diferentes atos – simbólicos, políticos, filosóficos, sexuais, sociológicos e artísticos – muitos leitores devem achar que não é para tanto, afinal a comida é só um meio para incorporarmos energia que perdemos ao longo do nosso dia, tanto “nutricionalmente” quanto “psicologicamente”.
Porém, com este texto pretendo mostrar: i) o quanto os atos políticos da alimentação são importantes para compreender a cultura alimentar de forma geral, ii) de que forma isso afeta o jeito que a política é feita no Brasil e iii) de que forma isso afeta as influências nas políticas públicas de alimentação. É um tema bem amplo, mas que não pode passar batido com a aproximação das campanhas eleitorais!
Geralmente os meios alimentares foram associados no Brasil a forma de se fazer política em diversas regiões, pois assim fica mais fácil para um político passar a imagem de alguém “que come o mesmo que a gente, logo passa pelas mesmas dores que o povo passa”. A imagem de alguns líderes políticos se alimentando passaram pela nossa cabeça, certo? De fato, a figura do político indo em feiras para comprar pastel com caldo de cana (e fazendo aquela tremenda cara de desgosto) é bem emblemática na política de alguns estados, porém não é a única forma pelo qual existem alianças entre políticos e alimentação.
Embora em mesas de reuniões possa parecer que a refeição não é um dos protagonistas do encontro, a comida foi usada de diferentes formas para gerar a dimensão afetiva entre aqueles que se encontravam para discutir os rumos do país. Os jornais se baseavam muito no que era oferecido aos participantes para entender a motivação por trás do encontro, como as muitas fofocas contra o governo Collor durante as feijoadas do ex-deputado Cleto Falcão, bem como os famosos pães de queijo do Itamar Franco e o seu sopão de verduras oferecidos aos conterrâneos de Juiz de Fora [1].
Em casos mais recentes envolvendo a mesa de políticos, o deputado federal Alexandre Frota teria afirmado que as mesas de café da manhã do presidente Jair Bolsonaro eram falsas [2], usadas para causar comoção ao povo vendo um candidato tendo o mesmo estilo de vida de um cidadão comum (comendo pão de sal, bebendo café puro, com jarra de água de 1,99 etc.). Independente da veracidade neste caso, é fato que grande parte da política presidencial de 2018 foi pautada nesta mesa, tendo tanto impacto para o Brasil quanto os envenenamento do vinho ou a torta de restos humanos para os 7 reinos da clássica série política Game of Thrones (ainda não superei o final da série, desculpa).
Um exemplo bem claro de como a comida é capaz de facilitar o povo a ter uma dimensão afetiva com o político é o caso de Jânio Quadros, que fingia vertigens de fome sempre que estava aos olhos de muitas pessoas ou câmeras, pegando um sanduíche de mortadela embrulhado em papel logo em seguida [1]. A utilização de símbolos e hábitos alimentares é dado como um fenômeno sócio-gastronômico cíclico com períodos bem definidos (período eleitoral), divergindo entre as estratégias e a recepção do público-alvo ao observar o fenômeno [3]. Em tempos de internet é um clássico na fabricação sazonal de memes trabalhar com políticos da velha guarda fazendo caretas ao saborear nossos alimentos comuns.
Porém, não somente os políticos se apropriam dos recursos alimentares para a promoção de símbolos do meio político, com a militância fazendo o mesmo de formas diferenciadas. Geralmente os militantes que trabalham em prol de figurões da política ou mesmo em torno de uma ideologia gostam de enquadrar o adversário com referência a algum alimento que faça sentido dentro do grupo do mesmo. Em meados de 2014, não foi incomum encontrar alguém que estava agrupado entre os famosos “coxinhas” e os “mortadelas”, que representavam dissidências político-ideológicas diferenciadas.
O termo coxinha remonta a um xingamento direcionado aos policiais que patrulhavam a cidade de São Paulo que, em troca de rondas próximas a padarias e lanchonetes para espantar jovens de comunidade, ganhavam uma coxinha e um café coado para se alimentar. O termo foi apropriado em seguida para todas as pessoas “arrumadas”, com certa índole de moral e consideradas conservadoras [5]. Já o termo “mortadela” refere-se ao sanduíche de mortadela dado aos simpatizantes que iam em manifestações bancadas pelo Partido dos Trabalhadores e seus associados como meio de agregar mais pessoas [6]. Logo, ser chamado de mortadela é uma forma de deslegitimar o movimento e a própria ideologia em si, demonstrando que o valor da luta (e dos militantes) é muito baixo.
Em diversos outros momentos históricos tivemos a apropriação de hábitos ou produtos alimentares para designar atividades políticas específicas como a bem conhecida “política do café com leite” praticada pelos estados de São Paulo e Minas Gerais, que representava o federalismo oligárquico entre os líderes políticos desses estados e da nação, apesar de nem sempre as normativas trazerem benefício aos produtores pequenos de café e leite [7]. No Brasil ocasionou-se chamar de “pizza” toda atividade política que visa a distribuição de benefícios a um certo grupo, da mesma forma como cada pessoa leva uma fatia desse alimento.
A política não vive só da comida em si, mas principalmente dos meios de produção e distribuição de alimentos, como podemos perceber na difusão de programas de distribuição igualitária de alimentos como Fome Zero, considerado bandeira de atuação de órgãos internacionais como a FAO (Food and Agriculture Organization, ligado a ONU) [8]. Grupos que visam a distribuição dos meios de produção – como o conhecido MST – se enquadram como movimentos que usam da bandeira da fome e da insegurança alimentar para promover os seus ideais de igualitarismo, inter-cooperação e saudabilidade, com a venda de alimento orgânico e minimamente processado produzidos pelos militantes nas terras produtivas [9].
O efeito da política em seu aspecto de produção de alimentos é mais sentido em seus efeitos macroeconômicos na realidade brasileira, principalmente em alimentos ligados a exportação e no cenário alimentar de forma geral.
Sendo o 3º maior produtor de alimentos do mundo e 2º maior exportador, o mundo possui grande expectativa para com o Brasil sobre a demanda futura de alimentos [12], sabendo que o país precisa de um adicional de 40% na produção de alimentos para acompanhar o crescimento da população mundial. Porém, o processo produtivo eficaz no agronegócio só é conseguido com sustentabilidade socio-ambiental nas regiões produtoras, marcadas por problemas de tratamento sub-humano em muitos locais.
Responsável por ditar grande parte das políticas de produção desse o início do superciclo das commodities no governo Lula, a China foi responsável por mudanças em paradigmas de produção e distribuição não somente de alimentos, mas de forças sociais (antagônicas ou cooperativas) no cenário do agronegócio brasileiro, impactando no padrão de consumo de alimentos aqui em terras tupiniquins. A evolução do paradigma de sustentabilidade no agronegócio irá impactar muito a produção de soja, já que para os próximos anos mercados chineses não pretendem comprar este produto em regiões em que ocorreram desmatamento (como melhor escrito neste texto aqui). A economia é um bom parâmetro para analisar as mudanças que são emergentes no cenário alimentar brasileiro, e consequentemente no cenário e discurso político também!
Tratar sobre temas como exportação, socio-gastronomia e qualidade de alimentos em um país com alto índice de insegurança alimentar como o Brasil é declarar o emprego e a desigualdade como os fatores determinantes deste estigma cultural ligado a alimentação, e que políticas ativas precisam ser levadas a sério pelos governantes para que a temática alimentar seja cada vez menos uma forma de garantir simpatia entre eleitores e cada vez mais uma esperança de vida.
A produtividade agrícola alinhada com políticas públicas enfrenta os seus relegados problemas sócio-econômicos, onde a sociedade consumidora moderna (mais urbana, exigente, numerosa, educada e rica) suplica por mudanças na produção, especificação e especialização dos alimentos [12]. E você? Conhecia os efeitos de política no cenário alimentar? De que outra forma a alimentação pode estar ligada a política? Não se esqueça de comentar e espalhar informação para todos os interessados, até a próxima!
Referências:
[1]: NASCIMENTO, AB. Comida: prazeres, gozos e transgressões [online]. 2nd. ed. rev. and enl.
Salvador: EDUFBA, 2007. 290 p. ISBN 978-85-232-0435-8. Disponível em SciELO Books Acesso em 01 ago. 2020;
[2]: BRASÍLIA, Redação Jornal de. Frota afirma que mesas de café da manhã de Bolsonaro eram fakes. Portal Jornal de Brasília, 28 fev. 2020. Disponível aqui. Acesso em 30 jul. 2020;
[3]: SAHD, Luiza. Aberta a temporada de políticos comendo pastel, para a alegria da internet. Portal BOL Notícias, 01 set. 2018. Disponível aqui. Acesso em 01 ago. 2020;
[4]: BARBIÉRI, Luiz Felipe. Em meio a ‘carne fraca’, Temer chama embaixadores para comer churrasco. Portal Poder 360, 19 mar. 2017. Disponível aqui. Acesso em 01 ago. 2020;
[5]: BITTENCOURT, Juliana. Finalmente alguém explicou o surgimento do termo coxinha. Leia aqui. Portal Forum, O que o brasileiro pensa? 12 set. 2017. Disponível aqui. Acesso em 01 ago. 2020;
[6]: OLIVEIRA, Sara Antunes. Você come coxinha ou sanduíche de mortadela? Portal Expresso, Internacional, 19 mar. 2016. Disponível aqui. Acesso em 01 ago. 2020;
[7]: VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. O federalismo oligárquico brasileiro: uma revisão da “política do café-com-leite”. Anuário IEHS, v. 16, p. 73-90, 2001;
[8]: RBA, Redação. O desafio da fome não se combate com ideologia, diz diretor-geral da FAO e idealizador do Fome Zero. Portal Rede Brasil Atual, 25 jul 2019. Disponível aqui. Acesso em 03 ago. 2020;
[9]: FIRMIANO, Frederico Daia A formação cultural dos jovens do MST: a experiência do assentamento Mário Lago, em Ribeirão Preto (SP). Frederico Daia Firmiano. – São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 288p. ISBN 978-85-7983-043-3;
[10]: COMPRERURAL. Tomar leite virou ato racista para imprensa brasileira. Portal Comprerural, 30 mai. 2020. Disponível aqui. Acesso em 03 ago. 2020;
[11]: G1. Chinesa promete rastrear toda soja comprada do Brasil até 2023. Portal G1, 03 jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em 03 ago. 2020
[12]: DALL’AGNOL, Amélio. O mundo vai precisar muito do Brasil. Blog da Embrapa Soja, 03 ago. 2020. Disponível aqui. Acesso em 03 ago. 2020.