Com o lançamento de Demon Souls para PS3 em 2009, a desenvolvedora FromSoftware começou a ficar conhecida no mundo dos games e em pouco tempo já se tornou uma empresa muito querida pelos fãs, praticamente criando um novo gênero (ainda há discussões sobre isso), o Souls Like. Logo os games da FromSoftware viraram sinônimo de qualidade e dificuldade elevada, sendo os responsáveis por vários controles quebrados durante acessos de raiva dos jogadores. Porém a empresa não tem só games desse tipo no seu currículo. Criada em 1986 e começando a produzir games em 1994, a FromSoftware possui joias raras que merecem ser jogadas e apreciadas. Esse é o caso do game de hoje. Portanto, prepare seus talismãs de proteção, pois juntos iremos enfrentar demônios e fantasmas, além de conhecer as figuras históricas que inspiraram a criação dos personagens do game Kuon.
Antes de tudo um pequeno aviso. Teremos alguns SPOILERS sobre a trama, mas nada que estrague de fato a experiência de quem for jogar. Avisado dado, vamos em frente.
Lançado em 2004 para PS2, Kuon é um survivor horror nos moldes de Resident Evil e Silent Hill, onde controlamos três protagonistas durante um surto de “monstros” na mansão Fujiwara, mansão situada onde hoje é a capital Quioto. O game se passa durante o período Heian, porém sua narrativa sombria é fortemente inspirada nas antigas histórias de fantasmas japoneses, as Kaidan, originárias do período Edo (período sobre o qual já falamos em três textos que você pode ler aqui, aqui e aqui).
O período Heian é a última era da história clássica do Japão, indo de 794 a 1185 e sendo considerado o ponto máximo da arte, poesia e literatura na corte imperial. Seu nome vem da capital do país, Heian-kyo, hoje Quioto. Apesar de na época o imperador possuir a soberania total do país, o poder estava na verdade concentrado nas mãos de uma família, os Fujiwara. Afim de lhes garantir altos cargos políticos, eles usavam da estratégia de casar seus membros com pessoas da corte imperial. Inclusive foi nessa época que começaram a surgir os samurais (bushis), já que havia a necessidade de proteger as províncias e os interesses particulares dos nobres.
No game, a Mansão Fujiwara é o palco principal dos acontecimentos. É para ela que o “exorcista” Ashiya Doman vai depois que é chamado pelos proprietários para investigar estranhos casos e aparições que andam ocorrendo no local. Na verdade, Doman é um onmyōji, sacerdote especialista em magia e adivinhação. Porém, ele não vai sozinho. Leva consigo seus discípulos, entre eles Sakuya, uma das três personagens jogáveis. Utsuki é outra que controlamos no game. Ela e sua irmã Kureha são filhas de Doman que chegam na mansão à procura de seu pai que desapareceu depois de atender o chamado dos Fujiwara.
Ambas personagens utilizam cartas e talismãs de proteção para combater os inimigos. Esses itens eram usados nos rituais e preces do Onmyōdō, cosmologia esotérica que ditava a vida na corte imperial. O Onmyōdō, realmente teve sua origem no período Heian, quando o Budismo, Taoísmo e Xintoísmo tiveram seu ápice.
Ao longo da jogatina, é revelado que o grande antagonista da trama é o próprio Ashiya Doman. Através do sacrifício de pessoas, Doman planeja ressuscitar uma de suas filhas, Kureha (que descobrimos estar na verdade morta desde o início), utilizando o ritual Kuon. Quem parte para detê-lo é a terceira protagonista do game, Abe no Seimei.
O Onmyōdō tinha tanta influência durante o período Heian, que seus sacerdotes (onmyōji) eram funcionários públicos do Japão. E, se no game Abe no Seimei chega para concluir a trama e salvar o dia, isso se deve a uma grande figura histórica dessa época que inspirou a personagem da personagem, o próprio Abe no Seimei.
Abe no Seimei no game é uma mulher, mas na vida real ele era um homem e foi considerado o maior onmyōji da corte imperial nesse período. Tudo isso devido às suas espantosas previsões que se mostraram bem precisas. Uma das mais impressionantes foi a previsão da abdicação do Imperador Kazan.
A história de vida do grande onmyōji é cheia de lendas, sendo ele considerado um ser humano com alma divina, fruto de uma união entre um humano e um yokai espirito de raposa.
Por sua grande influência, Abe no Seimei possuía vários rivais, muitos tentando tomar seu lugar na corte, entre eles estava outra figura história, Ashiya Doman (que também influenciou a criação do personagem no game).
Em uma das lendas sobre esse período, Doman lançou um desafio a Abe no Seimei pedindo que ele adivinhasse o conteúdo de uma caixa, conteúdo esse que Doman, através de trapaças, já sabia ser 15 laranjas. Seimei, percebendo a estratagema do rival, metamorfoseou as laranjas em ratos. Quando a caixa foi aberta e os ratos revelados, Doman ficou chocado e envergonhado perante à corte.
Se algum dia você for à Quioto pode visitar o Santuário Seimei, um santuário popular dedicado à essa grande figura do Japão, Abe no Seimei.
Além desses personagens históricos, o game nos apresenta diversos costumes da época, alguns inclusive são importantes para a trama.
As irmãs Utsuki e Kureha usam trajes típicos do período, o qual ficou marcado pela grande elegância em termos de vestimentas. As mulheres usavam um tipo de quimono de seda com várias camadas chamado Jūnihitoe. No inverno esse quimono podia pesar mais de 20 quilos. Já para os homens da corte era comum o uso da Kanmuri, um tipo de coroa que alguns dos onmyōji usam no game.
A seda era um sinal de status e geralmente reservada aos nobres da corte. Ela é proveniente dos Bichos da Seda, que são alimentados pelos produtores exclusivamente com folhas de amoreira. Em Kuon, os Bichos das Seda e uma amoreira são parte fundamental da história e são os causadores dos fantasmas e maldições na Mansão Fujiwara.
Voltando aos costumes da época, era comum as mulheres usarem cabelos extremamente longos. Havia um ditado que dizia: “Quanto mais comprido o cabelo, mais bonita é a mulher”. Novamente usando como exemplo Utsuki e Kureha, as duas são retratadas com cabelos bem longos no game. Outro costume das mulheres era remover as sobrancelhas naturais e depois redesenhá-las maiores e mais acima na testa. Kureha é apresentada fazendo uso desse costume.
A título de curiosidade, vale dizer que foi o durante o período Heian que os alfabetos Hiragana e Katakana foram criados. Isso ocorreu devido ao rompimento das relações com a China durante o século IX, fazendo com que o Japão assumisse suas próprias características e cultura, já que os Kanjis foram uma criação chinesa que os japoneses adotaram.
E chegando ao fim de mais um texto, gostaria de tecer alguns elogios ao game. Kuon é mais um daqueles games que poucos jogaram e se tornou cult, quem jogou com certeza lembra-se dele com carinho. É um survivor horror com uma temática poucas vezes vista (sendo quase um “milagre” ele ter saído oficialmente no ocidente) além de contar com algumas mecânicas de gameplay fora dos padrões, como o personagem sofrer vertigens (a tela começa a ficar distorcida) depois de tomar algum susto, ficar com pouca saúde ou entrar em locais com forte presença maligna, para se recuperar é preciso parar e meditar, ação que também tem função curativa, alternativa para os já manjados itens de cura, apesar de o game ainda mantê-los como opção de uso.
Protagonizada por três mulheres em uma época onde elas tinham pouca ou nenhuma voz ativa, criadas apenas para servirem aos maridos, a história surpreende. Pelo jeito que é contada, instiga o jogador a seguir em frente querendo saber mais, seja por meio das cutscenes ou de pergaminhos que esclarecem acontecimentos prévios e achados durante a exploração do cenário. É fato que controles não envelheceram tão bem, mas todo o resto compensa, principalmente se você é fã de games de terror ou quer saber um pouco mais sobre os costumes do Japão. Fica aí a recomendação.
Como sempre críticas e sugestões são sempre bem-vindas. Também deixe aí nos comentários se você já conhecia, jogou ou se interessou pelo game. Até mais e abraços.
Fontes: Wikipédia, Wiki Kuon, Caçadores de Lendas, Vestimentas Japonesas, Japão em Foco e Coisas do Japão