– Cara, você assistiu aquela série da Netflix, Stranger Things? – perguntou Tiago para Bruno, enquanto caminhavam em direção ao restaurante, no horário de almoço do trabalho.
– Assisti, sim! – respondeu Bruno – É muito boa, mas só vi uns três episódios no final de semana. Tinha muitas coisas pra resolver. Mas estou ansioso, cara! Não vejo a hora de retomar a série.
– Pois é, Brunão. Também curti bastante. Vi a primeira temporada no sábado. Não tinha nada pra fazer então “matei” todos episódios. O primeiro episódio, – continuou – quando eles estão jogando RPG, me lembrou a gente jogando na sua casa. Claro que eles jogam com muito mais destreza que a gente. Aliás, quando vamos marcar a próxima mesa?
– É verdade. Gostaria de ter mais tempo pra jogar, mas quando não sou eu, Rodrigo, Gabriel ou o Chico está ocupado. Está difícil de conciliar as agendas. Quando foi nossa última mesa?
– Mal me lembro, mas acho que faz uns bons quatro meses.
– Faz tanto tempo que provavelmente vocês nem devem lembrar mais de nada. Vamos tentar marcar uma data no grupo e aí envio um resumo pra gente poder retomar de onde paramos.
– Cara, prometo que na próxima mesa vou mais preparado. Quando você ficava pedindo pra gente entrar no personagem eu achava um pouco exagerado. Mas, depois de assistir à série e ver como eles jogavam, consegui te entender. Fica muito melhor e mais natural.
Há um ano e meio, Bruno surgiu com a ideia de reunir um grupo de amigos para jogar RPG. Ele, por gostar de Dungeons and Dragons desde pequeno, pesquisou até aprender o necessário para tornar-se um mestre de uma campanha de D&D com seus amigos.
Bruno explicou aos amigos, que nada sabiam sobre esse jogo, que o D&D é um sistema de RPG de fantasia, no qual cada jogador cria um personagem de sua preferência entre diferentes raças e classes, e assim embarca em aventuras para derrotar monstros, acumular tesouros e evoluir suas habilidades. Cada personagem, individualmente, tem a capacidade de evoluir de um simples camponês até chegar a se tornar um herói poderoso!
– Mas como se joga isso? – quase todos disseram – Sei que tem vários livros, regras, tudo no papel. Parece ser bem complicado.
– Então, – disse Bruno – sempre que dizem isso gosto de exemplificar de uma forma bem prática. O RPG não se resume às regras, mas ao desenvolvimento de cada player com o seu personagem no contexto proposto pelo mestre. Veja, talvez fique fácil de entender com esse trecho de um livro que fala sobre o assunto:
— Já jogou D&D? — perguntou JP, na minha cozinha, com os olhos brilhantes e enormes por trás das lentes extra grossas dos óculos que usava. JP era um ano mais novo do que eu. Era baixinho, de aparência frágil, mas bastante animado e falava rápido. Ele estava usando uma tipoia. Havia acabado de quebrar a clavícula. De novo.
— D&D? O que é isso? Um jogo de tabuleiro?
Falando sem parar e em alta velocidade, ele explicou a premissa:
— Dungeons & Dragons? Não é um jogo de tabuleiro normal… não como os que você já viu. Você joga com um personagem… e tem um monte de regras. — Ele revirou a mochila e tirou uma pilha de livros. Em seguida, despejou o conteúdo de um pequeno saco sobre a mesa cheio de objetos pequenos e coloridos. Pareciam ser pedras preciosas. — Dê uma olhada nesses dados! É assim: eu sou o Mestre do Jogo. Eu crio um cenário, uma aventura, um mundo. E eu te falo sobre ele. E você diz o que o seu personagem quer fazer.
— Personagem? Como assim? — eu perguntei. Aquele garoto era estranho.
JP suspirou.
— Bom, é mais ou menos assim. — Ele pensou por um momento. — Imagine que você está numa floresta escura. Mais adiante, na trilha, você percebe uma criatura bem feia: dois metros e dez de altura, orelhas pontudas e a boca cheia de dentes pretos apodrecidos. A criatura veste uma armadura de malha de metal bastante surrada e também um elmo. “Amigo ou inimigo?”, ela resmunga. O punho da criatura aperta com mais força ao redor do mangual que ela traz consigo, e ela começa a brandir a arma. Deste jeito. — JP deu uma olhada ao redor e pegou uma frigideira que estava sobre o fogão. Ele a agitou no ar. — O que você faz?
— O que eu faço? — É um orc. O que você quer fazer?
A minha casa velha e caindo aos pedaços se desfez à minha volta. O papel de parede que começava a se soltar, as pilhas de pratos sujos, a fumaça do cigarro, a perna manca da minha mãe. Tudo aquilo desapareceu.
— Ah… — Hesitei. Tudo bem, acho que consigo fazer isso. Mas não sei que jogo é esse. Eu nem sei o que é um mangual. Ou um orc. — Ah… eu ataco? Com a minha espada. Eu tenho uma espada?
JP rolou os dados. Apertando os olhos, ele folheou alguns livros e papéis e olhou para uma tabela.
— Certo, a sua espada curta atinge a criatura no ombro. O sangue negro jorra pelo ferimento. O monstro grita, “Arrghhh!” — JP demonstrou, jogando-se para trás, contra a parede. — Você tirou quatro pontos de vida dele.
— Legal. — Eu queria perguntar o que era um “ponto de vida”, mas não tinha importância. Eu já estava encantado.
— Agora o orc vem correndo na sua direção. Ele está bem furioso. — JP arreganhou os dentes e moveu o corpo para a frente e para trás para demonstrar o efeito. — E agora, o que você faz? — perguntou ele, com um sorriso enorme se abrindo no rosto.
O que eu faço? Havia muitas coisas que eu queria fazer. – Tudo que um geek deve saber, de Ethan Gilsdorf.
Apesar do perceptível interesse, poucos amigos aceitaram o convite, inicialmente. Alguns por falta de tempo, outros por falta de interesse, e alguns por ainda julgarem não ter mais “idade” para isso. De qualquer forma, o grupo formado foi o suficiente.
Bruno, enquanto mestre, foi responsável por desenvolver a história e criar o universo com o qual os personagens interagem. Tiago escolheu jogar com um Patrulheiro Humano, Chico escolheu um Guerreiro Anão, Gabriel escolheu um Mago Humano e Rodrigo um Feiticeiro Elfo. Assim, a primeira experiência de todos com o RPG se desenvolveu, através da história criada por Bruno.
E nesse rico universo, apesar da falta de experiência dos jogadores, ao final da “mesa” todos levaram o mérito de derrotar a Medusa!
Todos saíram felizes e encantados com esse jogo, e perceberam que o RPG está muito além das regras ou sistemas que se utiliza para jogar. O RPG, na verdade, se constrói pela interpretação dos personagens para com a trama proposta, se constrói na colaboração entre os personagens até o cumprir de uma quest, se constrói com as várias horas de risada ao lado dos seus amigos. Basta permitir a criatividade conduzir a história e coisas inimagináveis podem acontecer.
– Conto com vocês para o bom desenvolvimento da nossa história – disse Bruno a todos ao final da mesa. – Meu intuito – continuou – é que possamos nos divertir e desenvolver a trama de forma mais natural. Vocês ainda precisam encontrar a princesa desaparecida! Na próxima “mesa” não serei tão bonzinho como fui nas outras. Afinal, vocês estão mais fortes e mais experientes.
Quanto ao texto ficam os meus agradecimentos ao meu amigo, D. Cordeiro, por conceder um pouco de sua experiência pessoal sobre o jogo, e a todos os amigos que tanto tem se esforçado para conciliar as agendas para mais um dia de RPG e muitas boas conversas.