O sol se pondo, começando a esfriar. Os dois olham em volta, procurando mais alguns cavacos de lenha para continuarem alimentando o fogo. Correr o risco do fogo se apagar no meio da madrugada significa uma ameaça às suas vidas. É um ambiente inóspito em um momento delicado. Ambos estão sozinhos e assim permanecerão por tempo indeterminado. O bando do qual faziam parte partiu em busca de locais com mais recursos. Ela exibe sua barriga bastante proeminente evidenciando talvez uns cinco ou seis meses de gestação. O andar já se torna mais custoso, atrasando a marcha. O plano é de seguirem os companheiros, todavia em um ritmo mais lento.
O sol já se mostra somente um fiapo. Logo, a única luz presente será a da fogueira, já que o céu está bastante nublado. Não será possível contar nem mesmo com o luar para quebrar o breu da noite. Se chover, será bom. Água limpa é sempre um fator limitante. Desidratar no meio de uma migração é a certeza de morrer tentando chegar a lugares melhores. Para o fogo não se apagar com a chuva, eles improvisaram um abrigo, onde também passariam a noite. Todo o planejamento estava indo bem, apesar da visível dificuldade dela em se mexer agilmente. Ambos estavam conseguindo terminar suas tarefas antes de o sol finalmente baixar totalmente no horizonte. Até que um ruído colocou-os em alerta. Ao longe, dois animais famintos procuravam ativamente sua próxima refeição. Talvez fossem cães selvagens ou ainda poderiam ser raposas, quem se importa? O fato colocou o casal em um estado de total apreensão. Dois bichos de porte avantajado salivando, famintos, seriam um páreo duro para eles, cansados e com dificuldades óbvias de defesa.
Os piores pesadelos logo se tornaram realidade quando a dupla faminta fixou o olhar e avançou no casal. Tinham finalmente encontrado sua próxima refeição. Ele rapidamente se colocou a frente, empunhando uma lança improvisada em uma mão e uma pedra pesada na outra. Se for para servir de jantar, que a carne tenha gosto de luta. Ela igualmente pegou um lasca afiada de pedra e um porrete pesado. Pensou no pequeno ser que carregava no seu ventre. Não seria fácil ali também. Uma enxurrada de adrenalina inundou o corpo de ambos quando o primeiro animal saltou a altura do pescoço dele, mirando sua jugular. Da mesma forma que a fera se levantou do chão, voltou, com o urro de dor de um crânio partido. Uma pedrada certeira no meio dos olhos cessou o ataque.
Todavia, a atenção devida à defesa desta primeira ofensiva, deixou-o vulnerável. O segundo animal enfurecido de raiva e fome cravou os dentes no braço que segurava a lança, derrubando-o com o impacto. O que seria uma morte certa com uma segunda mordida na traqueia, virou uma batalha dramática. Ela, reunindo toda a força que lhe restava nos braços, desceu o porrete nas costas do animal. Um uivo surdo cortou a noite silenciosa. Foi um golpe violento, mas não o suficiente para diminuir a fúria do bicho. Ao tentar se levantar do chão para atacar novamente, uma nova pancada, seguida de outra e mais outra.
De repente, os olhares se cruzaram. O animal já quase sem vida, olhou-a agonizante. Neste momento, ela vacilou. Percebeu que os cães famintos também eram um casal, talvez tivessem filhotes para alimentar. Sentiu compaixão, talvez culpa. Que diferença haveria entre eles, os humanos, e os animais selvagens que estavam atacando na busca por melhores condições de vida? Eles não eram maus, só estavam lutando pela sobrevivência. Seus braços se afrouxaram, largando o porrete ensanguentado. Suas pernas falsearam. Estava extremamente cansada, incapaz de continuar a luta.
Quase ao ponto de se sentar, sentiu alguém mexendo-se vigorosamente no seu ventre. De súbito, seus pensamentos retomaram a forma. Ela, então, pegou a faca de pedra e rasgou o ventre do animal moribundo. Retirou o fígado ainda quente e comeu. Precisava daquela energia, daqueles nutrientes. Seu filho ainda não nascido precisava. Seu companheiro ferido precisava. Não havia opção, não havia escolha. Eles eram sobreviventes e era por isso que lutavam. A sobrevivência impunha sacrifícios e eles estavam dispostos a encarar qualquer um que surgisse para continuarem sua jornada. A história daqueles dois humanos não acabaria ali, como carne sendo digerida no estômago de algum animal selvagem. Eles ainda tinham muito o que viver.