A frase que dá título a esse texto é uma das que mais ouço ao responder onde trabalho. Sejam estudantes de Psicologia, população em geral e até mesmo os próprios usuários do CRAS, a cara quase sempre é de espanto ao saber da presença desse tipo de profissional do serviço. Mas por que tanta estranheza? É sobre isso que vamos conversar hoje.
Antes de qualquer, acho importante explicar o que é o CRAS e para o que ele serve. A sigla é uma abreviação de Centro de Referência de Assistência Social e é considerado como a principal porta de entrada do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Traçando um paralelo, o CRAS está para o SUAS como a Unidade Básica de Saúde (UBS ou posto de saúde) está para o SUS.
E assim como as pessoas podem acessar o SUS por outros meios que não sejam o postinho de saúde, como através de Unidades de Pronto-Atendimento (UPA), também é possível adentrar o SUAS por outros meios que não o CRAS, por exemplo: Centro Pop, CREAS, etc. Mas geralmente são casos com demandas bem específicas, então para boa parte a população o principal acesso ao SUAS se dará via CRAS.
Mas o que é o SUAS?
Lá em 1988 a Constituição Federal vai dizer que a Assistência Social, assim como a Saúde, é um direito do cidadão que deverá ser garantido pelo Estado. Mas é só em 1993, com a promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que teríamos o tripé da Seguridade Social, composto pela Saúde, Assistência Social e Previdência Social.
Assim como a Saúde, a Assistência é diferente da Previdência, ela não é contributiva. Isso significa dizer que essa é uma política de caráter universal, devendo atender a todos que dela precisarem.
Porém, como nem tudo são flores, a sistematização das ações socioassistenciais em um sistema único e descentralizado só veio em 2005, com a publicação da Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (NOB/SUAS).
Além da universalidade, também são princípios do SUAS a gratuidade, intersetorialidade, integralidade e equidade. Já em termos de diretrizes, estão a descentralização político-administrativa, participação da população, primazia da responsabilidade estatal e centralidade da família no planejamento e implantação dos serviços e programas.
Outro ponto bem legal do SUAS é que ele traz alguns princípios éticos para seus trabalhadores:
- Impulsionar as potencialidades e emancipação dos usuários;
- Obedecer aos princípios éticos de cada profissão na elaboração e implementação de protocolos;
- Defesa dos direitos humanos;
- Garantia de acesso à informação;
- Compromisso em ofertas que priorizem o fortalecimento de vínculos;
- Proteção à privacidade do usuário;
- Compromisso na construção de projetos pessoais para autonomia do usuário;
- Reconhecimento do direito dos usuários de acesso a benefícios e programas;
- Incentivo a participação e controle social;
- Evitar discriminação de qualquer natureza;
- Devolutiva de informações obtidas para pesquisas;
- Contribuir na criação de dispositivos que agilizem o atendimento.
Da mesma forma que o SUS não é só hospital, o SUAS não é só Auxílio Brasil ou entrega de cestas básicas. Como o nome já diz, é um sistema que organiza a Assistência Social em níveis de complexidade levando em consideração a pluralidade de demandas que podem ser geradas por situações de risco e vulnerabilidade social.
Tipificação dos Serviços Socioassistenciais
De modo geral, os serviços são divididos em duas categorias principais: a Proteção Social Básica (PSB) e a Proteção Social Especial (PSE). Esta última ainda se subdivide em média e alta complexidade. Cada uma tem diferentes objetivos, mas, a grosso modo, a PSB se destina a prevenir situações de risco social, enquanto a PSE é acionada quando há uma situação de violação de direitos.
A ideia aqui é que a PSB atue para que aquela família não precise de atendimento da PSE. Para isso, os serviços socioassistenciais terão como principais objetivos o desenvolvimento de potencialidades, o fortalecimento de vínculos familiares, comunitários e da função protetiva da família, além do estímulo a autonomia de seus usuários e construção de projetos de vida. Fazem da PSB:
- Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF);
- Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV);
- Serviço de Proteção Social Básica no domicílio para pessoas com deficiência e idosas.
Como falei antes, a PSE entra em ação quando a família vivenciou alguma situação de risco e violação de direitos por abandono, negligência, violências e outras situações que acarretem na perda de vínculos afetivos. Sendo assim, fazem parte da PSE de média complexidade:
- Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI);
- Serviço Especializado em Abordagem Social;
- Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC);
- Serviço de Proteção Social Especial para pessoas com deficiência, idosas e suas famílias;
- Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua.
Já quando falamos de PSE de alta complexidade, falamos em usuários que necessitam de segurança de acolhida através do afastamento temporário de suas famílias ou comunidades de origem. Dessa forma, temos:
- Serviço de Acolhimento Institucional, que pode ser ofertado em abrigo institucional, Casa-lar, Casa de Passagem e Residência Inclusiva;
- Serviço de Acolhimento em República;
- Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora;
- Serviço de Proteção em Situações de Calamidades Públicas e de Emergências.
Todos esses serviços são executados pelas unidades vinculadas às secretarias de assistência social dos municípios, que a depender de seu porte podem ofertar todas ou apenas algumas dessas modalidades, sendo mais prevalente a existência de pelo menos um CRAS.
Para que serve um CRAS?
Aqui você já deve ter percebido que o CRAS é uma unidade da PSB e que atua em caráter preventivo às situações de risco social. E para entender como isso é feito, temos que levar em consideração que ele atua como ordenador dos serviços socioassistenciais de sua área de referência. Isso significa dizer que os CRAS são uma espécie de gerente/supervisor de tudo que é oferecido em termos da PSB em seu território, organizando a oferta em relação a demanda pelos serviços.
E esse papel só é possível de ser cumprido porque o CRAS trabalha essencialmente com famílias, estando localizado dentro ou próximo dos territórios que atende. Nessa relação é possível conhecer as características do local, suas potencialidades, dificuldades, além de conseguir mapear as situações de risco e vulnerabilidade social, bem como o que já se tem ofertado na localidade.
A composição das equipes mínimas de trabalho e a quantidade de unidades CRAS são definidas de acordo com o tamanho da cidade, distribuídos em 3 categorias de acordo com a tabela abaixo:
Pequeno Porte I | Pequeno Porte II | Médio, Grande, Metrópole
e DF |
Até 2.500 famílias
referenciadas |
Até 3.500 famílias
referenciadas |
A cada 5.000 famílias
referenciadas |
2 técnicos de nível
superior, sendo um profissional assistente social e outro preferencialmente psicólogo. |
3 técnicos de nível
superior, sendo dois profissionais assistentes sociais e preferencialmente um psicólogo. |
4 técnicos de nível superior,
sendo dois profissionais assistentes sociais, um psicólogo e um profissional que compõe o SUAS. |
2 técnicos de nível
médio |
3 técnicos nível médio | 4 técnicos de nível médio |
Fonte: NOB – RH/SUAS
Obrigatoriamente cabe ao CRAS a execução do PAIF, já que esse é um serviço exclusivamente seu. Esse deve ser um trabalho de caráter contínuo, com objetivos bem definidos junto às famílias de modo a fortalecer seus vínculos e função protetiva.
Além disso, é o CRAS quem deve articular as redes intra e intersetorial. Isso significa dizer que deve buscar diálogos e oferta de serviços em conjunto não apenas com a PSB, mas com outras unidades do SUAS e de outras políticas públicas presentes em seu território de abrangência – UBS, creches, escolas, hospitais, centros culturais, faculdades, associações de moradores, etc.
Outros serviços podem ser oferecidos, desde que haja espaço, equipamentos e recursos humanos e materiais suficientes. Um exemplo disso é o SCFV, que se organiza em grupos por percursos de acordo com o ciclo de vida, geralmente primeira infância, segunda infância, adolescência, vida adulta e terceira idade, ou ainda grupos intergeracionais. Ele complementa o trabalho social com famílias, pautado na defesa dos direitos e no desenvolvimento de potencialidades para o enfrentamento da vulnerabilidade social.
O que faz um psicólogo no CRAS?
Sabendo que o trabalho com famílias é o carro-chefe do CRAS e acontece através do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), fica meio óbvio dizer que um dos trabalhos que o psicólogo executa nesse serviço é o acompanhamento de famílias. Isso pode acontecer tanto em dupla com um assistente social quanto com o psicólogo assumindo sozinho o papel de técnico de referência daquelas famílias – que é um jeito mais legal de dizer que ele será a principal ponte entre a família e os serviços ofertados pelo SUAS.
Ainda no âmbito do PAIF, o psicólogo também pode ofertar oficinas. Seus temas são definidos de acordo com as demandas apresentadas pelas famílias, possuem objetivos que podem ser atingidos no curto prazo e geralmente têm uma duração pré-definida, com periodicidade definida pelo profissional. Além delas também é possível oferecer ações comunitárias que auxiliem no fortalecimento de vínculos e mobilização social de seus membros, alcançando uma quantidade maior de pessoas do que nas oficinas – que possuem número limitado de participantes.
E não para por aí, como o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) complementa o trabalho social com famílias, o psicólogo também se faz presente nesse campo. Isso pode acontecer de duas formas principais: sendo técnico de referência do SCFV ou conduzindo grupos que podem ser de idosos ou famílias – já que os grupos de crianças e adolescentes são conduzidos prioritariamente pelas orientadoras sociais.
A depender de como esteja estruturada Assistência Social no município, as coisas podem ser um pouco diferentes. Na minha realidade, sou técnica de referência no SCFV em conjunto com um assistente social e nossa atuação se dá com a oferta de formação continuada para a equipe, realização de grupo de famílias, acompanhamento familiar dos usuários e atendimento psicossocial de demandas específicas – e possibilidade de encaminhamento para outros serviços e políticas de acordo com a necessidade. Além disso, essa mesma dupla também é responsável pelo PAIF da nossa área de referência de famílias com renda per capta de até meio salário mínimo.
Esses acompanhamentos todos acontecem no próprio espaço do CRAS, do SCFV ou ainda na própria casa da família, tendo em vista que a realização de visitas domiciliares é uma de nossas atribuições. Elas também podem ser realizadas em virtude do encaminhamento por outros serviços ou políticas.
Um ponto sensível da atuação do psicólogo é o recebimento de demandas judiciais envolvendo principalmente casos de guarda e interdição de pessoas potencialmente incapazes de cuidarem de si próprias.
Vale apontar aqui que os tribunais têm em seu quadro técnico uma equipe multiprofissional que deveria fazer esse tipo de demanda – visita domiciliar e relatório – no entanto, costumam alegar que a quantidade de profissionais é reduzida e intimam o CRAS. Cada município define como seus serviços deverão agir ao se deparar com essas situações, mas é permitido ao psicólogo se negar a fazê-lo, já que esta não é uma atribuição nossa no SUAS.
Estão pensando que acabou? Nada disso! O psicólogo também pode realizar atendimentos individuais, mas é vetada a oferta de psicoterapia, sendo feita a chamada acolhida. Nela é feita a escuta da demanda e os devidos encaminhamentos – inserção em programas, encaminhamento para benefícios eventuais ou a outras políticas. Isso pode ser feito também em conjunto com o assistente social.
Já mencionei o recebimento de casos de outros órgãos e serviços, mas seguem alguns locais que geralmente fazem encaminhamentos ao CRAS: Conselho Tutelar, CREAS, UBS, UPA, Escolas, Creches. A depender do município podem aparecer nessa lista outros serviços ou programas. Também pode ser feitas parcerias com esses locais para o desenvolvimento de campanhas educativas e de sensibilização já previstas no calendário do Ministério do Desenvolvimento Social, como a Semana Nacional de Prevenção à Gravidez na Adolescência, Combate ao trabalho infantil, Combate ao abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, Combate à violência contra a mulher (Agosto Lilás), entre outras.
Também variam, em relação à cidade onde esteja o CRAS, as tarefas operacionais que os técnicos de nível superior – psicólogo incluso – devem executar. Onde eu atuo nós emitimos o Cartão do Idoso e a Carteira da Pessoa Idosa para gratuidade no transporte intermunicipal e interestadual, auxiliamos a solicitar e acompanhar o processo do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para idosos e pessoas com deficiência e ainda realizamos o cadastro em um programa estadual de transferência de renda voltado às gestantes e crianças até os 6 anos. Em municípios e estados maiores podem existir centrais de atendimento ao cidadão para oferta desses cadastros e a não realização deles pelo CRAS.
Os desafios da atuação no SUAS
Já deu para perceber que trabalho não falta, não é? E parece que cada demanda que aparece traz um desafio à tiracolo! Os principais são bem comuns no contexto psi em equipes multiprofissionais: a interdisciplinaridade e o desconhecimento sobre o papel do psicólogo.
É comum que nos serviços vinculados ao SUAS haja um protagonismo maior do assistente social, afinal essa é a classe profissional prioritária quando se fala de atenção a populações em vulnerabilidade social. Porém, muitas vezes o psicólogo se vê perdido, sem conseguir tanta brecha para contribuir ou pode ainda nem saber como fazê-lo!
O grande segredo aqui é entender que cada profissão – e profissional – dentro dos serviços e programas tem uma expertise própria da sua área, que somadas contribuem para uma melhor compreensão do contexto psicossocial do usuário, qualificando as intervenções a serem feitas.
Aqui destaco mais uma vez a minha experiência: a equipe do CRAS onde atuo tem um ótimo relacionamento e isso facilita que as discussões de caso sejam riquíssimas – com cada um observando detalhes que outro pode não ter atentado –, traçando juntos intervenções que se adequem àquele perfil familiar.
Porém, existe um desafio ainda maior, que começa bem antes de o profissional se formar: a própria graduação não prepara para a atuação do psicólogo no âmbito do SUAS (coisa parecida acontece no SUS também). Poucas faculdades contam com a disciplina de Políticas Públicas como componente curricular obrigatório, e mesmo quando o fazem, tendem a ser superficiais.
Eu sei que é conteúdo demais para pouco tempo, mas vejam só: quando se fala de atuação clínica, temos disciplinas que nos ensinam uma estrutura básica de entrevista inicial, de prontuário, técnicas terapêuticas, aplicação de alguns testes psicológicos e diagnósticos de transtornos. Entretanto, não aprendermos sequer como conduzir uma visita domiciliar, que é uma intervenção comum na atuação no SUAS e no SUS.
Então, temos profissionais que pouco conhecem as políticas públicas e seu funcionamento, que não foram preparados para lidar com famílias ou realizar atendimento familiar, além de nem sempre contarmos com espaços que ofereçam o sigilo absoluto para a realização da acolhida.
Em resumo, temos as desculpas perfeitas para entregar uma péssima atuação, sermos considerados dispensáveis para a oferta desses serviços e contribuirmos para o fortalecimento do senso comum de que nosso trabalho é voltado apenas para pessoas “ricas”.
Ou seja, cabe a cada psicólogo, psicóloga e psicólogue atuante nessas áreas mostrar a que veio, se qualificar e lembrar que quando falamos de CRAS, SUAS, SUS e políticas públicas no geral estamos falando de reverter à comunidade os impostos que eles pagam, assegurando que tenham acesso àquilo garantido na Constituição de 1988.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Disponível aqui.
Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP). Referências técnicas para atuação do (a) psicólogo (a) no CRAS/SUAS, 2021. Disponível aqui.
Conselho Federal de Psicologia. Nota técnica com parâmetros para atuação das (os) profissionais de psicologia no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), 2016. Disponível aqui.
FERREIRA, S. da S. NOB-RH Anotada e Comentada, 2011. Disponível aqui.
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. NOB-SUAS, 2012. Disponível aqui.
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, 2014. Disponível aqui.
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Política Nacional de Assistência Social, 2005. Disponível aqui.