O que faz uma divindade lamentar? O que um ser todo-poderoso teme?
Tentei, numa brincadeira especulativa, trazer uma reflexão sobre essas perguntas. A mitologia sempre nos mostra os lados “humanos” dos deuses, principalmente as mais antigas. E o deus moderno? Com esse não se mexe muito e sempre estão comentando sua perfeição, mas e se estiverem errados?
Espero que se divirtam com esse pequeno conto.
LAMENTOS DE UMA DIVINDADE
Finalmente estou aqui. Não sei por quantos anos vaguei por essas terras, irreconhecível.
Acredito que, antes de mais nada, eu deva me apresentar e contar minha história.
Eu sou, ou pelo menos acredito ser, o primeiro homem dessa terra, feito com sangue e matéria do próprio planeta. Sou único, uma vez que os outros homens foram criados da mesma matéria que eu, mas não partilham da centelha divina que queima no centro do mundo.
Ao mesmo tempo, eu sou muitos, pois represento e me envolvo em tudo o que existe.
No início, quando a Terra ainda era um infanto, meus desejos eram inegáveis e supremos, com os quais moldei absolutamente tudo. Dei forma ao planeta, do interior até o limite dos céus, lhe dei vida fazendo florescer cada vegetal e criando cada ser vivo e, no fim, impregnei cada partícula com a energia para se tornar algo mais.
Iniciei, então, minha caminhada de milhares de anos, na qual mantive acesa a chama da vida daqueles seres que mereciam seguir adiante e exterminando os fracos.
Porém, com o tempo, o planeta começou a exigir uma liderança mais firme e mais próxima que a minha, pois meu amor por minhas criações se tornou tão grande que deixei de ser capaz de expurgar os indignos e premiar, de formas diferentes, os merecedores.
Decidi então criar a raça dos homens, como disse antes, feitos da matéria do planeta e à minha imagem, mas com duas diferenças.
A primeira foi lhes abençoar com uma enorme dose da energia da evolução, para garantir que, em pouco tempo, dominassem o planeta e tudo que nele existisse.
A segunda foi restringir seu tempo de vida e sua memória, para que pouco se prendessem ao passado e sempre lutassem por um melhor futuro.
Enfim, me retirei para os céus, onde montei minha morada, e passei a observar apaixonadamente a minha obra prima, interferindo apenas quando era extremamente necessário ou divertido.
Como sou um ser eterno, já não tenho mais noção ou percepção do passar do tempo, desprezando alguns milênios em que maçantes civilizações cresceram e morreram, deixando apenas rastros de sua existência, mas também acompanhei atentamente cada dia das décadas em que poderosas nações guerrearam pelo domínio supremo do mundo, acumulando enormes golfadas de energia em pequenos campos de batalha e marcando a história e a Terra de formas indeléveis.
Achei que me sentiria orgulhoso e poderoso até que o infinito terminasse, pois, não importando a era ou o povo, eu era sempre lembrado e reverenciado.
Para alguns, minha importância era exaltada na unidade, sendo pensado como uma única entidade. Para outros, minha força estava na pluralidade, onde minhas características e poderes eram personificadas como diferentes deuses ou criaturas. Fui adorado na forma de homem, de algum local, de animais e até de monstros.
Devido às diferentes culturas, grupos se obliteraram defendendo seus ideais, sem saber que eu sou o mesmo para todos.
A grande importância era que o planeta estava satisfeito, pois estava constantemente sendo remodelado e energizado… e eu também.
Mas eu estava errado.
Nunca imaginara que tamanhas mudanças e evoluções acarretariam no envelhecimento do planeta. Que forçar tantas alterações o faria maturar até se tornar algo mais sério e racional e menos primal e encantador. De tanto moverem o fluxo energético, centelhas divinas começaram a surgir, iluminando os homens que, com o tempo, as batizaram de Ciências.
Num primeiro momento achei que seria algo passageiro, pois cada nação usava sua ciência como uma nova arma de combate e defesa de seus deuses.
Mas uma centelha criou outra, que criou outras, que geraram ainda mais outras e, em poucos séculos, a iluminação dos homens transformou as ciências em uma única ciência, a qual englobava todo o conhecimento.
Os homens, vivendo agora num planeta adulto, foram se dando conta de que eles mesmos causavam a maioria das mudanças na Terra, que a ciência os munia com armas e ferramentas para criar e moldar seus arredores e que as culturas religiosas e adorações de divindades perdiam sua utilidade.
Eles foram se tornando fortes e eu me tornei cada vez mais fraco. O mundo que eu criei já não desejava me ajudar e pouco se importava com meu iminente desaparecimento.
Não pude aturar mais isso, abri mão do meu castelo nos céus, fundindo-o ao meu corpo para que eu pudesse retomar o controle.
A Terra se opôs às minhas tentativas, não me permitindo usar suas águas para um dilúvio, seu ar para furacões ou seu corpo para terremotos e vulcões. Os homens também não podiam ser tocados diretamente, sua ciência tendo se tornado seu maior escudo, mesmo sem nunca se dar conta disso. Eu estava sem alternativas e com a energia divina acumulada, poderia viver mais alguns milênios e aceitar meu fim, mas continuei observando e buscando uma falha.
Séculos depois, a alternativa se apresentou para mim, vinda de quem eu menos esperava. Da própria ciência.
Os homens, buscando insaciavelmente mais iluminação, encontraram as pequenas partes de matéria que usei para criar tudo e as batizaram de átomos. Me interessei particularmente por esses homens nomeados de cientistas e lhes forneci mais energia, por pouca que eu tivesse, para que esse conhecimento fosse direcionado para a dominação dos povos. Com isso, a chama da guerra se reascendeu e ganhei o melhor presente que os humanos podiam me dar: a bomba atômica.
Agora sabem porque vaguei tanto, até me perder no passar dos anos. Estou fraco, gastei meus últimos recursos andando pelo mundo, mudando minha forma e semeando a ganância e a corrupção nos mais poderosos.
Todos estão tensos, a Terra foi uma oponente memorável ao espalhar a preocupação e o medo do extermínio, mas os poucos que controlam as bombas não conseguiram se desapegar de suas preciosas armas.
Finalmente está tudo no ponto que desejei, basta um deles ceder para todas as nações se envolverem numa guerra nuclear. Ela irá acabar com tudo, me devolverá a energia para que eu possa criar um novo mundo, melhor, mais puro e mais devoto.
O lugar onde estou é chamado de Sala de Lançamento, meu corpo tem a forma do maior dos líderes e a sensação, mesmo que falsa, de ser novamente o mais importante, me traz enorme prazer. Fiz com que todos se retirassem, estou só com o enorme botão vermelho a minha frente.
Hoje eu inicio minha retomada. Sinto as vibrações do solo, a Terra, minha primeira criação, já sente e sabe que irá morrer nos próximos dias ou, até, horas. Não me importo, ela já deixou de ser minha filha há muito tempo.
Que comece a contagem regressiva.