Toda vez que o Wolverine coloca suas garras para fora, sua pele é cortada pelas lâminas, ao serem projetadas. Apesar da sua cura rápida, a dor ainda está presente. Contudo, ele já está acostumado com essa dor, pois ele sabe como controlá-la, basta não usar suas garras.

Por outro lado, seria melhor se ele não sentisse dor? Toda vez que suas armas saíssem do corpo, sentiria apenas a leve pressão da pele sendo rompida, sem dor. Que alegria!

Agora, fora do mundo dos super-heróis, muitos indivíduos ainda sofrem de dores crônicas. Dores constantes durante anos. Seja nas costas, joelhos, pernas, braço ou combinação de todas. Ao pensar na dor dessa forma, é evidente que essa sensação nos gera um sentimento ruim.

Pensando em dores, em sua presença ou ausência, aguda ou crônica, resolvi escrever esse texto com base em um episódio da série “House”. Lembro que eu acompanhava na época esse seriado e um episódio me chamou muita atenção.

Para quem nunca assistiu, House é uma série médica que passou entre os anos 2004 e 2012. Dr. House, o médico, apresenta uma excelente capacidade de dedução, a la Sherlock Holmes, além de se destacar no campo de diagnósticos diferenciais (conseguia diagnosticar qualquer paciente, apesar dos métodos questionáveis).

No episódio 14 da terceira temporada, após um acidente de carro, a personagem Hannah vai parar na emergência do hospital fictício chamado Princeton-Plainsboro Teaching Hospital, na cidade de Priceton em Nova Jersey, nos Estados Unidos.

Foi atendida no pronto-socorro, com um machucado na perna, e tratada por um médico (Dr. Forman). Por coincidência, ou não, House estava no local e viu que, ao tocar na ferida para que a limpeza fosse feita, a garota fingiu uma sensação de dor. “Você tem CIPA”, disse House, percebendo essa atuação e soltou um possível diagnóstico.

Dr. Forman logo questionou que apenas 60 casos no mundo foram reportados dessa doença. E, claro, um deles foi parar em um hospital fictício, até parece ficção.

Dr. House, então, cita 5 motivos para acreditar que ela apresenta CIPA e que o fez para escolher esse diagnóstico, apesar da raridade:

1ª) A paciente negou a doença;

2ª) Apesar de molhada e gelada pela neve ela não está tremendo (a menos que ela não sue e não sinta calor e nem frio);

3ª) Cicatrizes nos lábios e língua;

4ª) Ao limpar o machucado, ela fletiu em direção à gaze (de limpeza) e não se retraiu (apesar da “atuação”);

5ª) House a surpreende com sua bengala e bate na perna da paciente, que não reagiu;

A paciente não sente nada. Por esse motivo vários testes são necessários, pois como ela sofreu um acidente grave de carro, seu corpo não consegue “falar” se está sangrando ou se teve algum osso quebrado.

Mas, afinal, o que é CIPA?

Que bom que me perguntou!

CIPA é uma sigla para Congenital Insensitivity to pain with anhidrosis (CIPA).

Nossa, que nome estranho, o que significa?

É uma doença genética em que a pessoa apresenta uma insensibilidade à dor e, além disso, ela não possui a capacidade de suar ou transpirar (anidrose).

Imagina você sem sentir qualquer dor ou qualquer tipo de sensibilidade, tanto interna quanto externa. Não sentir frio, não sentir uma dor de barriga, não sentir quando torcer o pé e quebrar um osso, não sentir que está mascando a sua língua (principalmente em crianças com a primeira dentição), não sentir nada.

Por esse motivo a dor é essencial, pois não somos o Wolverine com uma capacidade de cura fantástica! Qualquer machucado, se não for encontrado e tratado, pode se transformar em algo pior e levar até a morte.

Mas, como sabemos quando sentimos dor?

Basicamente, na pele, em articulações, músculos, dentre outros locais, apresentamos receptores, os quais são ativados por estímulos nocivos, como pressão intensa ou temperatura.

Para nosso cérebro entender que algum ponto na pele está doendo, como ao pisar em um prego, alguns neurônios precisam atuar.

Imagine você enquanto criança, brincando em um terreno baldio e com vários materiais de construção jogados no chão. Diversão, vários amigos seus. Correndo, você sente algo entrando em seu pé direito (aquela havaiana não teve nem chances de proteger você). Primeiro, você apresenta um reflexo espinal, com alguns neurônios se comunicando e avisando que “deu merda”. Esse sinal faz com que você puxe sua perna direita para longe do problema. Contudo, para não cair sua perna esquerda precisa ativar seus músculos, com a finalidade de se equilibrar em uma perna.

Agora, para que seu cérebro receba a informação, alguns outros neurônios são ativados. Para que um neurônio seja ativado, um sinal precisa ser enviado, que nesse caso foi o prego (enferrujado) entrando no pé direito.

O sinal elétrico percorre alguns neurônios e chega até a medula espinal. Lá, realiza uma sinapse (comunicação entre dois neurônios) e sobe (por um neurônio) até o cérebro. Primeiro em um local específico chamado tálamo (que é um centro distribuidor de comandos), onde realiza outra sinapse e leva o sinal até o córtex cerebral (aaah, e você irá sentir, tente pisar em um prego enferrujado, como foi o caso, tenho a cicatriz até hoje)

Basicamente, três neurônios são necessários para percorrer o caminho (do receptor para a medula, da medula para o tálamo e do tálamo para o córtex cerebral) e, se um deles não estiver funcionando corretamente, o sinal não consegue atingir nosso cérebro e não consegue nos dar a sensação de dor.

E em pacientes com CIPA, o que ocorre?

Nesses casos, um tipo de neurônio específico está em falta.

O problema está no início do sinal. Na comunicação entre o receptor que comentei até a medula espinal. Não há presença um tipo de neurônio que leva até a medula.

Basicamente, temos dois neurônios: Fibra A (com bainha de mielina) e Fibra C (sem bainha de mielina).

No caso de pacientes com CIPA, não há presença da Fibra C e uma redução da Fibra A. Esse processo tem relação a um gene chamado NTRK1, que apresenta relação com o desenvolvimento dessas fibras durante o desenvolvimento fetal.

A ausência dessa fibra C é o suficiente para o paciente apresentar uma insensibilidade à dor, menor sensação térmica e até alguns problemas de aprendizagem. Nesses casos, o reflexo dos tendões estão, normalmente, intactos (como o reflexo da patela). Além disso, o paciente não apresenta suor, o que pode afetar a temperatura corporal e o paciente apresentar febre com frequência.

Até a criança apresentar um auto controle e uma noção de que apresenta essa grave condição, há necessidade de vigiá-la constantemente, pois a chance de automutilação é alta.

Um relato de caso: desde os 3 meses de idade, o paciente cometia automutilação e não exibia nenhuma reação para estímulos de dor. Ainda, no exame médico, ele apresentara normal reação ao toque, cócegas e pressão.

Ao examinar a boca, a língua da criança (com 9 meses) apresentava ulcerações, feridas. Além disso, o paciente, manualmente, tentava tirar seus próprios dentes. Para evitar tais problemas, como a destruição da língua, os dentes da criança foram retirados.

Já com 1 ano de idade, uma nova retirada dos dentes foi necessária, infelizmente. Pois, nesses casos, muitas cicatrizes na boca e língua podem permanecer, como House aponto em Hannah.

Aos 4 anos, sua inteligência e desenvolvimento foram considerados normais, apesar da automutilação. Quando o paciente fica mais velho, o autocontrole e o aprendizado da condição podem prolongar a vida.

De volta à ficção, Hannah sabia muito bem disso e ela sempre checava o corpo de forma constante, começando pelos pés e indo até a cabeça para ver se não havia nenhum corte, por exemplo. Contudo, mesmo devido a checagem completa do corpo (contar dentes, procurar inchaços, dentre outros), ainda não se pode verificar dentro dele sem auxílio de exames de imagem.

E como terminou o episódio? (spoiler)

Bom, caso não queira ver o desfecho do episódio, pule para o FINAL.

Para fazer a checagem completa com exames, House teve que drogá-la (sem o consentimento da paciente), pois Hannah não queria tais exames. Mas descobriram que havia algo errado com ela, além da CIPA e do acidente de carro.

Então, como todo episódio de House, para resumir, vários diagnósticos foram levantados e todos foram descartados com exames.

Até que, por fim, House foi conversar com seu amigo Wilson ao final do episódio. Nesse momento, durante a conversa e faltando 7 minutos para o final de episódio (o que acontece em muitos episódios), Dr. House tem um olhar vago e resolve o caso em sua mente.

Para dar um toque de drama, a paciente vai para a cirurgia e, sem anestesia, House faz um corte em seu abdome e intestino para retirar um parasita conhecido como solitária (Taenia solium). O interessante é que esse parasita infecta a pessoa ao ingerir ovos em alimentos não lavados direito, por exemplo. Agora, em países com boas condições sanitárias é um parasita relativamente incomum.

Vou deixá-los fazer as contas da probabilidade de uma paciente com CIPA e infectada por solitária ser levada ao hospital após passarem por um acidente de carro. Ou melhor, vou deixar para os escritores da série.

FINAL

Para resumir.

CIPA é uma doença genética rara. Pessoas com CIPA não apresentam um tipo de fibra nervosa conhecido como Fibra C. Pacientes com CIPA se automutilam, por isso todo cuidado é pouco.

Dor é essencial para sobrevivermos, pois sem dor um bebê Wolverine iria morder sua língua como nunca, sorte dele que apresenta uma cura rápida.

Por outro lado, dor crônicas também é horrível, além de mais comum. Conviver lado a lado com a dor, diariamente, não é algo que desejamos para ninguém.

 

Referências

 

Kandel R, et al. Princípios de neurociência.  5. Ed. Porto Alegre : AMGH, 2014.

Butler J, et al. Congenital insensitivity to pain – Review and Report of a case with dental implications. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod. 2006.

Axelrod FB, et al. Hereditary sensory and autonomic neuropathies: types II, III, and IV. Orphanet Journal of Rare. 2007.