Estamos em 1994. Uma desenvolvedora relativamente pequena, conhecida até então como Silicon & Synapse e responsável por games memoráveis, como The Lost Vikings e Rock ‘n Roll Racing (lançados em 1992 e 1993 respectivamente) estava passando por mudanças. No início daquele ano o estúdio havia sido adquirido pela Davidson & Associates enquanto preparava novos títulos. Uma das mudanças foi o nome: o original deu adeus e após um breve tempo se chamando Chaos Studios (foram obrigados a mudar de novo pois já havia uma empresa com tal nome), foi escolhida a alcunha que todos conhecem: Blizzard Entertainment.

Após dois lançamentos menores (Blackthorne e The Death and Return of Superman), a Blizzard voltou suas atenções para o game que a equipe de desenvolvimento considerava sua menina dos olhos: um RTS para computadores com um grande foco na história e desenvolvimento de personagens e situações. O estúdio estava empenhado em lançar um game que introduzisse toda uma mitologia e fosse relevante o suficiente para se destacar entre os outros games do gênero.

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Warcraft: Orcs & Humans no entanto excedeu as expectativas: o game era tão refinado e trouxe tantas inovações que em pouco tempo ele se tornou não só o melhor RTS do mercado como redefiniu toda a categoria. E o lore era tão rico que explorá-lo em outras mídias era inevitável. Os anos se passaram, tivemos sequências fantásticas, o MMORPG World of Warcraft, um dos games mais jogados do mundo (e novamente um dos mais inovadores em seu gênero), quadrinhos, livros… mas faltava algo. “Por que não um filme?”, perguntavam os fãs. Seria posível fazê-lo? Não ficaria “videogame demais”?

Como o pessoal da Blizzard tem dinheiro de sobra e paciência hercúlea (basta conferir os CGs absurdamente detalhados de seus games, o estúdio sempre primou pela perfeição), eles cozinharam a ideia lentamente até que a oportunidade perfeita aparecesse. A Legendary Pictures (trilogia Batman de Christopher Nolan, O Homem de Aço, Pacific Rim, Interestelar) apareceu como a parceira perfeita para a produção, e a Universal entrou com a grana e distribuição.

Com isso Warcraft: O Primeiro Encontro de Dois Mundos chegou esta semana aos cinemas, para felicidade da Blizzard e de seus fãs. Mas a espera valeu a pena? Vamos descobrir.

Aviso: a partir deste ponto teremos leves SPOILERS para fins apenas de contextualização; se mesmo assim você não deseja saber nada da história, pule para o terceiro bloco.

For the Horde!

Desde o início o plano da Blizzard era revisitar toda a mitologia de Warcraft, portanto os eventos do filme remetem diretamente à Orcs & Humans. Aqui somos apresentados aos dois pontos de vista da situação: os orcs, uma poderosa raça guerreira são um povo à beira da extinção já que Dreanor, seu mundo natal está condenado. Sua única esperança de sobrevivência está em encontrar um novo lar, e é aí que entra a mão podre do xamã Gul’dan (Daniel Wu). Ele promete um novo mundo para seu povo, concedendo poderes assombrosos a quem lhe seguir fielmente. Só que tudo tem um preço, e o que os orcs pagarão por darem ouvidos ao xamã será bem alto.

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Nisso conhecemos Durotan (Tony Kebell), chefe do clã Lobo de Gelo (Frostwolf clan no original) e sua esposa Draka (Anna Galvin), que está grávida. Seu desejo de encontrar um lar para sua família o levará a questionar as ações de Gul’dan, que nem de longe é tão benevolente quanto diz ser; sua magia, a vileza (fel magic), que dá força aos orcs consome vida para ser utilizada, e destrói tudo o que toca.

O plano de Gul’dan é simples: abrir um portal para um novo mundo (às custas das vidas de centenas de reféns), invadi-lo com um um grupo de batedores e abrí-lo novamente do outro lado, com um maior número de sacrifícios para permitir a entrada de todas as tribos orcs, ou a Horda.

For Azeroth!

Pior para o povo de Azeroth, um mundo pacífico habitado por diversas raças como os anões, os elfos e claro, os humanos. O reino de Ventobravo (Stormwind), governado pelo rei Llane Wrynn (Dominic Cooper, o jovem Howard Stark do MCU e Jesse Custer de Preacher) conta com guerreiros da mais alta estirpe para repelir a misteriosa força invasora que detectaram, e aí entra o seu mais valoroso guerreiro: sir Anduin Lothar (Travis Fimmel, o Ragnar Lothbrok de Vikings e ex-modelo da Calvin Klein; todo mundo tem um passado).

Embora justo, Lothar não é o mais animado dos guerreiros e não é dado a confiar nas pessoas, com exceção de seu rei e sua irmã, a rainha-consorte Taria (Ruth Negga, a Raina de Agents of S.H.I.E.L.D. e a Tulipa de Preacher; aliás ela e Cooper são um casal no filme e na vida real). Ele negligencia até mesmo seu filho Callan (Burkely Duffield), a quem não vê como um soldado.

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Cai nas mãos de Lothar organizar a resistência aos orcs, se aliando ao enigmático guardião de Trisfal Medivh (Ben Foster, o Anjo de X-Men: A Batalha Final), o jovem mago Hadggar (Ben Schnetzer) e a meia-orc Garona (Paula Patton), que apesar de não confiar nos humanos e vice-versa (e por ser mestiça ela é odiada pelos orcs, é um pária) se torna peça-chave para um primeiro contato entre os humanos e os orcs dissidentes, liderados por Durotan.

A partir daí tem uma aventura como todo bom filme de fantasia pede, mas algumas ressalvas precisam ser feitas.

Fim dos SPOILERS.

“Welcome to the World of Warcraft”

Dirigido por Duncan Jones (Lunar, Contra o Tempo) e supervisionado de perto pela Blizzard, Warcraft é um festival para os fãs. Cada cenário, personagem, detalhe nas roupas e armaduras, tudo foi pensado para que os jogadores identificassem elementos, criaturas e outros aspectos só de bater o olho. Exibir um murloc de relance em um lago por menos de dois segundos, com ele fazendo seu som característico é o tipo de coisa que só quem curte a franquia há anos vai curtir.

E esse é o principal problema do filme: remova o fator “fã” e o que sobra é uma aventura comum, até bem clichê. Não que fosse inesperado, todo mundo sabia que o roteiro de Warcraft: Orcs & Humans seria adaptado e ele é deveras simples como história, e por causa ela não é grandiosa e épica o suficiente para prender a atenção de quem não é realmente fã de filmes como O Senhor dos Anéis ou Nárnia.

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Por outro lado há de se convir em uma coisa que o filme fez que é muito legal: ela igualou orcs e humanos. Os nativos de Dreanor não são apenas inimigos descerebrados como em muitos RPGs, quem joga sabe que eles são uma tribo orgulhosa e que embora belicosa, os orcs reconhecem o valor da vida e são extremamente honrados. A amizade de Durotan e Orgrim Martelo da Perdição (Robert Kazinnsky), posta à prova diversas vezes devido o desenrolar dos eventos é muito legal de se ver, assim como a importância dada à lealdade e ao respeito às suas tradições, bem como a relação entre Draka Durotan e os sacrifícios que estão dispostos a fazer pelo seu pequeno filho.

Isso deu uma nova camada de profundidade aos orcs, vistos como vis e malignos em muitas mídias. Na verdade eles são um povo que deseja o mesmo que todas as outras raças de Azeroth, que é encontrar um lar e viver em paz. Só que para alcançar tal objetivo eles usarão a única linguagem que conhecem: a guerra.

Os efeitos visuais estão dentro do padrão Blizzard de qualidade: muito detalhados, com reproduções fiéis do reino de Ventobravo, a torre de Karazhan, a cidade flutuante de Dalaran, sede do conselho de Kirin Tor… sem falar na perfeita reprodução dos orcs (cada um é diferente do outro; o design de Gul’dan então é perfeito, idêntico ao dos games) , dos elfos, dos anões, dos dreanei…

Caso o filme se saia bem nos cinemas e a continuação seja confirmada, os eventos que levam à Warcraft II: Tides of Darkness já estão todos encaminhados. E por que não sonhar com a adaptação do terceiro game? Arthas Menethil tocando o terror é algo que eu adoraria ver na sala de cinema.

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Conclusão

Eu me vi voltando no tempo. Eu joguei Warcraft na minha adolescência (nunca fui fã de WoW, no entanto) e foi maravilhoso contemplar aquele mundo de forma tão realista na tela grande, rever os acontecimentos em full resolution contra o RTS pixelado. Só que é preciso entender que há dois tipos de espectadores e um filme precisa atender ambos, mas Duncan Jones e a Blizzard decidiram por riscar uma linha entre eles.

Warcraft: O primeiro Encontro de Dois Mundos é um filme feito para os fãs da franquia, fato. A Blizzard se deu ao luxo de dar um presente para todos aqueles que durante 22 anos acompanham os jogos e religiosamente gastam seu dinheirinho em WoW todos os meses, e para esse público a obra é um deleite. Porém, aqueles que não conhecem nada dos jogos vão se deparar com uma aventura num mundo de fantasia simples, um autêntico blockbuster para assistir sem culpa.

Se você faz parte do segundo público, mas curte obras fantásticas o melhor conselho que posso dar é: deixe o cérebro em casa, abrace um balde de pipoca enorme, pegue seu refrigerante favorito e curta a viagem. Já o fã vai adorar identificar cada pormenor do mundo de Azeroth na telinha: as situações, personagens, locações, magias, tudo foi reproduzido fielmente e conduzido de forma a entreter magnificamente quem ama o mundo que a Blizzard criou.

Nota: 4 de 5 murlocs.

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