Começaremos do pressuposto básico de que qualquer tipo de desenvolvimento do mundo criado por nós humanos necessita primeiramente do pensamento reflexivo. Pensando pragmaticamente, de forma concreta e instrumental, como muitos gostam: para ter desenvolvimento, as civilizações tiveram que pensar antes de forma abstrata.
As primeiras civilizações que levaram vantagem sobre as demais, desenvolveram-se com base na reflexão e no pensamento abstrato. Precisaram refletir e pensar sobre o sentido das coisas. Não bastou a esses primeiros homens apenas viver de acordo com o rumo natural das coisas, mas foi necessário o ato de indagar, de se espantar com a realidade vivida e questionar o andamento natural das coisas. Em outras palavras, passaram a se preocupar com o sentido do “andar da carruagem”.
Não é porque a carroça anda que está indo para o caminho certo (ou desejado), e a filosofia representa justamente essa curiosidade (tão cara às ciências) daquele homem que, para seguir a metáfora, aparece em frente a carroça e grita: “Espera aí! ”
De início, se analisarmos do ponto de vista mais prático e instrumental, o filósofo é inútil e até mesmo um empecilho. Na analogia da “carroça” a filosofia atrapalha, atrasa a viagem, faz com que tudo pare, apenas para que todos possam pensar.
Para resolver esse possível conflito, vamos até o sentido da palavra “crise”. Crise vem do grego “krísi” que, entre outras coisas, significa distinguir, decidir. Assim, poderíamos dizer que, quando estamos em crise, é porque paramos para pensar. Pensar no sentido do que estamos fazendo, no destino que queremos alcançar. Quando entramos em crise existencial, por exemplo, questionamos o sentido de nossa existência e, a partir daí, buscamos encontrar um novo norte – ou reafirmar e ressignificar aquele que nos trouxe aqui.
Todas as crises, desse ponto de vista, são momento de deliberação e daí a necessidade da filosofia para tornar visível nossas crises em importantes momentos da história da humanidade. Aí o homem que para a carroça pode ser de fundamental importância. Para fazer uma referência a The Matrix: “é a pergunta que nos move”.
O segundo elemento que utilizaremos para entender a importância da filosofia é o pensamento sobre a coletividade, ou a reflexão ligada à vida em sociedade. Independentemente de nossas crenças, o ser humano nunca se torna sujeito sozinho. O processo de individualização só ocorre mediante a coletividade, o que não vem ao caso no momento, mas é interessante lembrar que Aristóteles, Tomás de Aquino, Marco Túlio Cícero e pensadores contemporâneos como Ranelletti afirmam esse mesmo ponto, cada qual com suas palavras: o ser humano é um ser coletivo e social
O que concordamos em chamar de humanidade só se constrói no contato com outros humanos, pois, se tem alguma atividade que é essencialmente humana, essa atividade é a educação. Kant já dizia que somos o que a educação faz de nós. Ela consiste em ensinar aqueles que nascem a ser humanos como nós, também ditos humanos. Poderíamos dizer que “forçamos” as novas gerações a ser como nós – arriscando dizer que nunca conseguimos, pois senão seríamos todos iguais. Segundo Fernando Savater, nascemos “para humanos”, mas só chegamos a ser humanos totalmente quando somos forçados pela atividade educativa.
Mas onde podemos perceber isso? Os primeiros grandes agrupamentos humanos nos dão indícios. Aquelas sociedades que prevaleceram, que melhor se desenvolveram, técnica e “cientificamente”, o fizeram pela melhor capacidade de comunicação entre seus membros. Os que melhor se comunicaram com as novas gerações, ou seja, que melhor educaram e ensinaram, foram os que conseguiram criar mais ferramentas para facilitar suas vidas e assim prosperar.
Em um movimento histórico as sociedades humanas aprenderam a pensar de forma abstrata, passaram a inventar coisas, aprimoraram ferramentas, domesticaram a natureza para melhor se desenvolver. Mas isso só se deu porque não estavam mais preocupados em não morrer. Em outras palavras, o homem não teria tempo para inventar a política se estivesse preocupado em sobreviver e proteger seu bando durante as 24 horas do dia. Não inventaria nada se não tivesse tempo livre para pensar em volta de uma fogueira.
Para finalizar essa ideia, portanto, ser humano é algo que necessita da coletividade, de uma comunidade de outros humanos que nos ensinam. Está em nós essa necessidade do coletivo para nos completarmos como humanos, senão seríamos como Amala e Kamala, as “meninas lobo”.
Agora invocamos aqui a frase Socrática que diz que “A vida sem reflexão não vale a pena ser vivida”. Sócrates marca um período da história da humanidade por induzir seres humanos a pensar fora da caixa, ou seja, dos limites impostos e colocados de uma sociedade específica. Instigou a refletir e questionar, e foi morto por isso. É desde Sócrates que os sistemas sociais humanos, por interesses individuais e privados de certos grupos, estão condenando o pensar, a reflexão, a filosofia e o pensamento sobre o coletivo, o que nos traz um grande problema.
Por vezes, algumas pessoas sentem-se amarguradas pela censura que há em relação à filosofia, ou pelos ataques e desconfiança às ciências e conhecimento formal, o que faz com que pensem que vivemos “tempos sombrios” ou o “fim dos tempos”. Essa realidade pode parecer inédita para alguns, mas não é de agora que o pensar vem sendo condenado.
Na história não tivemos apenas Sócrates. Tivemos Jesus Cristo, Hipatia, Giordano Bruno, Galileu Galilei, Sor Juana Inés de la Cruz… Sem mencionar os regimes totalitários da contemporaneidade. Quem questionava foi sempre mal visto. Quem ameaçava o status quo e os regimes vigentes sempre foi marginalizado e tido como subversivo. Mas é justamente esse ponto que serve de evidência para a ideia central desse texto: o pensamento reflexivo (a filosofia) assusta porque tem poder. Poder de mudar as coisas. Refazer.
É por isso que humanos condenam e lincham seus semelhantes apenas por seus pensamentos subversivos. Por isso humanos queimam outros humanos em praça pública por se atreverem a desafiar o conhecimento vigente. Por isso, humanos fazem listas de livros proibidos, os queimam – e hoje querem proibir certos autores numa espécie de histeria parecidíssima com certos momentos históricos sombrios.
Infelizmente as sociedades são criadas com medo. As pessoas se acostumam a viver com medo de pensar e correr o risco de ser consideradas subversivas. Adoram elogiar Sócrates ou louvar Jesus, mas ninguém se atreve a ser um Sócrates, Jesus ou Galileu por completo. Por medo das consequências que o pensamento reflexivo sobre o campo social pode trazer.
Apesar disso, a máxima do início desse texto ainda pode ser considerada: “é a pergunta que nos move”. Não há desenvolvimento tecnológico sem o pensar reflexivo. Não se faz ciência sem pergunta. Não se constrói mundo melhor sem refletir no sentido de nossas ações.
Fazendo outra referência a The Matrix e retomando a filosofia socrática e platônica: “a maioria destas pessoas não está preparada para despertar”. E vocês? Topam fazer um enfrentamento ao medo e construir um mundo melhor?
Gian Ruschel. professor de história e filosofia, doutorando em Educação nas Ciências e eterno pensador em nome da construção de mundo comum.