No início do ano, me planejei para alguns textos que queria abordar aqui no Deviante, organizei algumas referências e livros que queria lê, então, no final de março, quando o ano começava a embalar, veio a pandemia. Todos os planos, incluindo os textos, tiveram que ficar de lado. Apesar de não ter a noção do que aconteceria, sabia que o ano não seria fácil. Assim passou 2020 e aqui estamos em mais um dezembro.
Revendo um pouco os textos que publiquei aqui, logo após decretada a quarentena, são nítidos meus sentimentos na pandemia, sobre tudo o que poderia ter sido em relação ao SUS no combate da COVID-19. Juro que tento não fazer isso, mas a forma que escrevo reflete como me sinto. Ao ver o que está passando no mundo é compreensível a frustração e o medo. No texto de hoje vou falar um pouco desses sentimentos universais que nos rodearam durante o ano.
Algo inerente a experiência do ser humano
Na música de Zé Geraldo chamada ‘Milho aos Pombos’, o cantor fala sobre a vida no interior, de ver tudo o que acontece no mundo e ele estar ali preso em sua cidade, dando milho aos pombos. O sentimento de frustração é presente na música o tempo todo e de certa forma fala diretamente com 2020. Esse ano poderia ter sido tanta coisa, mas acabamos tendo que ficar em casa.
Frustração é um conjunto de sentimentos entendidos como universais. Consiste em não alcançar os resultados esperados em determinada necessidade, podendo estar ligada ao desempenho no trabalho ou bem estar. Frustração dentro da literatura divide-se em duas: 1. uma compreensão de um objetivo não alcançado; 2. um sentimento negativo de tristeza por não atingir algo pretendido (7). Esses sentimentos podem ser potencializados no final de ano, principalmente em um 2020 atípico como vem sendo, ao lembrar de todas aquelas promessas de réveillon não cumpridas.
São várias as teorias abordadas por diferentes autores sobre a frustração, a que pretendo tratar aqui é a de Rosenzweig (1938), que a vincula a três fatores:
- Conceitos de não adaptação: um ambiente de trabalho no qual o indivíduo não consegue lidar com êxito, ou a uma nova realidade imposta pela pandemia, na qual tivemos que nos adaptar a nossa moradia como local de estudo, lazer e trabalho.
- Tensão: a exigência de resultados mais rápidos do que realmente conseguimos ou a incerteza do futuro.
- Perturbação da homeostase: ou seja aquilo que era considerado normal ou rotina é abalado drasticamente.
O autor comenta que há diferentes variações da frustração, que diferem de graus de privação tendo em comum algo que não pode ser alcançado. Importante repetir: é um sentimento universal, é algo inerente a experiência do ser humano (7).
É extremamente frustrante para mim como profissional de saúde acompanhar as notícias, ver como minha classe, em parte considerável, aceitou a pseudociência como política pública. Observar a exaustão de colegas, pois trabalhadores da saúde antes de serem heróis são seres humanos que necessitam de condições dignas de trabalho, enquanto outras pessoas minimizam a quarentena.
É também frustrante que grande parte da minha formação ressalta a importância do SUS, ressalta que a promoção e prevenção em saúde devem ser protagonistas, de forma a não sobrecarregar os leitos de hospitais. Com a chegada da pandemia, o mais básico de saúde pública, a nível federal, foi deixado de lado, dando palco a políticas que se baseiam em fatos alternativos.
Vivemos tempos difíceis e de incerteza. A frustração é apenas um dos sentimentos compartilhados no decorrer do ano, e, entre eles, o mais difícil de todos é lidar com a finitude.
Tudo está ligado à finitude
Trecho retirado da peça teatral de Ariano Suassuna – Auto da Compadecida
“É verdade; o cachorro morreu. Cumpriu sua sentença encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre”(1).
Uma das autoras mais diferentes que li esse ano foi Caitlin Doughty, que além de youtuber é agente funerária nos EUA. Doughty trabalha com a conscientização da morte, tratando-a como algo natural que faz parte da vida. De acordo com a autora “o grande triunfo (e tragédia) do ser humano é que nosso cérebro evolui ao longo de centenas de anos para compreender nossa mortalidade”(2).
Já Elisabeth Kübler-Ross, em seu livro “Sobre a Morte eo Morrer”, comenta que é difícil associar a morte como uma característica nossa, chegando a ser inconcebível, o nosso inconsciente imaginar um fim real para nossa vida na terra (3). Somos seres conscientes de que tudo tem seu fim, a morte e a vida são inseparáveis, então por qual motivo temos essa dificuldade em aceitá-la?
Para começar, tudo está ligado à finitude, ou seja, tudi tem fim. Uma propriedade daquilo que é restrito no tempo e espaço, de maneira específica a condição humana entendida como limitada, que de certa forma está ligada diretamente a vulnerabilidade (4). Em vários aspectos da vida é difícil sentir-se vulnerável. Em outros textos, trouxe o tema de masculinidades e saúde, o medo de transparecer vulnerabilidade faz com que os homens procurem menos ajuda de profissionais.
O adoecimento é a principal fonte da percepção da finitude. Falando de 2020, quando estamos em meio a pandemia, essa compreensão sai do meio individual e passa para a população de uma forma geral. Apesar de ser um tema que nos rondou durante toda a quarentena, não conseguimos associar a finitude como algo “normal” à condição humana, como se a morte fosse algo que tivesse ligado exclusivamente a circunstâncias extremas de perigo ou ameaça (4).
Nem sempre a morte foi tratada como um tema tabu. Foi só com o surgimento das epidemias, dos cultos religiosos, o desenvolvimento do capitalismo e as inúmeras tecnologias do complexo médico-industrial, que a morte passou a representar um desafio a ser superado, sendo progressivamente transferida para o ambiente hospitalar, distanciando-se das pessoas e do seu seio familiar. Com isso houve uma mudança na sociedade em relação à morte, deixando de ser natural e passando a ser algo evitável (5).
Entender os sentimentos é peça fundamental para lidarmos com a morte, sendo extremamente comum a aflição, a culpa e a vergonha. De acordo com Kübler-Ross “esses sentimentos, apesar de serem habituais, são na maioria das vezes reprimidos ou disfarçados”. Podendo a um longo prazo prorrogar o período de luto ou até mesmo se revelar de outras formas, como a raiva (2).
No momento em que faço a última revisão deste texto, o Brasil ultrapassa 182 mil mortes, enquanto ao redor do mundo esse número supera 1 milhão e 500 mil, sem levar em consideração a subnotificação. Imagina o número de pessoas que estão neste momento no processo de luto. Imagina o impacto que isso terá a longo prazo. Como conseguir confortar alguém que passa por esse momento? Provavelmente não há respostas, e só o tempo pode nos mostrar como o Brasil se recupera desses tempos sombrios.
Trazendo um pouco do pensamento Budista, a morte é tratada como um evento inerente da vida, uma mudança no ciclo inevitável de mudança, ou seja, a impermanência. O Budismo nos ensina a incluir a morte na vida: reconhecermos a natureza cíclica e contínua da existência de todos os fenômenos. Ou seja, ao abandonar a falsa sensação de permanência baseada no princípio de que “vou morrer um dia, mas não agora”, cultivamos uma sensação de urgência criativa, um profundo senso de responsabilidade e autoproteção diante da preciosa oportunidade de estarmos vivos e conscientes.
Vindo para dentro da perspectiva cósmica trago as palavras de Neil deGrasse Tyson, em seu livro “Respostas de um astrofísico”, ao responder sobre a morte falou:
“No meu leito de morte, um pensamento que certamente terei vem do biólogo Richard Dawkins. Ele observa que nós que morremos somos os sortudos, a maioria das combinações genéticas que poderiam existir nunca existirão, e assim nunca terão a oportunidade de morrer” (6).
É um fato que eu, você e todas as pessoas que amamos irão morrer, e mesmo tendo consciência da nossa finitude é difícil aceitá-la. Se tudo der extremamente certo, viveremos no máximo 112 anos, idade do homem mais velho do mundo registrada, olhando dentro da perspectiva cósmica é um instante para o universo, olhando pela perspectiva humana é tempo suficiente para fazer bastante coisa.
Espero que o mundo encare a mudança
Esse ano encaramos, o que talvez seja o nosso maior medo, a morte. Além de nos frustramos ao nos deparamos com a sensação de não controle, foram tirados de nós em partes o prazer de sair, os shows, o bar, encontro com os amigos de forma presencial. Então como posso continuar esse texto de final de ano, no qual tinha a pretensão inicial de ser um pouco mais otimista? Vamos lá.
O melhor livro que li esse ano sem sombra de dúvidas foi a duologia da Octavia Butler “Semente da Terra”(8). Neles a autora aborda um mundo muito próximo do que vivemos atualmente. Mulher negra que cresceu nos 50, em meio a segregação racial, Butler fala que começou a inventar história de fantasia e ficção científica para fugir da realidade que lhe era exposta.
Escrito em 1995, “Semente da Terra” consegue prever coisas como a precarização do trabalho, um nacionalismo exacerbado, o ataque ao meio ambiente, o aumento da desigualdade, entre vários outros temas fortíssimos que estão presentes atualmente. Nesse contexto, o livro tem como tema principal a Mudança. De acordo com a autora e a personagem principal dos livros “a mudança é a única verdade inescapável, mudança é a argila primordial das nossas vidas” (8)
Pensando em como foi 2020, espero que o mundo encare a mudança. Tendo a pandemia como fundo principal, foi exposta a desigualdade que vivemos, enquanto alguns estavam em suas casas em isolamento social, tantos outros não tinham acesso a água, comida ou até mesmo moradia. Tivemos que encarar a violência policial presente no estado não só brasileiro, como nos EUA, Nigéria entre tantos outros países. Através de manifestações, foram derrubadas estátuas que representavam um passado que não pode ser esquecido e também jamais deve ser reverenciado.
Vemos como a saúde só funciona se for universal. Não pode ser um privilégio ter acesso a profissionais, medicamentos e exames. A ciência é de extrema importância nos próximos desafios que o mundo tem a enfrentar e, para que ela esteja preparada, tem que ser fortalecida com mais investimentos. Encaramos como o método científico tem que ser o fator principal para ditar o futuro da humanidade, e as políticas públicas devem encontrar as melhores maneiras para lidar com isso.
A COVID-19 levou em menos um ano mais de 180 mil vidas de brasileiros. Esse número não pode ser só uma estatística que se analisa friamente. Eram seres humanos que tinham nomes, histórias e pessoas que os amavam. O que vai acontecer no Brasil e no mundo pós pandemia no dito “novo normal”? Bom, é impossível saber, porém o que espero é que as coisas mudem.
Voltando ao livro da Octavia Butler, outro ponto principal de sua história é a vida em comunidade. Sozinhos não podemos ir muito longe. Precisamos de diferentes visões, nos conectar com o próximo, de empatia. As coisas não se resolverão sozinhas, temos muito trabalho a fazer de forma ativa. Não estou dizendo que você tem que salvar o mundo, mais cuidar de si mesmo, fazer terapia, responsabilizar-se com sua saúde, dançar, ler e escrever, cuidar do próximo com trabalhos voluntários, com escuta ativa, uma ligação para quem não vê a tempos, desmentir uma fake news no grupo da família. Enfim escolher qualquer coisa que faça bem a você e aos seus, já é bom um começo.
Sei que 2020 não foi fácil de uma forma geral, mas sobrevivemos. Sempre vale uma olhada nas referências e links do texto. Comentários, críticas e desabafos são sempre bem-vindos. Beba água, tome sol sempre que possível e defenda o SUS diariamente. Ufa, acho que é isso tudo que tinha pra dizer esse ano, vamos ver no que vai dar em 2021.
REFERÊNCIAS:
- Livro Auto da Compadecida de Ariano Suassuna, publicado originalmente em 1955.
- Livro Confissões do crematório: Lições para toda a vida de Caitlin Doughty, publicado em 2014. Darkside.
- Livro Sobre a morte e morrer: O que os doentes terminais têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e aos seus próprios parentes de Elisabeth Kübler-Ross, publicado em 1969.
- SCHRAMM, F, R; Finitude e Bioética do Fim da Vida, Artigo de Opinião Revista Brasileira de Cancerologia 2012; 58(1): 73-78.
- OLIVEIRA, P. I; ANDERSON, M. I; Envelhecimento, finitude e morte: narrativas de idosos de uma unidade básica de saúde. Rev Bras Med Fam Comunidade. Rio de Janeiro, 2020 Jan-Dez.
- Livro Respostas de um astrofísico de Neil deGrasse Tyson, publicado em 2020. Editora Record.
- MOURA, C. F; Reação à frustração: construção e validação da medida e proposta de um perfil de reação. 2008. (link)
- Livro Semente de Terra da Octavia Butler, publicado originalmente em 1993 e 1998. Morro Branco.