Um dia ruim. Uma cadeia de eventos catastróficos. Segundo o Coringa é isso que separa um homem bom de um maníaco insano. De alguém como ele. E ele irá até as últimas consequências para provar sua hipótese. Ou assim parece.
Essa é a sinopse de Batman: A Piada Mortal, uma das melhores e mais cultuadas Graphic Novels de todos os tempos, genialmente escrita por Alan Moore e ilustrada por Brian Bolland. Foram precisos vinte e oito anos mas a HQ foi finalmente adaptada em uma animação excelente, com toda a loucura e violência que o material exige.
A pergunta é: as expectativas foram atingidas? Continue lendo e descubra.
P.S.: como A Piada Mortal é uma obra de 1988 e até para conduzir a discussão que pretendo apresentar, desta vez o texto terá todos os SPOILERS a que tem direito. Leia por conta e risco.
“Um brinde ao crime.”
Originalmente planejada e desenvolvida como uma história para o selo Elsewords (ou Túnel do Tempo por aqui; ele trazia histórias dos personagens em realidades alternativas, como o “What If” da Marvel), A Piada Mortal busca responder uma simples pergunta: o que poderia ter criado o Coringa? Um agente do caos sem nome e sem passado, sua existência é um desafio até mesmo a extensa galeria de vilões Cruzado Embuçado, quase todos loucos num grau ou noutro.
A HQ é tensa, pesada. A psique torpe do Príncipe Palhaço do Crime se desfralda diante do leitor e isso por si só é uma tremenda armadilha. Esta é uma obra seminal, que vende edições impressas até hoje em grandes quantidades tal qual Watchmen e Batman: O Cavaleiro das Trevas.
Não por acaso as três compõem a trindade definitiva das Graphic Novels, aquelas que definiram de uma vez por todas que quadrinhos também podem ser material para adultos e não ter uma grama de graça. Foi mal Marvel, no donut for you.
Há tempos havia o interesse de adapta-la em uma animação. Mas seria possível? Sim, desde que a Warner não tivesse medo de abordar a obra como ela é. Para isso tiveram que aceitar uma produção Rated R, voltada para adultos (aqui no Brasil ela foi inexplicavelmente classificada como 14 anos, sendo que ela não é EM NENHUMA HIPÓTESE indicada para menores de 18) a fim de introduzirem tudo, sem melindres, sem medo de chocar.
Nisso surgiu outro problema: a GN é curta, não rende material para um longa animado como foi intencionado fazer. A solução encontrada foi expandir o plot inserindo um flashback com foco em Barbara Gordon e sua última aventura como Batgirl. Como o roteiro caiu nas mãos de Brian Azzarello (100 Balas), já se imaginava que não pegariam leve mesmo.
E ele não alivia. Nesse início da história Babs está de saco cheio de ser tratada como mais um discípulo do morcego e isso a leva a não só tomar ações precipitadas, como a também deixar bem claro que não é uma garotinha indefesa que precisa ser salva pelo Cavaleiro das Trevas de capa negra brilhosa:
A cena de sexo anda irritando quem não lê quadrinhos mundo afora, estão reclamando que o relacionamento de pai e filha (dica: nunca foi assim) impediria Bruce e Barbara de chegarem aos finalmentes sendo que personagens de HQs não são bidimensionais, cada autor tem a liberdade de criar as histórias que desejar para o público que intenciona atingir. A Barbara de Azzarello é uma mulher que não leva desaforo para casa e deixa isso bem claro para o Batman.
Por outro lado, a direção que Azzarello e os produtores Alan Bunnett e Bruce Timm deram aos dois nesse prólogo era mostrar que todos, sem exceção cometem erros. Seja a Batgirl ao se envolver demais em um caso como um mafioso assediador, seja o próprio Batman ao se aproximar demais de alguém que embora tenha treinado, também jurou proteger. O relacionamento dos dois sempre foi uma bagunça e não é a primeira vez em que Bruce passa o rodo na Babs, como os eventos de Batman Beyond (que são considerados canônicos, o verdadeiro futuro do Cavaleiro das Trevas) deixaram bem claro:
Pobre Dick.
Enfim. Passado o prólogo temos a trama principal, que são os mesmos eventos descritos na GN. Mesmo não ostentando nenhum superpoder como o próprio Batman, o Coringa é de longe um dos vilões mais cruéis e perigosos que já existiu. Mesmo seres todo-poderosos como Darkseid, ou outros humanos com mais recursos como Lex Luthor, ainda que puramente malignos mantém conexões mínimas com a lógica e a sanidade. Eles seguem uma agenda, são meticulosos e em alguns aspectos até demonstram ter sentimentos. No universo pré-crise Luthor movia céus e terra por sua filha Lana e mesmo o próprio senhor de Apokolips se importava, ainda que pouco com Orion.
Não o Coringa. Diferente de inclusive todos os inimigos do Batman (com exceção do Pinguim, que é apenas extremamente ambicioso e inescrupuloso) ele não é um desequilibrado mental, mas alguém que escolheu ser. Ele é o fruto de uma espiral descendente de eventos terríveis ocorridos em menos de um dia (a morte de sua esposa e filho não nascido, o fim de qualquer chance de uma vida feliz e a destruição de seu rosto) que aniquilaram não sua psique, mas sua esperança na humanidade.
Ou não. É irrelevante. O Coringa sabe que algo aconteceu com ele, mas não tem certeza do quê. Ele é o Narrador Não Confiável, sua história de origem não deve ser levada a sério. Nem ele mesmo acredita naquilo que se recorda, pois a cada vez suas memórias são diferentes. “Um passado de múltipla escolha”, segundo o próprio.
Para o Coringa não importa como ele chegou ao fundo do poço, e sim que ele está lá. Que ele foi quebrado, despedaçado e entendeu a verdade do mundo como uma só:
“É tudo uma piada!”
Ele compreende que nada faz sentido. A vida é um incrível esforço inútil de criaturas patéticas em realizar alguma coisa para inevitavelmente fracassarem e morrerem sem nada. E sua reação diante de toda a loucura que se apresenta diante dele é simples: ele ri. De si mesmo, de sua miséria, do mundo. Ele gargalha porque não há nada que ninguém possa fazer para mudar qualquer coisa. É tudo uma piada. Viver, morrer, tudo.
E é por isso que o Coringa elege o Batman como seu nêmesis. Diferente do palhaço, Bruce Wayne também teve um dia ruim, mas na sua conta ele não quebrou: ele olhou para o abismo e não piscou quando esse olhou de volta, tal como ele disse ao Coruja (sua contraparte maligna da Terra-3) em Liga da Justiça: Crise nas Duas Terras.
O problema é que Alan Moore não é um gênio à toa. Em A Piada Mortal o Coringa deixa claro que o Batman pensa que não caiu no abismo, quando na verdade ele é tão, se não mais louco do que todos os outros. Ele repete todas as noites a si mesmo que há esperança, que não há sentido em matar os criminosos e que a reabilitação está ao alcance de todos, mesmo de seu pior inimigo. É uma mentira, uma ilusão. E o Coringa sabe disso, diferente do morcego.
Esse é o grande plano do vilão: ele deseja “provar um ponto”, ao que todos interpretam pela leitura da camada mais superficial de que basta um dia ruim para transformar uma pessoa boa em um lunático sem salvação, como aconteceu com ele. E ele faz isso aleijando Barbara e torturando o comissário Gordon, inclusive exibindo fotos de sua filha nua e ensanguentada a ele.
Muito se fala que a HQ e consequentemente o filme são pesados, “problemáticos”, que reforçam a cultura do estupro, blablablá… o que os floquinhos do Tumblr não entendem é que o Coringa é um VILÃO, um agente do caos, alguém que só quer ver o mundo queimar e não está nem aí para nada. Ele vai fazer coisas ruins, extremamente ruins porque é o que se espera dele, e não executar planos infantis como a versão caricata da série de TV dos anos 1960.
A DC entendeu isso e não aliviou. Os 76 minutos de A Piada Mortal contém toda a violência e crueldade da HQ a que tinha direito, nada foi aliviado, nada foi suavizado.
A produção é muito bem feita. A qualidade da animação não é tão fluída quanto outras da DC, mas dá para entender como um estilo. A reprodução da história original foi muito bem executada, nada foi tirado do lugar, todos os eventos ocorrem como esperado. Há algumas adições aqui e ali (como o número musical do Coringa), mas não é nada que deixe o filme estranho.
O áudio original conta com o retorno dos dois melhores dubladores que os protagonistas já tiveram: Kevin Conroy não deixa dúvidas de que é o melhor Cruzado Embuçado de todos os tempos; já Mark Hamill nasceu para ser o Coringa, Luke Skywalker perde de longe.
“Você também teve um dia ruim, não é?”
Muito bem. Concluindo a discussão sobre o grande plano do Coringa, embora ele dê a entender que seu alvo é o comissário Gordon a verdade é que toda a cadeia de eventos se desenrola para atingir o Batman. É ele quem carrega o sofrimento de Gotham City nas costas, é ele quem devotou a vida para proteger os inocentes e incutir medo nos corações dos criminosos. Ele é a única criatura que não ri de nenhuma piada do palhaço, não apenas porque ele não vê graça nelas mas principalmente porque Bruce Wayne não tem senso de humor.
O ponto a que o vilão se refere é fazer com que o Batman perceba que tudo o que ele faz é inútil. Eles continuarão a dançar essa valsa mortal até que um mate o outro ou os dois se destruam, e o Coringa trama toda uma cadeia de eventos para levar o justiceiro até o ponto de ruptura. Até admitir que ele é mais louco que o próprio inimigo ao não reconhecer que não há esperança nem para seu adversário, nem para si próprio.
A piada que o Coringa conta ao Batman no fim da HQ e do filme é a prova disso. Ele não condena o ato do louco acreditar que seria capaz de andar sobre um facho de luz, e sim o de um lunático tentar ajudar outro. A graça não é o Batman insistir em tentar reabilitar o Coringa, e sim ser incapaz de perceber que ele próprio é mais louco quanto seu nêmesis.
O palhaço já entendeu a inutilidade das ações do herói enquanto o Batman não: ele vai prender o Coringa, este irá fugir e matar, roubar e aterrorizar novamente, ambos irão se enfrentar mais uma vez e o ciclo começará de novo. E de novo. E de novo. E de novo.
A grande revelação é que o Coringa planejava o tempo todo jogar na cara do Batman e fazê-lo enfim perceber que ele caiu no abismo há muito tempo atrás, no dia em que seus pais morreram. Só ele não se deu conta disso e continua insistindo em uma cruzada incessante esperando por um resultado diferente, que nunca chegará. Gotham continuará tão injusta quanto sempre foi. O Coringa permanecerá cruel, insano e impiedoso. E o Batman ficará eternamente preso às cordas do destino, dançando conforme a música sem sequer perceber.
E quando ele finalmente entende isso, sua reação não poderia ser outra:
O final de A Piada Mortal é ambíguo de propósito. Alan Moore deixou pistas de que finalmente o Batman desceu ao nível do Coringa, cruzou a linha entre os dois (que desaparece no último quadrinho) e matou seu arquinimigo, algo que o bruxo nunca admitiu. Grant Morrison, no entanto acredita piamente que este é o desfecho da Graphic Novel e explicaria porque ela deveria permanecer fora do cânone da DC, como era a ideia original (ainda que o roteiro original de Moore não mencione nada sobre a morte do Coringa).
Entretanto os editores gostaram da cadeia de eventos envolvendo Barbara Gordon, que acabou também paraplégica na continuidade e se tornou a Oráculo, o cérebro por trás de boa parte das operações tecnológicas da Bat-família e até mesmo da Liga da Justiça. Somente 23 anos depois, com Os Novos 52 a editora decidiu corrigir a bola fora e devolver a Batgirl à sua antiga glória.
De qualquer forma, a animação cumpre sua função de apresentar uma das mais tensas tramas do Batman em seus quase 77 anos de histórias para um público que não teve contato com a HQ original, e não desrespeita os fãs do material original, embora fique bem claro que A Piada Mortal funciona melhor no papel.
Conclusão
Batman: A Piada Mortal é para quem não tem receio de encarar uma história crua e cruel sobre um vilão fazendo o que sabe: ser mau. O Coringa não precisa de motivos para tocar o terror, Alan Moore foi um dos primeiros a deixar isso bem claro embora lá no fundo ele tenha um plano muito bem traçado.
O filme acrescenta novos elementos e é fiel ao original, não o desvirtua e nem o invalida. Pelo contrário, ele será um convite a novos leitores procurarem a HQ e tentarem adentrar na psique do Coringa e sair de lá ilesos, algo que nem todos conseguem. Mesmo quase 30 anos a obra continua tão tensa e cruel como sempre foi, o que é excelente.
Agora, minha recomendação àqueles que defendem que um vilão não pode fazer vilanices: procurem outra coisa para assistir. Este é só para quem entende o que o Coringa representa, um psicopata completo, a personificação do mal pelo mal, sem motivo, sem razão, sem explicação. Uma força da natureza que destrói tudo em seu caminho.
Nota: cinco de cinco cartas do Coringa.
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