O brasileiro precisa ser estudado, diz o meme. E é muito engraçado, sem dúvida. Ele é capaz de mostrar os expedientes de sobrevivência (na maioria das vezes inusitados) de milhões de brasileiros e brasileiras para driblar as grandes questões nacionais como a miséria, a qualidade insuficiente da educação básica, a desigualdade de renda, gênero, raça cor e etnia, o desemprego e a falta de grana em geral… Ou também serve para expor, na rede mundial de computadores, coisas mais prosaicas mesmo, as famosas “gambiarras”, isto é, soluções que facilitam a nossa vida, como fazer miojo na cafeteira elétrica, usar garrafas pet como colete salva-vidas, utilizar o capô do carro para apoiar a churrasqueira, etc… Ou, ainda, usamos a expressão para exaltar a criatividade daqueles trocadilhos sensacionais como os restaurantes “Wesley Salgadão” e “Iphome”, ou o anúncio de um famoso supermercado: “- Os nossos preços Neymaram”.
Entretanto, o que o meme não diz é que O BRASILEIRO JÁ ESTÁ SENDO ESTUDADO. Há muito tempo… Estudado de múltiplas formas e sob diferentes contextos. E digo mais, os brasileiros também estudam outras sociedades e/ou grupos populacionais dos mais diversos, espalhados nos quatro cantos desse mundão de meu deus ateu.
Agora, adivinha quem são os responsáveis por exercer tão árdua tarefa? Sim! Nós mesmos, os e as Cientistas Sociais. Pois é. Existe todo um ramo científico, comportando uma sorte imensa de pesquisas empíricas e saberes teóricos, que estão dando conta de entender, interpretar, esmiuçar, captar, enfim, estudar os famigerados brasileiros e brasileiras de Norte a Sul do país (e fora dele também). Outras ciências também colaboram nesta tarefa: a Psicologia, a História, a Economia, a Geografia… As chamadas “humanidades” que, do mesmo modo, se debruçam sobre a realidade nacional a fim de – assim como toda a internet – tentar compreender como e porquê a gente age do jeito que age. Vamos nos ater, contudo, às Ciências Sociais e tentar demonstrar, com poucos exemplos, como a pesquisa social se organiza no nosso dia-a-dia.
Para início de conversa, é legal explicitar aqui que as nossas queridas Ciências Sociais são, na verdade, um conjunto composto por três escolas de conhecimento diferentes, cada uma mais ou menos responsável por um aspecto – ou olhar – sobre a realidade social, suas estruturas culturais e de distribuição de poder (por isso, inclusive, o correto é a grafia no plural). Não que uma área não escorregue pro lado da outra, e bem-dita a verdade, todo mundo acaba usando um pouco do método de um junto com algum teórico do outro ou campo de pesquisa clássico do terceiro. As “especialidades” se dão, em geral, na pós-graduação, quando você, de fato, prioriza um determinado assunto e usa, predominantemente, um tipo de teoria e um tipo de metodologia mais característico da área de atuação. Essa “pretensa” divisão mais estrita é muito difícil de acontecer. Até para as descrever separadamente nesse texto foi complicado… Mas, ok, que áreas são essas, então?
A Sociologia, a Antropologia e a Ciência Política. Como os próprios nomes indicam, cada uma dessas disciplinas se debruça, de forma mais específica, sobre algum ponto de análise. A Sociologia, preferencialmente, coloca à disposição um conjunto de teorias e métodos que visam a compreender como as relações sociais se dão em determinado contexto histórico, não pretendendo levantar verdades, mas sim, identificando e interpretando fatores que influenciam ou potencialmente determinam certos tipos de interações coletivas. Trata-se de entender como as pessoas agem e, principalmente, o porquê. A Antropologia, por sua vez, tem como principal objetivo desvendar as estruturas daquilo que se convencionou chamar de “cultura”. Muitas aspas porque esse é um conceito altamente complexo e não vamos entrar em detalhes aqui… O importante é saber que os estudos antropológicos se interessam, geralmente, pelos valores e práticas cotidianas dos indivíduos (afinal, “antro” significa “humano”, certo?), levando em consideração o lugar onde essas pessoas estão e como se percebem enquanto seres culturalmente informados. E por último, a Ciência Política observa como são formados, ao longo dos anos, os modos de organização do poder, sobretudo aqueles ligados ao Estado, aos governos e as instituições de uma maneira geral. É quem pensa sobre “política” no sentido mais amplo do termo – além, é claro, do sentido mais comum, como eleições, relações internacionais, etc.
Ufa! Difícil separar as disciplinas assim. Até porque, como adiantamos, tudo se mistura mesmo. Mesmo, mesmo, mesmo. Não tem como achar que você vai conseguir se manter, intacto, dentro de uma área de pesquisa. Isso seria contraditório com o próprio sentido das Ciências Sociais, justamente o de reunir o maior número possível de perspectivas para dar conta de analisar uma coisa tão complexa como a realidade social de qualquer grupo humano. E convenhamos, a interdisciplinaridade é mesmo muito linda e muito útil. Não só entre as humanidades, mas também com o pessoal das exatas, das biológicas e da linguística. Vamos se amar, gente – e trabalhar juntes! <3
Continuando.
A invariável mutabilidade e os inevitáveis atravessamentos (ou interfaces) das áreas das Ciências Sociais, entretanto, ficam contidos em centros de pesquisas distintos e especializados. Aqui no Brasil, além das pós graduações strictu sensu (mestrado, doutorado e pós doutorado) e lato sensu (especializações) vinculadas às universidades e faculdades públicas e privadas, ainda é possível encontrar Institutos de Pesquisa que executam projetos e/ou fornecem suporte técnico para avaliar demandas sociais particulares da realidade brasileira e estimar os impactos que qualquer ação desempenhada por órgãos públicos ou privados pode causar em vidas humanas, arranjos sociais e a própria natureza. Há, inclusive, setores que avaliam esses impactos dentro das próprias empresas privadas, embora o investimento do mercado e da indústria nesses tipos de pesquisa e gestão ainda seja muito pequeno.
É de grande relevância notar que, assim como ocorre em praticamente todas as outras áreas científicas no Brasil, os maiores e mais importantes polos de produção de saber das Ciências Sociais estão na esfera pública, dependendo diretamente do orçamento federal e estadual para manterem suas atividades. Algumas das mais bem conceituadas pós graduações das áreas das Ciências Sociais do país, por exemplo, estão situadas na Universidade de São Paulo (USP), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), na Universidade de Brasília (UnB), na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)… e os Institutos de pesquisa que utilizam as Ciências Sociais em seus projetos e projeções também são fundações públicas, a exemplo do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), da Fiocruz, etc… E não é só a quantidade de material produzido que importa, mas sim, a relevância dos resultados publicados para a ciência no mundo inteiro.
Desde os estudos mais localizados e subjetivos até os fenômenos macro estruturais – como o projeto que avaliou os efeitos produzidos pelo Programa Bolsa Famíliapara a sociedade e economia nacionais, ou oprograma de monitoramento e assistências aos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato, ou, ainda a iniciativa do Manchetômetro , que avalia a cobertura da grande mídia sobre assuntos-chaves da realidade brasileira – é através da pesquisa envolvendo as Ciências Sociais (sozinhas ou em conjunto com outros saberes científicos) que a gente consegue compreender inúmeros eventos que acontecem, ou aconteceram, no nosso dia-a-dia. São diversos campos de atuação e análise possíveis: mundo do trabalho, saúde, gênero, sexualidade, conflitos agrários, violência urbana, questões étnicos raciais, consumo, movimento sociais, processo eleitoral, política internacional, ciberativismo, educação, etc., etc., etc. Só abrir qualquer programação de qualquer evento científico das CS que vocês vão perceber a variedade imensa de temas abordados.
E fazer tudo isso não é fácil nem rápido, apesar de essencial. A dedicação à ciência – e, portanto, também às Sociais – é uma tarefa frustrante na maioria das vezes. Normalmente começa com um tema, depois um esboço que não é nada mais que uma ideia inicial. Você começa a pesquisar sobre essa ideia e eis que surgem diferentes caminhos possíveis para seguir. Sabendo que, ao escolher um caminho, você excluiu outros, por fim, você se decide e segue pesquisando. É quando nasce o objeto de pesquisa. Retrocede, avança, retrocede mais do que avança, e num ponto você embala e a pesquisa tá quase pronta. Quando está para sair o primeiro resultado você, não raro, se toca que ele não é positivo, não é exatamente o que você esperava. E assim, você precisa rever toooodos os seus passos para se certificar que não há nada de errado no que você fez. Tá tudo certinho, você se diz. A ideia inicial é que não estava correta. Então reformula ela e seque pesquisando… O que queremos dizer, com esse longo parágrafo é: na ciência, é muito pouco provável que você saiba a utilidade daquilo que você está pesquisando de antemão. O resultado só vem no fim, como por obviedade da própria palavra, resultado. Você, no máximo, pode estimar que, talvez, quem sabe, se os deuses ajudarem (sim, no desespero você pode se pegar convertido de vez em quando), seu resultado vai ter a tal utilidade. No fim, pode ter outra utilidade. Outras utilidades. Ou nenhuma utilidade. Nesse caso, o que é um resultado negativo para você, pode ser utilizado por outra pessoa, fazendo com que ela não trilhe o mesmo caminho seguido por você. Nesse caso, a sua pesquisa tem o que podemos chamar de utilidade científica, e é comum dizermos no fim que, o resultado que temos é tal, e que ele ajuda a ampliar os conhecimentos sobre aquele tema em geral.
E tá aí a imprescindibilidade da pesquisa. Sempre tenha em mente que, quando você vir na TV, internet, jornal, revista, ouvir no podcast que um cientista encontrou um resultado qualquer, saiba que isso só foi possível porque outros cientistas agregaram conhecimento àquela área específica. O avanço científico é uma tarefa conjunta, envolve todo um corpo gigante de pesquisados no Brasil e no Mundo embora, contraditoriamente, cada um de nós trabalhe solitariamente ou em pequenas equipes ou núcleos.
Sofrer com cortes orçamentários públicos não é apenas “ficar sem dinheiro para estudar e produzir conhecimento sobre nós mesmos”. Significa impedir o funcionamento dos setores da Ciência e Tecnologia nacionais – institutos de pesquisas, programas de pós-graduação, programas de formação e capacitação de professores, etc. – e com isso dificultar (ou até mesmo abandonar) um projeto de país mais cidadão, consciente, justo e rico. Afinal de contas, o brasileiro precisa CONTINUAR sendo estudado, não é mesmo?
Thiago Brandão. Sociólogo e acredita que o louco só está usando uma metodologia diferente.
Raquel Oscar.Antropóloga, problematizadora nerd e acredita que a tecnologia vai salvar a humanidade – mas não do jeito que você imagina.