Existe uma pedra no sapato de todo historiador. Na verdade existem várias, mas eu quero destacar aqui uma das maiores: os livros, vídeos, artigos e etc no estilo “Eram os Deuses Astronautas?”. Estou me referindo àquelas “pesquisas” cheias de teorias mirabolantes sobre a origem da civilização. O título é tirado do livro escrito em 1968 pelo suíço Erich von Däniken que se tornou a bíblia dos pesquisadores que são sempre citados por um certo canal de televisão como “Teóricos dos Antigos Astronautas”. Eles defendem a teoria de que a Terra vem sendo visitada, desde tempos imemoriais, por seres alienígenas (os tais “astronautas”) que teriam ensinado as bases da civilização para os primeiros homo sapiens, desenvolvendo os conhecimentos científicos desses povos primitivos e auxiliando com sua tecnologia a construção de monumentos como as pirâmides do Egito e da América, os moais da Ilha de Páscoa, Stonehenge, entre outros. Alguns vão além: esses aliens teriam procriado com uma determinada espécie de primata, dando origem à espécie humana. Seria um excelente enredo para um filme de ficção científica, não é? Ops! Já foi, aliás! Quem não se lembra do clássico Prometheus? Só para citar um entre muitos outros…
Mas o que incomoda os historiadores é que esse tipo de teoria não tem qualquer indício de comprovação científica, sendo inteiramente refutada no meio acadêmico e, mesmo assim, costuma passar por pesquisa genuína em diversos sites e fóruns internet a fora. A principal fonte de tais especulações seria simplesmente a imaginação fértil dos “Teóricos dos Antigos Astronautas”!
Bem, já que o negócio é imaginação, vamos brincar com ela então? Só que eu prefiro brincar com algo bem mais real e plausível do que aliens nos colonizando! Estou falando de viagem no tempo! Por que vocês estão rindo? Viagem no tempo existe! Estamos todos, nesse exato momento, viajando para o futuro, um segundo por vez, mas estamos…
Mas sem brincadeira! Stephen Hawking costumava dizer que “a prova de que no futuro não existirão viagens no tempo, é que não estamos sendo visitados pelos viajantes do futuro”. Mas vamos imaginar uma realidade hipotética em que viagens para o passado sejam possíveis. E para isso, vamos nos apropriar de uma lenda comum entre diversos povos nativos da América do Sul, incluindo os povos das tribos Tupi aqui no Brasil: o Sumé!
Reza a lenda que foi na imensa e fértil região das águas de montanhas e areias, que vem do Espírito Santo até o Rio de Janeiro, que apareceu o Sumé, o venerando velho, pai da agricultura, cuja memória foi tão criminosamente perdida pela ingratidão dos homens!
A primeira aparição do Sumé, segundo a tradição, se deu no território dos Tamoios, que ia desde o cabo de São Tomé até o litoral norte de São Paulo. Vivendo em guerra constante contra os Goitacazes e os Goianases, os Tamoios dominavam essa vasta região litorânea e formavam uma confederação. Contam que em um dia, no qual se encontravam reunidos à beira-mar celebrando uma vitória contra o inimigo, grande número de nativos avistaram, surgindo do mar, uma grande figura, que mais parecia um deus do que um homem:
“Era um grande velho, branco como a luz do dia, trazendo, espalhada no peito, como uma toalha de neve, até os pés, uma longa barba venerável, cuja ponta roçava a água do mar. E houve um grande espanto entre os Tamoios, vendo assim um homem, como eles, caminhar sem receio sobre as ondas como sobre terra firme.”
Esse homem era o Sumé! O enviado de Tupã que para esses povos era o senhor do Céu e da Terra. O Sumé, por sua vez, operava inúmeros prodígios nunca vistos pelos nativos: tempestades cessavam ante a sua presença, o mar se acalmava com um simples gesto seu, a própria mata se abria para lhe dar passagem e as temidas feras que a habitavam vinham mansamente laber-lhe os pés e prestar reverência. Essa demonstração de poder fascinou de tal forma os nativos que esse tomaram-lhe como seu conselheiro. De tal forma que os caciques se reuniam para ouvir seus ensinamentos e para contar-lhe sobre o seu modo de vida e sobre as suas crenças de como Tupã criou tudo o que existe. Contaram a forma como Tupã puniu a maldade dos homens com um dilúvio e de como Tamandaré os redimiu.
Sumé amou a simplicidade e a força daquele povo e resolveu lhes ensinar como obter seu sustento de forma mais fácil do que viver simplesmente do que a mata lhes oferecia. Ensinou-lhes a cultivar a terra e dela colher seus frutos.
E disse Sumé: “A grande mãe é a terra: a grande mãe generosa! Basta acariciá-la, basta amá-la e afagá-la, para que ela se abra logo prodigamente em toda a sorte de bens e de venturas”. Mas um pajé, velho e sábio, conhecedor das coisas que o comum dos mortais ignora, observou: “Como pois, grande Santo, até hoje só tem ela tido para nós espinhos e répteis?” E Sumé respondeu: “Porque até hoje não a amastes com fervor e trabalho. Cavai-a e suai sobre ela: se rasgará agradecida, não para vos engolir, mas para vos dar vidas novas. Vinde comigo e vereis!”
O Sumé ensinou, então, àqueles povos que viviam praticamente da caça e da coleta, tendo direito somente àquilo que a terra lhes ofertava, a arte da agricultura. Os Tamoios aprenderam então a trabalhar a terra e dela obter o que queriam. Aprenderam também a converter em farinha a mandioca cultivada e o peixe pescado, a fim de que durassem muito mais tempo, podendo assim ser consumidos em grandes jornadas e durante longas batalhas.
Sumé ensinou ainda como curar feridas e doenças utilizando somente plantas e a construir velas para as suas rudimentares canoas e assim, navegar com maior rapidez e precisão.
Porém, diante do despeito e das críticas de alguns pajés ciumentos, que chegaram a atentar contra a própria vida do Sumé, o Santo se entristeceu e resolveu seguir seu caminho continente adentro, para levar sua sabedoria a outros povos. Os pajés o acusaram de desrespeitar as tradições, quando ele proibiu a poligamia e o canibalismo.
A lenda narra que, para adentrar a mata e chegar até os altiplanos dos Andes, o Sumé abriu um caminho que ficou conhecido desde então como “Caminho do Peabiru”! Ao ter contato com os povos das montanhas, ensinou-lhes sobre muitas outras coisas que os Tamoios não quiseram ou não foram dignos de aprender e entre esses povos ficou conhecido como “Viracocha”!
Diante de relato tão impressionante, podemos, com a licença que os “teóricos dos antigos astronautas” nos concederam, argumentar que o Sumé, nada mais era que um viajante do tempo, que viajou do futuro até aquela época para levar conhecimentos que tornaram a vida dos nativos mais tranquila e proveitosa!
Pense bem! Para qualquer pessoa do Século XX, ou além, conhecimentos básicos de agricultura e de conservação de alimentos por meio da desidratação destes é coisa fácil de se aprender e ensinar. Quanto a abrir a mata diante de si, bem, os índios não mencionam se o Sumé utilizava um maquinário barulhento para cortar as árvores. Mas por que limitar nosso pensamento imaginando-o segurando uma motosserra? Podia ser algo muito mais avançado, um laser ou algo do tipo. Andar sobre as águas parece mais simples ainda: ele podia estar em uma prancha de surf, em um jetski ou mesmo, mais uma vez, uma forma de se locomover na água que ainda será inventada!
Muito legal, né? Utilizando o precedente que os “teóricos dos antigos astronautas” abriram, podemos criar o passado da forma que preferirmos! Basta encaixar um argumento psicodélico aqui, outro ali e pronto! A História passa a ser só questão de opinião!
Mas isso é verdadeiramente História? Sinto dizer que não! História é Ciência! E Ciência é feita com base em evidências. O bom e velho método científico é o que separa a realidade da fantasia quando estamos investigando o passado. Então, a despeito de “histórias politicamente incorretas” e revisionismos irresponsáveis que vemos muito por aí hoje em dia, não dá para fazer História baseado somente em achismos.
No Portal Deviante temos um podcast chamado “Contrafactual”. Ele é feito por cientistas que conhecem e se atentam para os fatos registrados e aceitos pela comunidade científica, mas que se permitem um exercício de imaginação para pensar em quais seriam as consequências se a História da humanidade tivesse tomado rumos diferentes! É válido! E é muito empolgante! Da mesma forma como cineastas imaginam judeus assassinando Hitler em um cinema na França ou coisas do gênero.
Então vamos lá, amiguinhos, recapitulando: Essas teorias no estilo “eram os deuses astronautas” podem ser muito interessantes. Mas não são e nem passam perto de ser História. História é ciência, e por isso, obedece ao método científico para validar o conhecimento que constrói. E como toda boa ciência, de tempos em tempos revê seus conceitos e pode mudar interpretações há muito difundidas. Está justamente aí a beleza do método científico: não há cláusulas pétreas e verdades absolutas. Tudo está sendo revisado, o tempo todo!
Se daqui a alguns anos alguém realmente inventar uma forma de viajar no tempo para o passado, eu volto aqui e atualizo esse texto afirmando que o Sumé, com toda certeza, era um viajante do futuro!
Grande abraço a todos!
REFERÊNCIAS:
Sumé – Lenda dos Tamoios
Prometheus – filme