Há não muito tempo, Tiago Leifert, jornalista e apresentador da TV Globo, causou polêmica e desconforto, ao publicar um texto intitulado “Evento esportivo não é lugar de manifestação política”. Acompanhei de longe o debate que se seguiu, e que tinha como pivô o uso dos esportes como palco para que se jogue luz sobre questões que estejam além deles. Afinal, o entretenimento deve ser apenas entretenimento, ou seu poder deve ser aproveitado de formas que vão além do mero “desligamento da realidade”?
Acabei deixando a discussão passar. Especialmente após ler o @marcosmattje/esporte-%C3%A9-lugar-de-manifesta%C3%A7%C3%A3o-pol%C3%ADtica-sim-tiago-leifert-cb61787fdac2">excelente texto do também jornalista Marcos Mattje, senti que não teria tanto a contribuir. Agora, no entanto, em meio a uma Copa do Mundo, volto a pensar a respeito. E, especialmente se trago a questão para o universo da música, meu campo de atuação, noto o quanto esse tipo de dicotomia ainda parece pairar sobre os debates.
Ainda fazemos questão de insistir nas definições rasas, preto no branco: ou algo é entretenimento, ou é uma manifestação política, ideológica, ou qualquer coisa assim. Mas, ao bater mais uma vez nessa tecla, acabamos cometendo outro erro, seríssimo: Ignoramos o fato de que toda forma de entretenimento, seja um livro, um videogame, uma música ou uma partida de futebol, é também uma forma de comunicação. Como tal, se torna canal aberto para que se transmitam as mais diversas informações, das mais diversas formas.
Nesse texto, eu gostaria de falar sobre as formas, e especialmente sobre uma que me fascina: A utilização das obras de entretenimento como Cavalos de Troia.
Imagine-se descobrindo uma música nova. Por algum motivo qualquer, ela começa a ser reproduzida no seu celular, e, de cara, ganha sua atenção. As melodias vocais te fazem querer cantar junto, e o groove te faz querer sair dançando. A construção da música parece querer contar uma história, e há algo na letra que te causa um pingo de intriga. Mas, no primeiro momento, o que realmente importa são as emoções e sensações que aquilo te causa.
A canção te ganhou pelos sentidos, e você acaba de eleger uma nova música favorita.
Passa-se algum tempo, sem que você deixe de consumir aquela obra por um dia sequer. É sempre revigorante ouvir aqueles sons, aquelas vozes. Mas, passada a euforia inicial, você começa a descobrir camadas adicionais de informação e reflexão, que não lhe pareceram óbvias num primeiro momento. A cada audição, revela-se uma nova peça do quebra cabeça.
Por fim, você descobre que aquela obra, que te conquistou de forma tão fácil, era, na verdade, uma grande reflexão sobre um problema social ao qual você dificilmente daria atenção espontânea. E agora, queira ou não, você sabe de cor um texto inteiro a respeito do tema.
Essa foi exatamente a minha história com a canção O Encontro de Lampião Com Eike Batista, do grupo carioca El Efecto, e com várias outras músicas, de vários outros artistas. Também vivi um processo análogo com diversos videogames, livros, quadrinhos, filmes e, por que não, com esportes. O apelo aos sentidos e às emoções eliminou as barreiras que havia entre a minha percepção e aquelas peças de entretenimento, deixando o caminho livre para que algo mais me fosse dito por meio delas. o que me leva ao meu ponto central.
Obras de arte e entretenimento frequentemente agem como agulhas em um ato de costura. Elas têm o poder de diminuir a resistência do meio, e abrir espaço para que algo mais sutil se instale. No caso das agulhas, a linha. No caso da arte e do entretenimento, novas ideias, informações e perspectivas, antes completamente alheias ao receptor, e agora capazes de transformá-lo de dentro para fora.
Não estou aqui dizendo que essa estratégia seja sempre intencional, ou mesmo obrigatória. No entanto, da minha perspectiva inteiramente prática, noto que se trata de uma possibilidade intrínseca ao ato da comunicação. Com a imensa gama de informações que podem ser transmitidas, e com a imensa gama de interpretações que podem ser feitas a partir delas, algo além do óbvio centro das atenções sempre pode acabar passando e se instalando.
E quando falamos sobre entretenimento, essas possibilidades se ampliam de forma colossal. Afinal, estamos falando sobre a manipulação deliberada de estímulos sensoriais e emocionais. Por que não, então, abraçar, ou ao menos reconhecer que estamos sujeitos a isso? Por que não admitir que uma peça de entretenimento possa nos dizer algo sobre a nossa realidade, e até mesmo alterar nossa perspectiva sobre ela, ao invés de obrigatoriamente nos desconectar dela?
Diante de tantas possibilidades que se abrem quando entendemos esse poder, me parece de uma pobreza preocupante insistir na compartimentalização. Se não pelo desperdício de nossas capacidades enquanto comunicadores, ao menos pela ignorância das percepções que podemos ter enquanto receptores.