Bom chegamos à sexta-feira dos meses, o mês das luzinhas, ou quando começa a tocar a versão brasileira da música do John Lennon cantada pela Simone “Então é Natal”, isso mesmo, o também conhecido como Dezembro. Aquele momento sempre meio reflexivo no qual paramos um pouco e vemos tudo o que passou, fazer isso pode ser fonte de ansiedade ou de esperanças. No meu caso, desde 2019, eu escrevo um texto sobre finais de ano aqui pro Deviante.   

Hoje quero refletir sobre os sentimentos que estiveram comigo ao redor de todo o ano, e talvez desde quando a pandemia começou. Vamos partir do filme “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” e falar sobre pandemia, emprego, vida adulta e esperança. Bora lá!

 

E se fosse para a linha de frente? 

Considero “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” particularmente o melhor filme lançado em 2022. O longa justifica exatamente o seu nome, o que você assiste ali é sobre tudo, inclusive sobre nada. Uma das premissas principais do filme é o “e se tivesse feito tal coisa minha vida hoje seria diferente?”, partindo disso, consegue elaborar um roteiro genial sobre emoções humanas. 

Acredito que esse é um sentimento comum na gente, o eterno “e se?”. Pensando nos últimos anos — e se eu tivesse ido trabalhar na linha de frente da COVID-19 durante a pandemia?  Acho que precisa de uma pequena introdução de quem eu sou, né? Tenho formação de Fisioterapeuta, um profissional pouco falado que é essencial nas UTIs, e moro no interior do Ceará, uma cidade que tem pouco mais de 35 mil habitantes.

Em momentos de guerra e crises de saúde pública, como o que vivemos na COVID-19, os profissionais de saúde são convocados a prestar os seus serviços para a população, pois é um período no qual mais pessoas vão necessitar dos seus atendimentos.

Agora na pandemia isso aconteceu no Brasil meio que de forma tímida, pois precisava da coordenação do governo federal. Quando isso acontecia, eu cheguei a ser chamado algumas vezes e queria muito ir. 

(Fonte da imagem: Michael Dantas/AFP. Descrição da imagem dois profissionais da saúde colocando EPIs sobre o fundo escuro)

Fui chamado logo no início pra ir na região Norte do Brasil atuar na linha de frente, naquele momento pouco se sabia sobre o que iria acontecer na pandemia.

Eu, olhando os exemplos do mundo, acreditei que as coisas iriam de alguma forma se organizar, no sentido de ser debatida a importância dos profissionais de saúde e com isso uma valorização, salários justos, condições dignas de emprego e, principalmente, a saúde pública ser levada a sério pelo governo. Não preciso nem falar que isso não aconteceu. 

Voltando à minha história — fiz tudo que era necessário para ir e, então, houve uma troca no ministério da saúde fazendo com que houvesse uma pausa nas ações de combate à COVID-19. Voltei a ser convocado outra vez, porém estava com COVID e acabei não indo. 

Uma terceira vez fui chamado, até que… vi uma notícia de um colega de profissão que tinha o meu mesmo nome, a minha mesma idade e estava trabalhando na linha de frente veio a óbito no dia 23 de Dezembro de 2020 por complicações da COVID-19. Aquilo foi um dos vários choques de realidade que tive naquele ano, a morte estava ao redor e éramos constantemente lembrados da nossa finitude. 

Vocês lembram da primeira pessoa que conheciam que morreu de COVID-19? Aqui na minha cidade foi um senhorzinho que vendia bombons na esquina da praça principal, e como essas coisas marcam. No momento que escrevo esse texto, foram mais de 690 mil vidas perdidas, em 3 anos de pandemia, isso é muito, na real, isso é tudo.

Uma pesquisa fez o recorte específico dos profissionais de saúde que morreram na COVID-19 no Brasil. Entre março de 2020 e dezembro de 2021 foram mais de 4.500 vidas. A mesma pesquisa coloca o nosso país como um dos piores lugares para profissionais de saúde trabalharem na pandemia. Dentre os motivos apontados está a negação do governo a medidas sanitárias, a demora na compra das vacinas e a crise de oxigênio em Manaus. 

Voltando aos dados dos profissionais de saúde que vieram a óbito: 80% eram mulheres, 66% não tinham contrato de trabalho e quanto menor o salário maior era o risco. Esses dados gritam sobre o que é ser trabalhador da saúde e viver no Brasil, temos que rever imediatamente a nossa relação com o trabalho. O profissional de saúde não é herói, é proletariado que precisa de condições dignas de trabalho. Por isso a valorização do SUS deve passar pela valorização dos que lá trabalham.

 

E se eu mudasse de área?

Na área da saúde as coisas não iam muito bem, mesmo a saúde pública sendo reconhecida como um dos principais pilares da sociedade, aqui no Brasil isso não resultou em nem mesmo um debate. Isso é bem frustrante. Mas e se eu mudasse de área?

Contextualizar novamente a minha vida. No período da faculdade tinha contato com duas áreas: a da saúde, que era a qual eu estudava, e a da Tecnologia da Informação (TI), em que tinha alguns amigos e velhos conhecidos. Nos últimos anos quando converso com esses colegas da faculdade é visível a diferença entre os da saúde, todos cansados, frustrados ou alienados da realidade, e os de TI, todos muito bem estabelecidos, com ótimos salários e que acreditam até que a vida melhorou nesse tempo de pandemia. 

(Fonte da imagem: link. Descrição: em desenho um homem mexendo no computador com um fundo em tons de azul)

Ficou muito comum uma visão romantizada de mudar de área, principalmente para a de TI, como sendo uma alternativa “fácil”, com ótimos salários e resposta imediata já que necessitam de profissionais que estão em falta aqui no Brasil. 

Algumas vezes pensei em simplesmente largar tudo o que eu tenho construído como profissional de saúde, que não é muita coisa, e ir para um emprego em que as ações do governo não influenciam em nada. Na real quis por muito me alienar da realidade, mas para fazer isso precisava estar longe de qualquer coisa sobre saúde pública.

Fiz alguns cursos sobre programação, e são bem legais, mas toda vez que estava estudando pensava “isso aqui pode se encaixar perfeitamente como ferramenta do SUS”. A saúde pública está tão intrínseca em mim que tudo que faço associo a ela. Que mundo cruel capitalista que temos que abrir mão de áreas na qual temos muito a somar na busca de condições dignas de vida. 

Aliás, é sempre bom refletir por qual motivo temos que trabalhar pra ter condições dignas de vida? Principalmente quando o trabalho é algo que consome parte considerável do nosso dia a dia, podendo ser em condições ruins e, devido a tudo isso nos adoecer. 

(Crédito da imagem: Alphavector/ Shutterstock. Descrição: desenhos de 2 pessoas, uma exausta do trabalho e a outra lhe mandando mais demandas)

A Síndrome de Burnout, que a OMS incluiu na CID (Classificação Internacional de Doenças) no início de 2022, é definida como:

Resultante do estresse crônico no local de trabalho que não foi gerenciado com sucesso. É caracterizada por três dimensões: sentimentos de exaustão ou esgotamento de energia; aumento do distanciamento mental do próprio trabalho, ou sentimentos de negativismo; e redução da eficácia profissional.

Usamos essa frustração profissional como se fosse um problema individual, mas é coletivo, e, para se resolver, precisa de ações coletivas. Aqui estou falando de um pequeno recorte, que reconheço totalmente privilegiado: sair da área da saúde para a área do TI, quando vivemos em um país onde uma pequena parte da população tem ensino superior.  

O historiador holandês Rutger Bregman ressalta a importância do debate da renda básica universal, caminhando ao lado de uma menor jornada de trabalho. Em resumo: ambas as pautas são uma forma de evitar o adoecimento mental, principalmente em um contexto de modernização do emprego. 

Uma renda básica universal permite que o indivíduo possa escolher o que fazer, trabalhar no que é bom e não naquilo que a realidade lhe permite ou que dá mais dinheiro. Quantos bons artistas, cientistas e profissionais estamos perdendo pra um mundo que exige trabalhar para se ter condições dignas de vida. 

 

E se não houvesse algumas crises humanitárias bem na minha vez de ser adulto?

(Fonte da imagem: Caio Gomez, link. Descrição desenho de uma cabeça cheia de objetos, representando um cansaço.)

Se você nasceu ali no final dos anos 90 até início dos anos 2000, vivíamos um período de certa tranquilidade? Talvez a palavra melhor seja esperança. O Brasil passou por uma ditadura militar, conseguimos aprovar uma constituição, que, pelo menos na teoria, tem ideias incríveis como o SUS, a moeda Real consegue se estabelecer e politicamente há uma certa normalidade. 

Crescemos ouvindo que poderíamos, para além de aprender a ler e ter o ensino escolar completo, fazer faculdade, o que para algumas famílias, há 20 anos, era inimaginável. Que podemos ter acesso a três refeições ao dia, sonhar em viajar, talvez até para fora do país, ter acesso à moradia, a um meio de transporte. Crescemos com a ideia de que a vida sempre tende a melhorar.

Até que, bem na nossa vez de ser adulto, vem crise na democracia, no meio ambiente e, o que talvez seja a maior emergência de saúde pública que viveremos, a pandemia da COVID-19. Bem na nossa vez de ser adulto o poder de compra cai, o Brasil volta ao mapa da fome e ficamos sobre um governo com ideias negacionistas.

A precarização do trabalho, novas doenças e saúde mental detonada vem de encontro com as expectativas, vivências e esperanças. O cansaço mental e físico, que nem sabemos explicar de onde vem.

E se Jair Bolsonaro não tivesse sido eleito? E se a pandemia não tivesse acontecido? E se o mundo tivesse lidado com todas essas questões no passado? Minha vida estaria melhor agora?

É simplesmente impossível responder isso, talvez em um mundo alternativo estamos vivendo a nossa vida de forma mais plena e em outro mundo  as coisas estejam bem piores. Esse texto tem o objetivo de ser otimista, então vamos para a parte final dele. 

 

Luto para criar um sol que nunca verei brilhar” 

Um dos livros mais marcantes que li esse ano foi o Estação Onze (2014), escrito pela canadense Emily St. John Mandel. O seu romance retrata a terra 20 anos após uma pandemia que atingiu 98% da população mundial e a busca dos sobreviventes para criar um novo mundo. Eles fazem isso dando esperança pros que restaram por meio do teatro, especificamente reencenando peças de Shakespeare.   

( Descrição da imagem: cena da Minissérie Estação Onze, HBO Max, 2022)

Tô trazendo esse livro pois ele é totalmente sobre buscar sentido e esperança na arte, o que o capitalismo considera uma perda de tempo, porém tem total influência na nossa vida.

Pensa comigo: o mundo acabou, temos poucos sobreviventes, qual a melhor forma de reconstruir a sociedade? Criando muros e se organizando em pequenos grupos, criar uma ordem política? Não. No romance de Mendel o mais importante, e aonde achamos as respostas para nossas angústias, é na arte.  

Pensei durante todo texto em como responder essas minhas ansiedades, que talvez você compartilhe, e a resposta está no filme que citei lá no início, “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”. Vou tentar falar dele dando apenas pequenos spoilers, focando nos três personagens principais Waymond, Evelyn e Jobu, borá lá.

Waymond é o marido da família, logo na sociedade patriarcal, espera-se que ele seja o mais forte e provedor, mas ele distorce totalmente isso. Waymond é forte, mas não forte como no ideal de masculinidade, ele é forte pois, ao não saber o que fazer, o que resta é sempre ser gentil. 

Olha tudo que rolou nesta pandemia. Aqui no meu texto eu não sabia direito o que fazer e queria ir trabalhar na linha de frente, como uma forma de diminuir a minha sensação de impotência. Quando na real eu não precisava ir pra longe, tinha pessoas perto de mim que precisavam da minha ajuda. Não precisamos salvar o mundo, por hora tudo que precisamos é sermos gentis. 

(Descrição da imagem: cena do filme “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, A24 de 2022, na ordem Jobu, Evelyn e Waymond)

Evelyn é a personagem principal do filme, está sobrecarregada de dívidas e sempre se pega pensando “e se eu tivesse aberto mão da família e ido em busca de outras oportunidades de emprego?”.

A real é que sim, ela estaria financeiramente bem melhor. Evelyn poderia ser uma grande atriz, mas que se arrepende por não ter ficado com o amor da sua vida. Ela poderia ter sido uma grande chef de cozinha, mas não conseguiria ter uma relação próxima e de amizade com seus colegas de trabalho. Evelyn poderia ter conquistado o mundo inteiro, mas sempre algo irá lhe faltar.

O mundo capitalista é cruel, as coisas quase nunca saem do jeito que a gente precisa que sejam, mas vamos nos adaptando da forma que dá. Sonhar que se tivesse escolhido algo diferente e que poderia estar melhor faz parte.

As coisas realmente poderiam estar melhores ou piores, porém só somos o que somos por causa de nossos erros e acertos. Talvez essa seja a beleza cruel da vida e, acredite, só por estarmos vivos já é o melhor que podemos fazer.

Jobu talvez seja a personagem que mais difícil de decifrar, talvez olhar pra ela seja como encarar eu mesmo. Jobu viu todas as realidades do mundo e concluiu que nada faz sentido. Mas será mesmo? Para responder essa questão vou trazer um seriado que vi esse final de ano.    

Luto para criar um sol que nunca verei brilhar” essa frase é dita na série de Star Wars “Andor”, ela se refere a um dos personagens que faz da sua vida uma luta constante contra o regime totalitário que tomou o poder em todo o universo, o Império. Trazendo para a nossa realidade, essa frase se encaixa perfeitamente no mundo em que vivemos hoje.

Luto para criar um sol que nunca verei brilhar” é totalmente a luta da saúde pública, o SUS não é perfeito mas com o tempo vamos construindo e atualizando a visão idealizada dele lá em 1988. “Luto para criar um sol que nunca verei brilhar” é totalmente a luta dos ambientalistas, não vamos viver nesse mundo pra sempre, mas queremos que nossos familiares, e todos os outros seres humanos vejam como esse planeta, que alguns tentam destruir, é maravilhoso.

(Descrição da imagem: série Andor, 2022, Disney. Ator Stellan Skarsgard como Luther Real, que fala a frase em questão)

Luto para criar um sol que nunca verei brilhar” é a busca de uma utopia, as coisas tem sempre que melhorar. Vejamos o passado do nosso país e de nossos ancestrais, sei lá, desde o império: escravidão, golpes militares, ditadura, inflação, um governo neofascista e as emergências da saúde pública.

Do nosso ponto de vista, pode parecer injusto sermos adultos em meio a uma crise, mas não foi exclusividade da nossa geração, todas passaram por isso e o que a gente pode fazer diferente é se lembrar para no futuro isso não se repetir. É preciso estar atento e forte.

Mesmo quando nada faz sentido e as nossas angústias são maiores que as nossas esperanças, a vida sempre vai ser uma constante luta na busca de criar melhores condições para aqueles que virão depois de nós. 

Ufa! Bebam água, defendem o SUS, vacinem-se, se possível façam terapia e é isso o que tinha pra falar em 2022. Vamos ver o que vai dar em 2023.   

 

REFERÊNCIAS:

Imagem de capa: Filme “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” (Daniels, 2022)

 

E se fosse para a linha de frente? 

Texto sobre a convocação de profissionais de saúde (link); Texto do site Outra Saúde sobre mortes dos trabalhadores da saúde no Brasil (link).

 

-E se eu mudasse de área?

Texto da Organização Pan-Americana de Saúde sobre burnout (link); Escritor Rutger Bregman, pro texto usei especificamente seu livro “Utopia para realistas” (2018) Editora Sextante. 

 

e se não houvesse algumas crises humanitárias bem na minha vez de ser adulto?

Nessa parte do texto escrevi tudo de uma vez só, o que é muito raro pra mim, apesar de não usar nenhuma referência direta, toda vez que reclamei ou vi alguém reclamar de algo no twitter serviu de referências kk.

 

Luto para criar um sol que nunca verei brilhar” 

O livro Estação Onze (2014), editora Intrínseca, que ganhou uma adaptação em formato de minissérie para TV no início de 2022 pela HBO Max; Filme Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, (2022) infelizmente não está disponível em nenhum streaming acessível no momento que encerro esse texto. Seriado Andor (2022) que é a melhor coisa de Star Wars que saiu em muito tempo, tá lá no Disney +.