Muito se fala sobre o retorno do AI-5 hoje em dia. Porém, infelizmente, pouco sabemos, como sociedade, sobre a Ditadura militar (1964-1985) e o AI-5. Em linhas gerais ele pode ser compreendido como uma derivação do AI-2, que estabeleceu o fim das eleições e dos partidos políticos. Em resumo, o fim da democracia. Em 1968 foi implantado o AI-5, uma lista de medidas ainda mais duras, e que valeria por tempo indeterminado, dentro desse contexto de ditadura. Esse ato institucional permitiu caçar e prender políticos e cidadãos dissidentes dos ditadores, já que o habeas corpus havia sido suspendido. Na prática também significou a sistematizacão da tortura. O Congresso podia ser fechado a qualquer momento, e professores universitários foram aposentados compulsoriamente (sinônimo de banidos, exilados). Nessa realidade ditatorial, determinados artistas, como aqueles ligados aos movimentos contraculturais, como o Tropicalismo, eram vistos com muita desconfiança e taxados como figuras de baixa relevância social pelos militares. Entretanto, sabemos que tais artistas foram considerados perigosos pelo fato de não terem poupado esforços em criticar não apenas os padrões estéticos daquele momento, mas também o autoritarismo que se instalara naqueles dias.
Mas essa resistência, como podemos chamar, demorou para chegar no Brasil. Ao contrário do que muitos pensam, a ditadura foi implantada sem nenhuma resistência significativa advinda de algum grupo. Não houve guerra civil no início da implantação desse modelo. Mesmo quatro anos depois, em 1968, havia pouca discussão sobre o que esse sistema de governo representava. No Festival de Música Brasileira de 1968, Caetano cantou “É proibido proibir”. O título já fala por si só. Mas ele foi vaiado pelo público geral. Um público que, num primeiro momento, podemos presumir que era questionador de alguma forma. Caetano então disse, e essa sua fala foi marcante: “Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos.”
Os artistas não estavam a salvo de críticas e muito menos de violência, que foi crescente ano a ano. O primeiro relato de violência praticada contra os artistas foi destinado aos atores que faziam a peça Roda Viva, de 1968, de Chico Buarque. O CCC (Comando de Caça aos Comunistas) perseguia os artistas e depredava suas instalações nos teatros. Roda Viva, inclusive, é peça de teatro e música.
“Tem dias que a gente se sente,
Como quem partiu ou morreu.
A gente estancou de repente,
Ou foi o mundo então que cresceu.”
Esse sentimento de angústia, de quem partiu ou morreu, é um sentimento de luto. Podemos pensar aqui na morte da democracia, na morte do poder questionar, estudar, discutir, poder fazer arte. A morte do poder viver livre.
Vejam que lindo o Chico em 67 cantando essa música:
Como sabemos, havia a censura para os meios de comunicação, em especial para os jornais. Eles tinham que apresentar suas matérias aos órgãos competentes previamente, antes da publicação. A censura branca se configurava como uma aceitação de alguns jornais, que já pensavam suas matérias nos moldes estabelecidos antes mesmo de escrevê-las. E a censura prévia acontecia quando as matérias eram proibidas pré publicação do jornal, e no lugar delas apareciam receitas ou poemas.
Nesse contexto, músicos também buscavam compor seus temas de forma que não fossem repreendidos. Muitas letras falam de amor, tema universal nas canções, mas nas entrelinhas podemos interpretar inúmeras críticas à ditadura.
“Menina amanhã de manhã” de 1972, de Tom Zé, é um exemplo disso.
“E a felicidade vai
Desabar sobre os homens, vaiDesabar sobre os homens, vai
Desabar sobre os homens.”
O próprio Tom Zé explica, em um vídeo disponível no Youtube (esse aqui) , que essa música reflete sobre a felicidade “forçada” que os brasileiros sentiam ou diziam sentir nos anos da campanha “Brasil: ame-o ou deixe-o”, já que o país era pintado como um lugar maravilhoso para se viver.
Em 1969, tivemos um dos presidentes mais populistas da nossa história: Emílio Médici. Dentro do seu populismo entrava a paixão pelo futebol. Em 1970 o Brasil ganhou a Copa do Mundo, o que fez com que o presidente ganhasse ainda mais apoio popular, reforçando o ufanismo crescente que permeava os espaços e os indivíduos. Assim surgiu o hino “Para frente Brasil”:
“Todos juntos vamos pra frente Brasil!
Salve a seleção!”
O patriotismo excessivo, a vitória na Copa e o desenvolvimento econômico ocorrido entre o final dos anos 60 e o início dos anos 70, conhecido como milagre econômico, faziam com que muitos brasileiros concordassem com o sistema vigente. O mundo todo passava for uma efervescência cultural ao mesmo tempo em que acontecia o que podemos chamar de boom econômico, advindo de uma nova revolução industrial. Porém, no Brasil, a desigualdade só aumentou. “De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1960, 20% dos brasileiros mais pobres detinham 3,9% do total da renda nacional. Vinte anos depois, em 1980, 20% da população mais pobre concentravam apenas 2,8% da renda produzida no país.”
O ministro da fazenda da época, Delfim Neto, afirmava que “Primeiro temos de fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo”. Porém, o bolo nunca foi repartido.
Essas ilusões mascaravam a realidade dura da ditadura: a censura, as torturas, os exílios e as mortes, daqueles considerados “os outros”. Podemos pensar nos “outros” aqui como todos aqueles que não concordavam de pronto com o que lhes era imposto, aqueles que faziam questionamentos, que queriam ter voz. Vale lembrar da icônica fala do Martin Niemöller:
“They came first for the Communists, and I didn’t speak up because I wasn’t a Communist. Then they came for the Jews, and I didn’t speak up because I wasn’t a Jew. Then they came for the trade unionists, and I didn’t speak up because I wasn’t a trade unionist. Then they came for the Catholics, and I didn’t speak up because I was a Protestant. Then they came for me, and by that time no one was left to speak up.”
(Tradução: Eles vieram buscar os comunistas, e eu não protestei porque eu não era um comunista. Aí eles vieram buscar os judeus, e eu não disse nada; eu não era um judeu. Aí eles vieram buscar os sindicalistas, e eu fiquei calado; eu não era um sindicalista. Aí vieram buscar os católicos e eu não falei nada porque eu era protestante. Até que vieram me buscar, e aí já não tinha sobrado ninguém para protestar)
Quando vivemos em um lugar onde a simples ideia de divisão entre “nós” e “eles” é algo bem aceito pela população, essa ideia por si só já nos alerta ao perigo de que, em algum momento, ou de alguma forma, “nós” podermos ser considerados “os outros”. Para maiores reflexões sobre o tema, recomendo o episódio “Kill all others”, da série “Electric dreams”, do Philip K. Dick. (disponível no Amazon Prime).
Em 1974, foi torturado e assassinado o jornalista Vladimir Herzog, uma das mortes mais comentadas e mais chocantes da ditadura. Com isso, houve pressão popular para a anistia (“perdão” para os brasileiros exilados que haviam cometido “crimes políticos”). Em 1979, a anistia foi concedida pelo então presidente João Batista Figueiredo, e o AI-5 foi revogado. Assim, no mesmo ano, surgiu o que é considerado até hoje o hino da ditadura: a canção “O bêbado e o equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, consagrada na voz de Elis Regina.
Ouça aqui a Elis com o seu talento deslumbrante
“Meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil”
O Henfil, mencionado na música, foi humorista vítima do HIV contraído em uma das transfusões de sangue que precisava fazer, por ser hemofílico. E seu irmão, Betinho, era um sociólogo, um de tantos exilados na ditadura. Por isso se clama pela “volta do irmão do Henfil”. Outra referência interessante na música é das “Marias e Clarisses” que choram. Clarice Herzog era a viúva de Vladimir Herzog, assassinado nos porões da ditadura, como mencionado anteriormente.
Ainda na mesma canção:
“A esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar”
A esperança de um país melhor realmente dança na corda bamba, com grupos pedindo intervenção militar e o retorno do AI-5, sem muita consciência do que isso implica para as nossas vidas. Temos que nos lembrar que a nossa democracia é muito recente e também relativamente frágil, mas é fundamental que lutemos por ela, para que esse terror nunca se repita. A arte, em especial aqui a música, nos traz reflexões importantes, nos ajuda a processar nossa dor, nossa história e também nos mostra um vislumbre de tudo o que podemos ser, do que queremos e também do que não queremos ser. Que todos nós tenhamos a sabedoria necessária para escolher bem o que queremos e o que não queremos ser como sociedade.
Agradecimento especial ao curso “O que foi a ditadura”, oferecido pela Folha de S. Paulo, ministrado pelo Professor Oscar Pilagallo; e ao amigo e historiador Henrique Bueno Bresciani, que gentilmente revisou esse texto.
Para quem quiser saber mais sobre a Ditadura recomendo as seguintes leituras:
“1964: história do regime militar brasileiro” por Marcos Napolitano.
“O Golpe de 64” por Oscar Pilagallo e Rafael Campos Rocha.
Bruna Stievano é professora do curso de Letras-Inglês da UFR e se divide entre algumas paixões: cantar, cozinhar e estudar Literatura, História e áreas afins.