Sempre fui um grande fã de Doctor Who, assim como de ler e escrever fantasia e sci-fi, mas não canso de me surpreender com como a série acertou genialmente na mosca para dar liberdade aos autores.
Sempre que vamos escrever ou ler uma história queremos que ela faça sentido, mesmo em loucuras totais como Guia do Mochileiro das Galáxias ou Alice no País das Maravilhas. Entretanto, essa exigência é de curta duração num livro, filme ou, até mesmo, um game.
Quando estamos lidando com uma série, muitas vezes é possível perceber um enrijecimento estrutural das narrativas, ambientes e, principalmente, personagens. Eles vão ganhando bagagem e zonas de “status quo”, ficando cada vez mais difícil fugir dessa linha mestra.
Tirando em situações de plot twist, as quais precisam ser metodicamente construídas, nos incomodamos muito com quebras de personagens ou situações consagradas dentro daquele determinado universo. Por exemplo, se você tem um herói monocromático (sem nuâncias) estruturado como bom, vai ter problemas com seus interlocutores se ele aparecer numa cena chutando um gato na rua ou maltratando uma criança.
No caso de histórias voltadas para o “nonsense” ou “sem pé nem cabeça”, como nos casos supracitados do Guia dos Mochileiros das Galáxias e Alice no País das Maravilhas, percebemos uma maior liberdade criativa. A loucura do enredo se mostra muito mais flexível. Encontrar portas que gemem ao abrir ou um recital de poesias sobre lagostas irá gerar apenas risadas, mas nenhum desconforto. Entretanto, mesmo esses casos são amarrados por algumas linhas mestras. Me tiraria da imersão ler que Alice se deparou com uma geladeira gigante que dança samba, entende?
E onde eu quero chegar com esse texto? Que os criadores de Doctor Who (Sydney Newman, C. E. Webber e Donald Wilson) conseguiram se libertar maravilhosamente de todas essas travas, idealizando uma séria em 1963 que perdura até os dias atuais, recebendo novos episódios (quase 40 temporadas) e se mantendo com frescor de uma estréia.
Como isso é possível?
Simples (ou não), as premissas básicas usam apenas algumas características de apoio, mas estas mesmas são um trampolim para, virtualmente, qualquer situação.
Doctor Who se sustenta em pilares muito simples, mas libertadores:
- Viagem no tempo
- Viagem no espaço
- O templo é flexível e fluido
- O protagonista (O Doutor) é imortal, mas com um segredo
- A coadjuvante (Companheira) é “descartável”
- O protagonista está, na maio parte dos casos, passeando e não tem uma missão fixa
Viajar no tempo e espaço é uma das principais ferramentas de liberdade criativa para autores. Nos permite transitar tranquilamente por acontecimentos históricos, elocubrar sobre o futuro, refletir como seria a vida fora da terra. A Tardis (“nave” usada pelo Doutor em suas viagens) vem com alguns dispositivos que facilitam ainda mais a estruturação da narrativa, como um tradutor embutido, não gerando conflitos de comunicação com raças alienígenas, um guarda-roupa quase infinito com roupas de todas as épocas, além do truque de sempre dizerem “ela é maior por dentro que por fora”, matando restrições de o que pode ter lá dentro e o que pode ser usado pelas personagens.
Em paralelo a isso, sempre é mencionado pelo protagonista que o tempo está em constante fluxo e é flexível, chegando no limite de ser estabelecido que você pode sim nascer nos anos 2000 e morrer em 1754 sem gerar qualquer dano ao tempo/espaço. Receita perfeita para permitir que Julio Cesar seja salvo de Brutus por usar um escudo de energia, sem ter de justificar o retorno póstumo da Companheira do Doutor para seu devido tempo e este estar igual a quando ela saiu.
Falando no protagonista, ele estar passeando, ao invés de estar em uma missão, é ótimo, pois deixa de ser necessária a existências de ações rigidamente concatenadas numa temporada ou mesmo dentro de um único episódio. Passa a ser 100% aceitável eles acabarem de ver a terra ser destruída numa explosão solar, voltarem para o tempo atual da companheira e decidirem, após uma reflexão sobre a finitude das coisas, ir comer batatas fritas.
Tudo isso é extremamente potente para deixar a imaginação do escritor solta, mas, numa série tão longa, ainda existe um grande entrave. Aquele do herói monocromático. Como usufruir da liberdade criativa quando o meu personagem já viveu e sentiu tanto? Um protagonista cheio de calos, vícios e tudo mais?
A solução dele ser imortal ajuda e muito, apesar de que seria engraçado ter de ver o Doutor lidando com “bico de papagaio” ou alguma outra coisa assim. E quanto à companheira mortal dele, como lidar?
Mais uma vez, a genialidade dos criadores aparece em cena. Eles tornaram a companheira do Doutor “descartável”. Entendam as aspas aqui. Ela é tão viva e tão humana que está sujeita à morrer, a se casar ou, simplesmente, a se cansar de aventuras. Lindo, não é mesmo? Um protagonista imortal poderá sofrer alguns episódios e arrastar lembranças por uma temporada toda, mas nada o impede de recomeçar, conhecer uma nova companheira (esta, uma folha completamente em branco para ser desenvolvida) e seguir adiante com suas viagens, uma vez que os laços entre eles raramente são amorosos.
E o grand finalle, o trunfo maior que poderiam ter: O segredo do Doutor!
O protagonista nessa série não morre nunca. Ele tem um mecanismo de “reset” no qual abre mão de sua forma física, características e personalidade para retornar completamente renovado. Enquanto alguns são sérios, outros são mais extrovertidos, outros mais agressivos, ou mesmo na deliciosa decisão de voltar como uma DOUTORA… enfim… qualquer coisa que os autores quiserem usar para se divertir.
Concluindo essa brincadeira toda, gostaria de elogiar a genialidade da série, dos seus criadores e dos escritores/roteiristas (beijo especial para o Neil Gaiman que mora no meu coração).
Sempre que pesar num novo mundo para um novo livro ou mesmo uma nova aventura para uma mesa de RPG, que tal pensar em quanto irá se amarrar com ela?
O que você acha dessas válvulas de escape? Teria outras para adicionar?