É muito comum encontrarmos no noticiário nacional falhas de planejamento no transporte público com atraso em obras e operação pior do que a prevista. Confesso que eu fico com uma pulga atrás da orelha com a caricatura que fazemos de nós mesmos. Afinal, não parece ser tão complicado planejar e operar um sistema eficiente de transporte público já que, afinal, nós, humanos, já mandamos pessoas à Lua, já criamos bombas atômicas e o computador moderno. Um sistema de transporte parece bem mais simples que isso.
A verdade nua e crua é que inclusive países desenvolvidos sofrem com o mesmo problema. Claro, possivelmente os erros e os desafios são diferentes, mas vamos dar um exemplo caricato da maior potência mundial. Em 1989 um compilado de vários estudos nos Estados Unidos de sistemas de metrô que as projeções de demanda eram superiores em 65% do que a demanda observada após as linhas de metrô entrarem em operação. Coincidentemente ou não, a demanda prevista sempre excedia a demanda observada após a abertura da linha. Ah, mas isso foi em 1989, agora as projeções devem ser muito melhores. Um compilado de 2016 mostrou que estão muito melhores, porém ainda grandes. Agora o erro entre a demanda prevista e observada é de “apenas” 48%. Cabe salientar aqui que isso são estimativas para linhas novas. Para linhas existentes o processo é muito mais fácil já que podemos observar também a série histórica para ajustar as estimativas.
Há algumas especulações sobre o real motivo da diferença entre a demanda estimada e a realizada após o sistema de metrô concluído. Lá como cá, supostamente a história é parecida. Existiam incentivos do governo federal, especialmente entre 1970 e ano 2000, para grandes obras de infraestrutura nas cidades, especialmente linhas de metrô. Portanto parecia ser um bom negócio para as cidades ter novas linhas do metrô. Porém, claro, deveria haver um estudo prévio que demonstrasse a utilidade a viabilidade do projeto. Nestes estudos, a estimativa de demanda é variável chave. Por um lado, o projeto será financeiramente sustentável se a demanda for grande o suficiente para, ao menos, manter os custos de operação do sistema. Por outro lado, se os custos e tempos de viagens forem atrativos, novas linhas de metrô podem diminuir a demanda por veículos particulares nas vias da cidade. Isto levaria a uma diminuição no trânsito que, em última instância, leva a um menor tempo de viagem, o que leva a vários benefícios econômicos.
Bom, isso são especulações que foram discutidas por décadas. Uma pesquisadora da UCLA (Universidade da California Los Angeles) nos Estados Unidos estudou essa questão em sua pesquisa de doutorado. Ainda que alguns dos motivos especulados possam explicar parte desta diferença, a conclusão de sua tese aponta para outro motivo: não existia uma forma sistemática de prever a demanda para transporte público. Ainda que em geral dados fossem coletados, a metodologia de análise de transporte urbano não conseguia “capturar” vários aspectos da operação de transporte público. Isto parece falta de competência dos técnicos, mas para confiavelmente saber a demanda, idealmente deveríamos saber de TODAS as pessoas na cidade as seguintes informações:
- onde você mora, trabalha e os locais preferidos de todas as outras atividades que você participa no seu cotidiano;
- o seu horário de partida e chegada para cada uma das viagens e quais seriam seus tempos de saída se (i) o congestionamento aumentasse (diminuísse) em 10%, 20%,30%… já que você deveria sair antes (depois) em função do maior tempo de viagem;
- qual é o patamar entre tempo de espera, número de baldeações e custo faria você utilizar o transporte coletivo;
- se você mora com outras pessoas, também deveríamos saber como seu cotidiano se “conecta” com outros membros da família. Por exemplo, talvez para uma pessoa fosse mais vantajoso ir de transporte público, mas talvez você trabalhe no meio de trajeto de outro membro da família que vai de carro.
Algo parecido com a figura abaixo sendo que a cada viagem sabemos também os horários em que elas ocorrem.
Se soubéssemos todas as informações estaríamos literalmente sendo personagens do livro 1984 de George Orwell. A verdade é que seria invasão de privacidade obter essas informações.
Por essas e outras razões, administradores de agência de transportes tentam estimar ou considerar todas as essas dinâmicas de forma simplificada. Em geral sabemos das rotinas e escolhas de poucos moradores e tentamos estender de forma apropriada para todos os outros moradores. Você acreditando ou não, em geral esses modelos ou não consideram ou no máximo consideram de forma indireta aspectos como: a linha, frequência e lotação da linha que pessoas utilizam entre diversos lugares e a hora de saída e o número de baldeações, entre outros. O resultado são erros relativamente grosseiros nas estimativas de demanda.
Como ela pode estar certa desta conclusão? Bom, a partir de 2003 em diante o governo norte-americano (o estudo dela se limita aos Estados Unidos) disponibilizou um software que tenta capturar todos os detalhes que eram negligenciados anteriormente. Segundo algumas pessoas da área, a grande diferença não é a qualidade do software em si, mas a maior quantidade de informação e detalhes que deveriam ser obtidos. Este maior “conhecimento” levava a detecção de diversos pequenos erros que não eram observados anteriormente.
Ajudou e diminuiu de 65 para 48%. OK, 48% ainda é um erro significativo… vamos ver quantos anos serão necessários para ter projeções mais precisas!
Referências:
Relatório Pickrell que mostrou a discrepância das previsões das linhas de metrô.
Tese de doutorado de Carole Voulgaris
Texto inspirado neste texto da própria autora da tese de doutorado acima.
Referência Figura:
https://www.tripsavvy.com/riding-the-metro-in-los-angeles-4147711
https://nhts.ornl.gov/assets/2017UsersGuide.pdf
https://transfersmagazine.org/scaling-the-summit/
https://cloudfront.escholarship.org/dist/prd/content/qt1478s66b/qt1478s66b.pdf?t=oq2c44
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