A temática do fascismo na atualidade tem assumido um tom quase obsessivo, tamanha é a desconfiança e o medo de que “Auschwitz se repita”, para usar uma expressão de Theodor Adorno. Tanto o fascismo italiano de Benito Mussolini, como o nazismo antissemita de Adolf Hitler, ocorreram ao longo de três décadas e, ainda que tenham sido derrubados em suas formas estatais correspondentes, ambos estão longe de ser fenômenos superados. Isso porque o fascismo não é apenas um fenômeno político específico daquelas sociedades que, em meio a suas crises, foram seduzidas a uma estrutura política totalitária. Mais que isso, é uma tendência eterna inerente às estruturas da razão do ser humano, como uma espécie de tentação que sempre esteve presente, desde os primórdios da humanidade e podem ser evidenciados na atualidade.

A tese de que o fascismo é eterno não é nova, a exemplo da famosa conferência de Umberto Eco, realizada na Universidade de Columbia em 1995, intitulada “O fascismo eterno” ou “UR-Fascismo”. Essa conferência pode ser conferida através do texto, com o mesmo título, ou, para os amantes de vídeos e documentários, parte das ideias da mesma no vídeo “O que é fascismo” do Canal Nostalgia de Felipe Castanhari.  Basicamente Eco defende a tese de que o fascismo não é um governo ou regime e sim um modo de pensar e sentir, bem como hábitos culturais, instintos obscuros e pulsões. Com o fascismo é possível “[…] jogar de muitas maneiras, sem que mude o nome do jogo”.

São vários aspectos elencados por Eco para a identificação de fascismo, os quais são fundamentais para entendermos que “o termo ‘fascismo’ adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará sempre a ser reconhecido como fascista” (ECO, 2020, p. 42-43). Isso faz com que o próprio termo e definição tornem-se um tanto quanto obscurecidos.

Assim, parece conveniente, como sociedade, permanecermos atentos aos novos contornos que o fascismo assume ou pode assumir, não apenas tendo como embasamento os conceitos tradicionais, mas também percebendo que ele pode se apresentar nas novas dinâmicas do mundo contemporâneo, principalmente nos comportamentos humanos no ciberespaço.

No texto freudiano, A Psicologia das Massas e análise do Eu, texto que ajuda a entender o fenômeno do fascismo desde o comportamento do indivíduo na dinâmica da massa, podemos perceber algumas características que se repetem, desde o contexto das primeiras análises da psicologia das massas, até nos modos de comportamento atuais em redes sociais.

Freud observou que a massa é irracional e não escuta a razão. Na massa, o sujeito e suas peculiaridades são minimizados em função do grupo e, como a massa é impessoal, as ações de cada um desligam-se das amarras das convenções sociais. Por uma questão de anonimato, a perspectiva ética pode facilmente ser ignorada, até porque as características que esse indivíduo passa a apresentar advém do inconsciente. Diluído na massa, segundo Freud, o indivíduo vai aos extremos: antipatia vira ódio, suspeitas se tornam certezas absolutas e a única influência possível sobre as massas é aquela totalmente desmedida.

Somente os clichês, repetições e exageros funcionam na racionalidade – ou irracionalidade – da massa, e é assim que se perde toda a noção de responsabilidade, moralidade e consciência social. Nessa condição de massa os indivíduos adquirem um sentimento de poder invencível e infinito que se dá não apenas pela extensão numérica dos ali envolvidos, mas por uma questão afetiva, com os outros que compõem a massa e também com o líder.

Consideremos, portanto, o fascismo como uma potencialidade eterna na humanidade. Essa mesma razão fascista foi reforçada pela modernização do mundo, pela massificação das sociedades, bem como pela intensificação da lógica neoliberal. É de certa razoabilidade pensar que podemos viver num futuro próximo, ou mesmo agora, um novo fascismo, que se dê em moldes diferentes, pois a intensificação das estruturas racionais do fascismo se dão agora no contexto de um ciberespaço.

O ciberespaço funciona apenas pela lógica ou norma do desejo, um dos principais motivadores do neoliberalismo. Para Bernard Charlot, “esse espaço de circulação do desejo se pretende sem normas: qualquer norma é considerada como censura”. O sujeito está abandonado apenas à norma dos códigos, algoritmos e a do neoliberalismo, e dessa forma, não há garantias para que se preze pelo respeito e pela democracia nessas relações intersubjetivas.

O ciberespaço não é lugar de expressão da singularidade e diversidade. Pelo contrário, segundo Charlot “é um lugar que, por natureza, tende a fechar as comunidades de gostos e opiniões em seu ‘mundinho particular’ rapidamente hostil ao que é outro”. Vemos assim, de forma cada vez mais acentuada, a formação do que chamamos de bolhas: mundos particulares que funcionam como pequenas comunidades de sentido, fundadas em suas próprias convicções e fechadas tanto à possibilidade de crítica e argumentação, quanto ao próprio mundo ao seu redor.

Nesse ciberespaço há um cenário cada vez mais evidente de concentração de pessoas que pensam parecido, reunidas em bolhas, o que potencializa inclusive a polarização política, fragilizando cada vez mais a qualificação das opiniões e os meios democráticos de diálogo e busca por consensos. Podemos perceber como esses fenômenos se expandem ao mundo político no documentário “Dilema das Redes” da Netflix. Para Kakutani, autora de A morte da verdade: notas sobre a mentira na era Trump, esse cenário é “[…] exponencialmente acelerado pelas redes sociais, que conectam usuários que pensam da mesma forma e os abastecem com notícias personalizadas que reforçam suas ideias preconcebidas, permitindo que eles vivam em bolhas […] sem comunicação com o exterior”.

Assim é possível fazer uma justa relação entre o comportamento geral dos indivíduos no contexto do ciberespaço, arrebanhados pelos códigos dos algoritmos, e as características de grupos numa sociedade de massa. Cada vez mais as opiniões se polarizam e o comportamento das pessoas ao defender essas opiniões, mais e mais se aproximam das percepções de Freud. Parece que nesse cenário que potencializa os velhos e novos ódios, guerras santas, extorsões financeiras, fraudes políticas e fake news, a sabedoria das multidões, ou seja, da massa, rouba a cena da esfera pública e, como já se evidenciou na história, em períodos de regressão democrática, abrem-se as portas para o fascismo.

Referências

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020.

CHARLOT, Bernard. Educação ou barbárie? Uma escolha para a sociedade contemporânea. Tradução de Sandra Pina. São Paulo: Cortez, 2020.

ECO, Umberto. O fascismo eterno. Tradução de Eliana Aguiar. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 2020.

FREUD, Sigmund. Freud (1920-1923) – Obras completas volume 15: Psicologia das massas e análise do Eu e outros textos. Tradução de Paulo César de Souza. Brasil: Companhia das Letras, 2011.