Chegamos então ao final de 2024, entre retrospectivas e luzes de Natal, o ano passou rápido hein, talvez esse tenha sido o ano em que menos escrevi textos aqui no Portal Deviante. Pensar um pouco no que foi esse período é encarar a loucura do dia a dia, da vida adulta e de que talvez estejamos em um ponto de que o mundo nunca vai voltar ao “normal”.
No texto reflexivo desse final de ano quero falar sobre o fim da escala 6×1, construção de uma utopia coletiva, o filme Perfect Days (2023) é o compositor de destinos e tambor de todos os ritmos o tempo.
Escala 6×1
Talvez um dos pontos mais significativos do ano de 2024 foi a luta pelo final da escala 6×1, uma jornada na qual exige que o trabalhador tenha apenas um dia de folga na semana. Esse debate ainda está longe de ser concluído e acredito que vai ser muito discutido no decorrer dos próximos meses.
O movimento popular que trouxe esse debate a nível nacional foi VAT ( Vida Além do Trabalho) grupo liderado e criado pelo influenciador digital e vereador Ricardo Azevedo (PSOL-RJ), ganhando ainda mais destaque nacional sendo encabeçado pela Deputada Federal Erika Hilton (PSOL-SP).
De acordo com Hilton, para além da exploração do trabalhador que essa jornada traz, o fim dela deve buscar “alternativas que promovam uma jornada de trabalho mais equilibrada, permitindo que os trabalhadores desfrutem de tempo para suas vidas pessoais e familiares”.
Aqui chegamos ao tema que vou abordar durante todo o texto, tempo, ou melhor a falta de tempo.
Em pesquisa do Datafolha realizada no ano de 2023, concluiu-se que 48% da população dedica menos tempo do que gostariam para ler livros, no mesmo patamar dos que condicionam menos tempo do que gostariam para praticar um hobby (47%). No grupo de 25 a 34 anos, 44% destes afirmam faltar-lhes tempo para cuidar da saúde e ainda mais entrevistados de outras faixas etárias disseram não ter o tempo desejado para sair com amigos e aproveitar a vida, por exemplo.
Fazendo o recorte do tempo para leitura, tais dados corroboram com o levantamento recente, de novembro de 2024, realizado pelo Instituto Retratos de uma leitura, que aponta que 53% dos entrevistados não leram nem mesmo parte de uma obra nos três meses anteriores à pesquisa. Sendo a primeira vez na série histórica que o levantamento conclui que a maioria dos brasileiros não leem livros.
No topo da pesquisa que justifica uma diminuição da leitura está… isso mesmo, a falta de tempo. Em torno de 46% das pessoas relatou que leem menos por falta de tempo. Para se ter noção, em segundo lugar está “prefere outras atividades”, com 9%.
Esse debate engloba também saúde pública. Em 2022 a síndrome de burnout foi reconhecida e classificada como uma doença ocupacional pela OMS (Organização Mundial de Saúde). Sendo atualmente o Brasil o segundo país com mais casos diagnosticados no mundo.
Falando brevemente, a síndrome de burnout envolve uma ideia de esgotamento mental do trabalhador, condição na qual o profissional tem dificuldade em realizar suas tarefas e chega muito próximo a um estado de depressão.
Então, ter tempo, de certa forma, significa diretamente ter qualidade de vida, algo que não vem sendo compatível com a realidade atual, parecendo até uma utopia ter o direito ao descanso em um capitalismo cansado que prega constantemente a produção.
Em busca de uma utopia
Se olharmos o cenário atual do mundo, ele não está bem, a crise democrática continua, a crise climática vem cada vez mais mostrando seus efeitos, vivemos em um mundo em guerra, não nos preparamos para novas e prováveis pandemias no futuro. Vindo para território brasileiro estivemos perto de um golpe, responsáveis pela negligência da COVID-19 não foram punidos e ainda ocorreram diversas outras coisas sobre as quais não pretendo me estender aqui.
Diante disso tudo é difícil enxergar um cenário melhor, ou talvez utópico, é difícil, porém talvez nosso dever enquanto sociedade seja construir utopias.
Em 1516, o inglês Thomas More publicou o livro Utopia, palavra que significa “não lugar” ou “lugar que não existe”. Neste livro, descreve um lugar, uma ilha com uma sociedade perfeita, ideal, harmoniosa, sem guerras, sem poderosos, sem exploração das pessoas umas pelas outras. Tem-se uma teoria de que More baseou-se na ideia de utopia de relatos de um novo continente, onde hoje é o Brasil.
Com o decorrer do tempo a palavra ganhou novos significados, algo até mais fantasioso e impossível. Talvez a minha favorita seja a definição de Eduardo Galeano, a utopia é um horizonte e serve para caminhar até ela. Percorrer os caminhos de uma utopia envolve diversos aspectos, entre eles uma jornada de trabalho digna, ou para ser mais poético, o direito ao tempo.
Certa vez em um congresso de saúde me perguntaram diretamente se eu achava que o SUS conseguiria ser estruturado do zero hoje no Brasil. A minha resposta foi “não”, pois as coisas estão polarizadas em um nível que nem todos os profissionais de saúde, população e classe política conseguiria ter o consenso da saúde como um direito.
Atualmente considero errada essa visão que tive na época, e o fim da jornada 6×1 serve para explicar isso. Independente de visões políticas e ideológicas, mais de 70% da população concorda na diminuição da jornada de trabalho. Então o que exatamente falta para isso ser aprovado?
Oferecer saúde de modo universal, em alguns lugares, como o exemplo mais marcante dos EUA, pode parecer uma utopia, mas aqui em território brasileiro foi possível. A construção utópica depende do local no qual estamos, e essa construção deve ser coletiva.
Consigo enxergar total relação da descredibilização de uma construção coletiva em prol de um discurso individualista de coach de que se você se esforçar consegue alcançar a riqueza, sem nenhum tipo de construção social. Vivemos em uma distopia em que pessoas abrem mão do estudo em troca de divulgação de jogos de azar na internet.
Enxergar a sociedade como um ser coletivo é a saída de muitos dos problemas que enfrentamos atualmente. Pegamos o exemplo da recuperação do buraco da camada de ozônio, que com uma construção coletiva conseguimos, no ano de 2024, uma considerável recuperação.
Que o pensamento coletivo prevaleça no futuro, porém acho que é um tema muito grande para um texto introspectivo que me proponho nos finais de ano, por agora nós só temos o agora então para encerrar esse ano quero falar sobre o filme Perfect Days.
Como ter dias perfeitos
2024 foi o ano em que consegui encaixar melhor as atividades físicas no dia a dia, entre caminhadas leves e corridas sempre passo por uma árvore, nesse passar, quase que diariamente, comecei a reparar as mudanças dessa árvore no decorrer dos meses. Uma coisa simples que sempre me foi despercebido, aquela árvore sempre esteve ali e nunca tinha sido realmente vista por mim.
Quantas coisas ao nosso redor que não percebemos! Esse talvez seja o tema central do filme japonês Perfect Days (2023). Dirigido pelo alemão Wim Wenders, o longa tem como proposta acompanhar o dia a dia do Senhor Hirayama, um lavador de banheiros na cidade de Tóquio, e seu amor pelas artes.
A rotina do Senhor Hirayama é intocável, vivendo os seus dias fazendo o melhor possível no seu trabalho, sempre escutando as suas músicas, tem uma rotina de leitura, ou seja, um dia perfeito. O personagem é cheio de problemas pessoais e mal resolvidos em sua vida, mas naquele momento presente no qual acompanhamos o filme, ele lida evitando projeções futuras e pensando no agora como o agora.
O que tem de tão reconfortante em acompanhar esse personagem principal, do qual pouco sabemos sobre seu passado, ou que até mesmo no decorrer do filme não tem nenhum tipo de desenvolvimento direto? Talvez seja a rotina, longe de uma série de ansiedades que o mundo nos pede.
Em uma cena do filme, o personagem está passeando de bicicleta com sua sobrinha e ela pergunta se ele quer conhecer outra parte da cidade, e o Senhor Hirayama responde que “sim, mas não agora, uma próxima vez”, ela então pergunta “quando será a próxima vez?” e ele responde “o agora é o agora e a próxima vez é a próxima vez.”
Talvez aqui seja a chave para fechar esse texto em que me propus a falar de tempo, o agora. A forma no qual o mundo se estruturou foi para que a gente não consiga pensar no agora, seja nos impondo jornadas exaustivas de trabalho ou nos jogando em um contexto em que ter acesso a direitos básicos é considerado algo utópico.
Em 2024 vivemos tantas lutas internas e externas, que estamos cansados, e em meio a esse cansaço esquecemos o que realmente importa, algo que o Senhor Hirayama possui, algo que a luta pelo fim da escala 6×1 busca ou que até mesmo pode parecer utópico, o direito de estar presente no agora.
imagem de capa cena do filme Perfect Days.
REFERÊNCIAS:
Artigo sobre o VAT
Síndrome de burnout
https://jornal.usp.br/radio-usp/sindrome-de-burnout-acomete-30-dos-trabalhadores-brasileiros/
Pesquisa datafolha
https://propmark.com.br/46-da-populacao-brasileira-sente-que-falta-tempo-para-fazer-o-que-gosta/
Pesquisa Leitura Br 2024;
70% da população aprova o fim da escala
Pra que serve uma utopia?
https://blogdaboitempo.com.br/2019/01/16/cultura-inutil-para-que-serve-a-utopia/
Troca do estudo por Bets.
Buraco na camada de Ozônio
PH Santos falando sobre Perfect Days.
@phsantos/video/7429710014094265605?_t=8sbAWoLlVnJ&_r=1">https://www.tiktok.com/@phsantos/video/7429710014094265605?_t=8sbAWoLlVnJ&_r=1