James Barry, cirurgião do século 18, é uma das grandes mulheres da história. E você não leu errado.
Ouvindo o incrível Scicast #261 sobre Florence Nightingale me lembrei de uma figura que conheci quando descobri sobre o trabalho de Florence há alguns anos atrás. Meu queixo ficou caído e, após muitas pesquisas, descobri que estava diante de um enigma. Pois bem, meus caros Deviantes e Derivadas, não tenho aqui datas concretas sobre o nascimento dessa figura, não tenho muitas informações sobre sua infância ou sua vida pessoal. Mas, ainda assim, o que estou prestes a te contar vai te surpreender e, se não surpreender, vai te fazer ver com outros olhos – mais apaixonados provavelmente – aquilo que chamamos de vocação.
James Miranda Stuart Barry nasceu lá pelas últimas décadas dos anos de mil e setecentos com o nome de Margaret Ann Bulkley. A pequena Margaret era a segunda filha de Jeremiah e Mary-Ann Bulkley e tinha dois irmãos, sendo que Juliana, a irmã mais nova dos três, seria supostamente filha de Margaret que teria sido estuprada ainda muito nova. Não posso nem imaginar a dor dessa família, mas posso apenas dizer que, pelo que pude estudar, eram unidos e cheios de amor, porque eles seriam fundamentais para a trajetória de James.
Depois de ter estudado para ser governanta, Margaret, não vê futuro algum na profissão e com o sonho de se tornar cirurgião – algo impossível para uma mulher no século 19 – consegue a ajuda de sua família para então se tornar James Barry, filho do irmão de Mary-Ann Bulkley, que carregava o mesmo nome. O pequeno junior seria brilhante. Esperem e vejam…
O Diadorim irlandês
Assim como o personagem de Guimarães Rosa, o irlândes James Barry trocou de nome, vestiu roupas do sexo oposto e em 1809 ingressou na Universidade de Edimburgo. Não pensem que foi fácil esconder as feições delicadas e a voz suave, muitos pensavam que ele não tinha saído da puberdade ainda e tentaram diversas vezes impedir que fizesse as provas finais.
Ao mesmo tempo que encontrava obstáculos, também tinha o apoio de pessoas importantes como o 11º Duque de Buchan, David Erskine, que persuadiu a universidade fazendo com que James conseguisse concluir os estudos em 1812. Logo depois foi morar em London, baby… lá trabalhou com muita gente gabaritada e estagiou com o renomado cirurgião Astley Cooper. Em 1813 entrou para a Escola de Cirurgiões. Tá pensando o quê? O cara era bom demais.
No mesmo ano se alistou para o exército e foi nomeado assistente hospitalar servindo em vários postos em Chelsea e no hospital militar de Plymouth, onde foi promovido a cirurgião assistente, que era equivalente a tenente.
A dedicação com a qual tratava seu trabalho era fundamental e isso fazia com que ele se destacasse dos demais profissionais da época. Seu olhar caridoso e profissional para com os pacientes modificava todo ambiente por onde passava, o que despertava a inveja e raiva de muitos do ramo. Durante toda sua vida James precisou da ajuda de amigos influentes para manter sua identidade verdadeira secreta.
A vocação para a medicina era maior do que qualquer outro desejo que possuía e James dedicou sua vida inteira ao estudo e ao trabalho como médico. Abdicou de ter uma família, de seu nome, de seu gênero. E isso nos faz pensar em várias coisas, não é mesmo?
Militâncias à parte, pois muitos lugares já estão permeados dela, levemos a questão de James de outra forma. Nascer uma mulher naquela época – e ainda hoje em muitos lugares – era uma condenação a uma vida com etapas predeterminadas e ambições muito próximas ao zero. Podia-se ser mãe, esposa, freira, com muita sorte poderia nascer em berço de ouro e escrever para não ser lida ou ser uma monarca em uma luta enfadonha para provar que era governante.
A ousadia de James de ser quem realmente queria ser é inspiradora e mostra que para os sonhadores tudo é possível, desde que se tenha paixão. E isso não faltava no jovem Barry.
O War da medicina
Nosso querido James foi especialista em desbravar o mundo, se houvesse um War da área da saúde, ele teria sido um grande conquistador. Em 1816 foi enviado à Cidade do Cabo, na África do Sul, onde conheceu o governador da cidade, o Lorde Charles Somerset, preocupado com sua filha que estava muito doente. E quem é convocado para a tarefa de cuidar da jovem? Sim, o próprio Dr. Barry! E não é que ele fez um excelente trabalho? Foi o suficiente para ganhar a confiança do Lorde e se tornar então médico particular da família.
Em 1822 se tornou médico inspetor da colônia, um cargo desses, bicho… Ele ficou 10 anos por lá e foi responsável por melhorias no saneamento básico e tratamento de água, melhores condições de internação de pessoas com lepra e com deficiência intelectual, além de melhorar as condições de vida de escravos e presos.
E não para por aí, nesse período é atribuída a ele a primeira cesariana realizada com sucesso no continente africano, o baby foi batizado de James em sua homenagem. Fofo.
Finalmente em 1827 foi promovido a cirurgião. Aí ele passou por diversos lugares: Ilhas Maurício, Jamaica, Ilha de Santa Helena, Ilhas Sotavento, Ilhas Barlavento, Malta (Alô Fencas!), Inglaterra, Corfu – na Grécia, Crimeia (onde conheceu Florence Nightingale) e Canadá.
No meio do caminho ele voltou à Cidade do Cabo para cuidar de seu velho amigo Lorde Somerset até sua morte em 1831, também teve febre amarela e enfrentou epidemia de cólera. Muitas vezes durante esses anos sofreu com uma galera que desconfiava que ele pudesse não ser homem. Um episódio teria sido mais grave onde foi acusado de ter tido “conduta inapropriada” com outro médico do exército, sendo levado à corte marcial e, felizmente, inocentado.
Vejam vocês que James e Florence não se gostavam e diversos rumores de que os dois se desentenderam algumas vezes se espalharam, até que depois de sua morte Florence declarou o seguinte:
“Depois que ele morreu, me disseram que (Barry) era uma mulher. . . Eu devo dizer que (Barry) foi a criatura mais dura que já conheci.”
Muita treta…
No Canadá foi promovido ao cargo general de brigada, no ano de 1850, onde lutou por melhores condições de vida da população e dos soldados. Não importando o alto cargo, James foi preso várias vezes por discutir com seus colegas de trabalho por causa de questões humanitárias. Foi forçado a se aposentar em 1859, por causa da idade avançada.
Em 1865 faleceu, após morrer teve sua “verdadeira” identidade descoberta e por isso seu nome foi sendo apagado da história aos poucos. Mas aqui estamos nós mais de cem anos após seu falecimento celebrando sua vida. E é por isso que James Barry é uma das Grandes Pessoas da História.
Para escrever este texto eu consultei:
A Wikipedia – Quem Nunca?
E o Guia do Estudante de 2010 – Não é o que parece: Einstein, James Barry e Francisco de Assis.
Também consultei esse texto, maravilhoso. Infelizmente, não temos muitos conteúdos em português sobre ele, quem manjar do idioma da rainha pode ler:
https://www.theguardian.com/books/2016/nov/10/dr-james-barry-a-woman-ahead-of-her-time-review
Na Universidade de Edimburgo, onde James se formou, existe um texto que explica brevemente sua vida:
https://www.ed.ac.uk/medicine-vet-medicine/about/history/women/james-barry
Já esse aqui é para nerds nível hard, porque contém os registros dos lordes da época, é de 1840 e tem parcialmente disponível no dr Google:
THE SESSIONAL PAPERS OF THE HOUSE OF LORDS: SESSION 1840, VOL XL
https://books.google.com.br/books?id=RxJcAAAAQAAJ&redir_esc=y
Créditos imagem:
1 – wikipedia
2 – Museu de Joanesburgo, África do Sul