Como começar um texto sobre 2021 quando 2020 parece tão recente. Esses dois anos são como se fossem um só, a pandemia veio e ficou por mais tempo do que qualquer um de nós teríamos planejado e, provavelmente, ainda vamos sentir seus impactos nos próximos anos. Estamos aqui em mais um Dezembro e olhar para trás de tudo que aconteceu nesses meses é um tanto quanto assustador.
O clima constante de que vivemos em uma distopia. Com o negacionismo, que um dia foi visto como inofensivo, hoje coloca toda a população mundial em risco. Por aqui tivemos exposto como políticas negacionistas trouxeram um rastro de mais de 610 mil vidas perdidas. Além dos ataques constantes à democracia e à ciência, o Brasil voltou para o mapa da fome. A nossa Amazônia queima, enquanto a crise climática chega em um ponto que não tem mais volta. Com tudo isso nos encontramos cansados, sozinhos e com pouca esperança na humanidade.
Cansaço constante
A pandemia está para completar 2 anos, existe um alívio pelo número de mortos ao dia estar diminuindo, porém o peso que esse ano vem sendo é sentido nos ombros, e o cansaço nos toma misturando-se com as incertezas. “Vai ter carnaval?”, “Com a nova variante vamos passar mais um ano isolados?”, “Quantas doses de vacinas terei que tomar?”, “O mundo vai voltar ao normal como em 2019?” e entre tantas outras questões, que só com o tempo poderão ser respondidas.
Em matéria recente publicada no “The New York Times” relata que, com a pandemia, as pessoas estão se sentindo sem a possibilidade de ascensão social e melhora de vida. Conforme novas variantes aparecem, as respostas governamentais são confusas, e a população em geral sente que a COVID-19 continuará por anos, como as pragas da antiguidade, e com isso o sentimento de cansaço se espalha.
Ainda de acordo com o mesmo artigo os governos vão ter que desenvolver políticas públicas voltadas para o cansaço e saúde mental enquanto o mundo entra para o terceiro ano pandêmico. Sendo um dilema central, tanto para a questão de recuperação do bem-estar como na econômica.
Trazendo o pensamento do autor Byung Chul Han em matéria na The National em Maio de 2021, ele relata que a pandemia trouxe à tona sintomas que a muito estavam presentes na nossa sociedade
“Um desses sintomas é o cansaço. Todos nós, de um jeito ou de outro, nos sentimos muito cansados. É um cansaço fundamental que nos acompanha o tempo todo e em todo lugar, como nossas próprias sombras. Durante a pandemia, temos nos sentido ainda mais cansados. (…) Algumas pessoas afirmam que é possível descobrirmos a beleza do lazer, e que a vida pode desacelerar. Na verdade, o tempo durante a pandemia não é governado por lazer ou desaceleração, mas por cansaço e depressão.”
O seu livro “Sociedade do Cansaço” publicado há 11 anos, onde define vários tipos de cansaço e um dos principais está relacionado a sociedade neoliberal, pois existe uma busca constante de realizações por meio do trabalho. O autor ainda relata que com a pandemia o ambiente de trabalho, descanso e lazer tornou-se um só, o que agrava tais sintomas.
Em Outubro de 2020 a OMS definiu outro tipo de cansaço chamado Fadiga pandêmica que seria “O cansaço e o esgotamento físico e mental provocados pela pandemia. As restrições na vida social, financeira, entre outras dimensões, aumentam a falta de perspectiva e diminuem o poder de planejamento.” Em pesquisa a Organização estima que esse sintoma está presente em pelo menos 60% da população.
Byung Chul Han ainda complementa que chega a ser curioso que um dos principais sintomas que persistem nos pacientes após a COVID-19 e o cansaço
“A doença parece simular um cansaço fundamental. E há cada vez mais relatos de pacientes que se recuperaram, mas que continuam sofrendo de sintomas graves a longo prazo, entre eles, a ‘síndrome da fadiga crônica’ (…) As pessoas afetadas não são mais capazes de trabalhar e ter algum desempenho. Elas precisam fazer um esforço até para servir-se de um copo d’água. Ao caminhar, precisam fazer paradas frequentes para recuperar o fôlego.”
Viemos de um contexto de distúrbios psicológicos como a depressão e o Burnout. Doença essa que a partir do dia primeiro de Janeiro de 2022 será ligada diretamente ao trabalho, de acordo com a OMS a síndrome de Burnout tem um nova definição como “estresse crônico de trabalho que não foi administrado com sucesso.” Ainda de acordo com a Organização a nova patologia tem três aspectos principais:
- Sensação de esgotamento
- Sentimentos negativos relacionados a seu trabalho
- Eficácia profissional reduzida
Agora soma-se a isso – novas variantes que ainda estão por ser descobertas, o exemplo mais recente da ômicron. Cada vez mais teorias conspiratórias sobre a pandemia que atrasa a vacinação e o mundo capitalista onde países mais ricos têm maior acesso a vacinas e os mais emergentes não. O cansaço se mistura com a solidão.
Ministério da Solidão
Acho que em 2005 comecei a acompanhar o futebol internacional especificamente no jogo da final da Champions entre Liverpool vs Milan, no primeiro tempo o time Inglês vinha perdendo de 3×0 e conseguiu empatar e ganhar nos pênaltis. Porque to começando o texto com esse fato sobre futebol – a torcida do Liverpool cantou uma música chamada “You’ll Never Walk Alone” (traduzido: você nunca caminhará sozinho), prometo pra ti que já volto para essa música (3).
A COVID-19 mudou muito as nossas relações, o isolamento social foi imposto como uma das principais formas de evitar a contaminação do vírus. Encontrar pessoalmente com amigos, familiares e companheiros do qual nos relacionamos se tornou perigoso. Nesse segundo ano de pandemia, o sentimento de solidão me acompanhou, pois era outro ano no qual estava em contato direto com telas o que se tornava cansativo, além da saudade ser constante.
A solidão pode ser definida como “sentimentos de abandono, de isolamento e melancolia, todos associados à ausência de conexões eficientes ligando um ser humano a outro ou outros.” A palavra é uma das mais conhecidas no meio artístico e sendo constantemente usada em obras, existe mais música sobre solidão do que sobre estar feliz (1). Já em um período pré-pandemia era considerado um problema crônico na nossa sociedade moderna, o que acabou sendo potencializado com a COVID-19.
No livro “Solidão – A Natureza Humana e a Necessidade de Vínculo Social” de John T. Cacioppo e William Patrick (2010) os autores comentam que
“Quase todos sentem as pontadas da solidão em algum momento. Pode ser algo breve e superficial ou algo mais agudo e severo (…) A solidão transitória é tão comum que a aceitamos como parte da vida. Os humanos são, afinal, seres inerentemente sociais. Quando se pergunta às pessoas que prazeres contribuem mais para a felicidade, a imensa maioria menciona o amor, a intimidade e a proximidade social antes de falar em riqueza ou fama, e mesmo antes de falar em saúde física” (2).
No Reino Unido, de acordo com a The Mental Health Foundation (2010), por volta de 60% das pessoas, com idade de 18 a 34 anos, relatam se sentir sozinhos com frequência. Já nos EUA esse número corresponde a quase metade da população geral, de acordo com a Cigna (2018) 46% dos estadunidenses se sentem às vezes ou quase sempre sós. Vindo para o Brasil, em pesquisa feita no final de 2020 pelo instituto Ipsos, relatou que 50% dos brasileiros se sentem sozinhos durante a pandemia, essa mesma pesquisa relatou números expressivos de pessoas solitárias em países como Índia (43%) e Turquia (46%).
Existe um próprio ministério da Solidão na Inglaterra e Japão. Em território inglês foi criado em 2018, onde considera a solidão e o isolamento uma epidemia oculta. No Japão o ministério, que foi criado durante a pandemia, tendo como objetivo “implementar atividades capazes de prevenir a solidão endêmica e a isolação social agravada pela pandemia, visando fortalecer os laços interpessoais, respeitando os protocolos de segurança.”
Ainda de acordo com os autores citados anteriormente “A solidão tem um impacto na saúde comparável ao efeito da pressão sanguínea alta, a falta de exercício físico e o tabagismo.” Por isso esse sentimento deve ser encarado como um problema de saúde pública, e principalmente com políticas sociais voltadas para esse enfrentamento. A solidão pode trazer consequências na saúde mental e na física com mudanças fisiológicas que podem causar problemas hormonais, cardíacos e enfraquecimento do sistema Imune (2).
A solidão passou a ser mais presente na nossa sociedade moderna a partir do momento que nós nos entendemos como seres individuais. Com o crescimento das cidades, fez com que pequenas comunidades se dissolvessem, se tornou cada vez mais comum termos que migrar para outros lugares em busca de empregos, estudos e melhores condições de vida. E com isso é relativamente fácil abrir mão das nossas relações e amizades que fizemos no decorrer da nossa história (2).
E nesse contexto veio a COVID-19, que precisa de ações coletivas para ser superado. Não basta só eu estar em isolamento social, não basta só eu usar máscara, não basta só eu me vacinar. Em um mundo que prega o individualismo, são ações coletivas que vão nos salvar. Mas agora vamos voltar para “You’ll Never Walk Alone.”
Essa canção foi composta para um musical nos anos 20, sendo trazida novamente nos anos 40 em outro musical, ela ganhou grande fama nos anos 60 quando foi gravada por vários artistas como Frank Sinatra, Presley e, a minha versão favorita, por Gerry and the Pacemakers. Além de ser ouvida regularmente no grito da torcida do Liverpool, no qual tem forte relação com a canção estando presente na entrada do seu estádio (3).
A letra da canção é bem singela, basicamente sobre seguir em frente e que mesmo que muitas vezes nos sentimos sozinhos, e é natural se sentir assim, não estamos. Em ‘You’ll Never Walk Alone’ não fala que o mundo é simples e que sim vai existir muitas e muitas dificuldades, porém temos que seguir. Mesmo na chuva e com o vento forte o que nos resta é respirar fundo e continuar (3).
A solidão e o cansaço distorce a nossa noção de realidade. É natural depois de quase 2 anos em meio a incertezas da pandemia, quando aqui particularmente no Brasil vemos quase que diariamente o presidente e sua turma provocar inúmeras aglomerações, do discursos anticiência e de ódio, e coloque aqui algo que te atingiu fortemente esse ano, nos encontrar com uma falta de esperança no futuro e até mesmo na humanidade. Porém não é bem assim.
O Senhor das Moscas real oficial
Uma das leituras mais diferentes que fiz esse ano foi o livro “Humanidade: Uma história otimista do Homem” (2019) do historiador holandes Rutger Bregman. Nele o autor fala de momentos mais obscuros da nossa sociedade no qual nós humanos nos saímos muito bem e que a principal coisa que temos são nossas relações. Bregman baseia toda a pesquisa do livro em uma ideia muito simples: “É a de que, no fundo, a maioria das pessoas é bastante decente” (4).
Como você imagina a reação das pessoas durante o naufrágio do Titanic? De acordo com testemunhas “Não houve indícios de pânico ou histeria nem gritos de medo ou correria de uma lado para o outro.” Vamos de um exemplo mais recente no Ataque às Torres Gêmeas de 2001 – mesmo com suas vidas em risco, enquanto o prédio pegava fogo, as pessoas desciam calmamente as escadas, abriam caminhos para bombeiros e feridos (4).
O livro “Senhor das Moscas” escrito por William Golding (1957) trata-se de uma história ficcional sobre garotos que ficam perdidos em uma ilha deserta no qual demonstram “como a sociedade realmente se comportam”. De acordo com Golding, “mesmo se partirmos de um novo começo, nossa natureza nos compele a estragar tudo (…) o homem produz o mal como uma abelha produz mel” (4).
Essa visão se popularizou e sendo compartilhada por diversos outros filósofos, muito decorrente de uma época pós segunda guerra mundial, o que tornou um livro um clássico e sucesso de vendas. Mas será que algo assim já aconteceu na vida real? Vamos para a Oceania, mais especificamente em Tonga, no ano de 1965, onde seis garotos passaram mais de um ano isolados da sociedade após um naufrágio (4).
Para resumir a história – 6 garotos, de idade entre 13 e 16 anos, entediados da escola interna decidiram se aventurar no mares da Oceania, com um barco pego “emprestado”, porém houve uma forte tempestade que fez com que se perdessem, oito dias à deriva e chegassem em uma ilha deserta, história bem de filme mesmo (4). Mas afinal o que eles fizeram lá se tornou um Senhor das Moscas, um Lost ou um Náufrago?
Relatos do Capitão que os encontrou 15 meses após o incidente
“Quando chegamos os garotos tinham estabelecido uma pequena horta, troncos de árvores ocos para o armazenamento de água da chuva, academia com halteres peculiares, uma quadra de badminton, galinheiro e um fogo. Tudo feito com trabalho manual, uma faca, muito esforço e tempo disponível” (4).
A vida dos garotos na ilha não foi fácil, porém conseguiram se organizar, havia sim brigas mais logo resolvidas. Nos meses em que havia pouca chuva faziam racionamento, mantinha um horário para realizar atividades físicas, tanto que suas formas quando resgatados estava perfeita, a noite cantava músicas e faziam suas orações (4).
A questão é por qual motivo essa história real é tão diferente da que vemos nos filmes, seriados e reality show? A resposta é simples porque não vende. Coisas “ruins” tendem a gerar mais engajamento. Basta observar as notícias da TV e isso cria assim uma visão distorcida da nossa sociedade (4).
Trazendo o pensamento de Hannah Arendt “A nossa sociedade de amor e amizade é mais humana do que a do ódio e a violência” (4). Arendt estava muito à frente de seu tempo, e me arrisco a dizer do nosso também, ao transmitir tal reflexão. É uma ideia vendida constantemente na cultura pop de que as pessoas são ruins, porém na realidade não é assim, o mundo é um local bom.
Para onde vamos a partir daqui?
Em Dezembro de 2020 quando escrevi o meu texto de final de ano (link) o Brasil ultrapassava 182 mil mortos pela pandemia. Hoje, um ano após, estamos com mais de 610 mil, tivemos meses que morreram por COVID-19 mais de 2000 pessoas, que naquele momento já tinham vacinas disponíveis. É triste ver como pouca coisa mudou, temos um rastro ainda maior causado pela pandemia e potencializado pelo Governo Federal. Vou terminar esse texto com uma pergunta – para onde vamos a partir daqui?
As vacinas trouxeram doses de esperança, foi super legal acompanhar os meus amigos, colegas e familiares tomando a vacina. Aliás, o Brasil é um dos países que mais vacinou a população, além de ser o que mais tem a sua aceitação. Por aqui antivacina não tem vez. Em matéria recente no The Atlantic destaca que, apesar de termos um presidente negacionista, a aceitação das vacinas vem da confiança do SUS e por termos um excelente histórico de vacinação. Por uma valorização da Saúde Pública que devemos ir.
Burnout foi uma das palavras mais buscadas no google esse ano. Temos que trazer esse cansaço constante que eu e você estamos sentido para o âmbito político, são questões coletivas e com resoluções coletivas. Trago aqui as palavras da página Saúde Mental Crítica “É preciso dizer, sem medo, que o burnout, antes de ser um problema de saúde, é um problema político. Que o burnout é a expressão mais evidente da superexploração do trabalho no contexto neoliberal, e que o enfrentamento do problema não pode ser individual, mas sistêmico.”
Não é normal de um lado pessoas estão exaustas de trabalhar e de outro a exaustão é por não encontrar um emprego. Vivemos em um país que tornou-se comum pessoas na fila para conseguir ossos para se alimentar. Repensar as nossas relações do trabalho e na vida em sociedade é por onde devemos ir.
Olha o quanto a ciência consegue fazer nos últimos 2 anos, tivemos avanços incríveis na criação de vacinas, o que pode trazer uma melhor qualidade de vida no futuro próximo, porém muita coisa foi dificultada por fatores políticos. Em artigo recente publicado no The Lancet fala que “As conquistas da ciência permitiram um novo sentimento de esperança que deveria ter sido a base para uma resposta global equitativa, realizada com a urgência e a seriedade que uma pandemia devastadora exige” (5).
O artigo ainda complementa que com a descoberta da nova variante – Omicron – que ameaça novamente a nossa sociedade, a ciência vai dar as respostas, porém é fundamental políticas sérias e que tenham coragem de lidar com as decisões necessárias (5). As políticas públicas têm que acompanhar a ciência e é por aí que devemos ir.
Ano que vem com as incertezas da pandemia e ano de eleição presidencial não vai ser fácil, porém, vai ser um contexto totalmente diferente. O Brasil, e o mundo, enfrentam problemas mais sérios que dificilmente serão camuflados por uma onda de notícias falsas, porém é preciso estar atento e forte. e é por ai de devemos ir.
“Há meses é janeiro em todas as direções”(3) queria terminar o texto com essa frase, realmente tem sido, mas é isso saímos vivos desse ano louco. Bebam água, tomem sol, defendam o SUS, continuem a usar máscaras, se possível façam terapia e acho que é isso tudo que tinha para dizer em 2021. Vamos ver no que vai dar 2022.
Referências:
–Cansaço constante
O texto traduzido de Byung Chul Han “O vírus capitalista do cansaço incessante” (link) e também citado o livro “Sociedade do Cansaço” (2010) Editora Vozes.
–Ministério da Solidão
(1) O artigo “Solidão, Solitude e a Pandemia da COVID-19” (2021) de Thiago de Almeida (link); (2) O livro “Solidão – A Natureza Humana e a Necessidade de Vínculo Social” (2010) de John T. Cacioppo e William Patrick, Editora Record; (3) O livro “Antropoceno – Notas Sobre a Vida” (2021) de John Green, Editora Intrínseca (no qual misturou algumas experiências pessoais com fatos contados no livro); O vídeo “Loneliness” do Canal Kurzgesagt (link); Canção do Gerry and The Pacemakers – You’ll never walk alone (link).
–O Senhor das Moscas real oficial
(4) livro “Humanidade: Uma história otimista do Homem” (2019) de Rutger Bregman, Editora Crítica (praticamente toda essa parte do texto que tirei desse livro); Também citado Senhor das Moscas de William Golding (1954).
–Para onde vamos a partir daqui?
O fio no Twitter do Saúde Mental Crítica sobre Burnout (link); (5) Editorial do The Lancet “Covid-19 – Where do we go from Here?” (link).