Em texto anterior, analisei o artigo de Marco Antonio Caetano (2021), que demonstrou correlações entre ações do governo de Jair Bolsonaro e o aumento de desmatamento e incêndios na Amazônia Legal.
O pesquisador cruzou dados do Google Trends, INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e INMET (Instituto Nacional de Meteorologia).
Neste texto, vou apresentar alguns fatos sobre o chamado “dia do fogo”, isto é, as queimadas criminosas realizadas na Amazônia Legal por agentes capitalizados.
Sudoeste e Sudeste do Pará
Segundo o INPE, o Pará foi o estado campeão no registro de focos de queimadas em agosto de 2019 no bioma Amazônia, com 10.865 focos de incêndio, seguido pelo Amazonas (8.030), Acre (3.578), Mato Grosso (3.336) e Rondônia (3.086).
Os municípios de São Félix do Xingu (Sudeste Paraense, mais próximo da BR-158), Altamira e Novo Progresso concentraram quase 60% dos 10.865 focos de incêndio no Pará.
A região de Altamira e Novo Progresso (Sudoeste Paraense) cortada pela rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém) ficou internacionalmente conhecida como palco do planejamento do “dia do fogo”.
Esse nome surgiu primeiramente em publicação, no dia 5 de agosto de 2019, da reportagem do jornalista progressense Adécio Piran, intitulada Dia do fogo. Produtores planejam data para queimada na região:
Amparados pelas palavras do Presidente Bolsonaro, produtores e/ou criadores [de gado] da região da BR-163 planejam a data de 10 de agosto para acender fogos em limpeza de pastos e derrubadas […] para chamar atenção das autoridades que na região o avanço da produção acontece sem apoio do governo, precisamos mostrar para o Presidente que queremos trabalhar e único jeito é derrubando […]. (Adécio Piran, jornal local Folha do Progresso, 5 ago. 2019).
Fabiano Maisonnave, repórter da Folha de São Paulo, popularizou a expressão na reportagem do dia 14 de agosto Em ‘dia do fogo’, sul do PA registra disparo no número de queimadas. Nela, mostrou que Novo Progresso teve um salto de mais de 300 focos de incêndio no fim de semana dos dias 10 e 11 de agosto, data anunciada para o início das queimadas coordenadas, segundo o jornalista local havia anunciado. O mesmo ocorreu no município vizinho, Altamira.
Conforme apuração de Ivaci Matias, em reportagem da Globo Rural, os agentes que planejaram a ação foram empresários, produtores rurais e grileiros (que vendem terra pública ilegalmente). Entre eles há donos de redes de supermercados e lojas, bem como pessoas que haviam sido presas por crimes ambientais anteriormente.
Pelo WhatsApp, discutiram a melhor data, combinaram a compra de óleo queimado, a contratação de trabalhadores para cortar árvores com motosserras antecedência e de motoqueiros para atear fogo no capim seco no fim de semana programado.
Sem investigações ou fiscalização
Como Fabiano Maisonnave e diversos repórteres assinalaram, Adécio Piran foi alvo de ameaças pela divulgação das queimadas, pois ao tornar pública a coordenação do ato antes de sua execução, atraiu atenção para investigações criminais e pedidos de fiscalização ambiental.
Embora o Ministério Público Federal (MPF) tenha tentado impedir a realização das queimadas ao alertar o IBAMA no dia 8 de agosto, a agência ambiental respondeu quatro dias depois que:
“Devido a diversos ataques sofridos e à ausência do apoio da Polícia Militar do Pará, as ações de fiscalização no Estado estão prejudicadas por envolverem riscos relacionados à segurança das equipes de campo”, escreveu Roberto Victor Lacava e Silva, gerente-executivo-substituto do Ibama, em documento enviado ao MPF. Lacava afirmou no texto ter pedido reforço de segurança à Força Nacional, mas esse braço do Ministério da Justiça [sob responsabilidade do ex-juiz Sérgio Moro] também não participou de ações de prevenção aos incêndios. […] agentes do Ibama relataram ameaças de morte na região de Novo Progresso nos últimos meses, aumentando a tensão entre grileiros e funcionários públicos. (Leandro Machado, BBC News Brasil, 27 ago. 2019).
Além da impossibilidade de fiscalizar as queimadas por negação dos governos estadual e federal (e seu estímulo ao desmatamento), as investigações só foram iniciadas após muita pressão nacional e internacional.
Até hoje nenhum suspeito foi apontado e muito menos responsabilizado – inclusive devido a divergências entre as polícias Civil (próxima ao discurso de Bolsonaro) e Federal, conforme apurou um ano depois Daniel Camargos, jornalista da Repórter Brasil.
Quem sofre com os danos do desmatamento
Ao invés de investigar os culpados pelas queimadas, o delegado de um distrito de Altamira chegou a prender por 50 dias (injustamente, sem provas) três pequenos agricultores que denunciavam o desmatamento ilegal na região.
Essa série de incentivos à ilegalidade tem contribuído para o avanço de violações a unidades de conservação e assentamentos rurais na região da BR-163 paraense.
O “dia do fogo” queimou a Reserva Biológica Nascentes Serra do Cachimbo, a Floresta Nacional do Jamanxim e o assentamento PDS Terra Nossa.
Esses territórios criados pelo governo federal em 2005 e 2006 têm sofrido invasões violentas de grileiros e madeireiros que os tornaram recordistas de desmatamento na Amazônia.
Além disso, esses territórios são objeto de tentativas de cancelamento e redução de suas áreas, como mostraram Maurício Torres, Juan Doblas e Daniela Fernandes Alarcon (2017) no livro Dono é quem desmata.
Pequenos agricultores que resistem no local têm sido alvo de ameaças, assassinatos e agressões a familiares, bens e animais. Tudo isso, além da perda de suas roças pelas queimadas criminosas, acentua as dificuldades de viver com pouco acesso a crédito, infraestrutura, saneamento básico, eletricidade e água durante a pandemia de COVID-19.
O Sul do Amazonas
Apesar de 10 de agosto ter sido a data emblemática do início dos incêndios que se alastraram pela Amazônia, as antropólogas Mariana Galuch e Thereza Menezes (2020) ressaltaram que no município Apuí (AM), a intensificação das queimadas teve início antes, em 24 de julho de 2019.
Tanto que, em julho, Apuí constava nas listas de municípios que mais desmataram e queimaram, junto com Lábrea e Novo Aripuanã, seus vizinhos do Sul do Amazonas, na região de influência da rodovia Transamazônica. Por isso, o governo estadual do Amazonas decretou estado de emergência dia 2 de agosto, uma semana antes do início do “dia do fogo” na região da BR-163 no Pará.
As antropólogas ressaltaram o caráter coordenado das queimadas em Apuí, de forma semelhante ao observado posteriormente em Novo Progresso (PA):
Pouco antes, assistiu-se à chegada de um caminhão-tanque, cheio de combustível, que se dirigiu ao interior do município juntamente com dois ônibus lotados com homens e motosserras. As motosserras derrubaram as árvores nativas e dias depois se espalhou combustível na área desmatada e iniciaram-se os incêndios. (Mariana Galuch e Thereza Menezes, 2020, p.409).
Para as autoras, essa orquestração de focos de incêndio foi motivada por medidas do governo federal, aí incluídas as leis aprovadas pelo Congresso Nacional:
Os discursos presidenciais criticando a ação de ambientalistas em 2019, a promessa de paralisação da demarcação de novas áreas de proteção e terras indígenas e o ataque aos supostos interesses escusos externos na Amazônia [como a crítica à Alemanha] colaboraram para as iniciativas de devastação de florestas (MENEZES, 2020). […]
A motivação dos incêndios está relacionada à crescente flexibilização do marco legal e a promessas de regularização fundiária, assim como à paralisação da fiscalização ambiental na Amazônia desde o início do novo governo [Bolsonaro]. (Mariana Galuch e Thereza Menezes, 2020, p.409).
Às medidas de flexibilização de normas fundiárias e ambientais do Executivo e Legislativo a nível federal, se somam aquelas de nível estadual, conforme mostrou relatório do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON):
Assim como no caso federal, essas alterações [das regras fundiárias] nos estados acabaram permitindo a regularização de ocupações que eram consideradas ilegais, com risco de estimular mais invasão de terra pública e desmatamento no futuro. […] Chama atenção que o trâmite legislativo seja por meio de Medidas Provisórias, em regime de urgência ou sem qualquer discussão pública mais ampla. […] Esses trâmites acelerados e sem debate público suficiente também demonstram a baixa transparência das Assembleias Legislativas dos estados. […] Governos federal e estaduais priorizam a venda do patrimônio da sociedade, replicando um modelo que historicamente gera desmatamento, conflitos e não traz progresso social à população da região. (Brenda Brito et al., 2021, p.72)
“INPE” e “Alemanha” dispararam no Google desde julho
Portanto, a intensificação dos focos de incêndio em toda a Amazônia Legal – sobretudo no Acre, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia e Roraima – vinha sendo sinalizada desde julho, dias depois da entrevista de Jair Bolsonaro à Folha de São Paulo (19 de julho de 2019). Nela, o presidente negou os dados divulgados pelo INPE, os quais indicavam aumento de 278% do desmatamento na floresta amazônica naquele mês em comparação com julho de 2018.
Pouco depois, no dia 2 de agosto, o presidente exonerou o diretor do INPE – o professor titular de física da Universidade de São Paulo (USP) Ricardo Galvão –, por ter defendido a solidez dos dados da instituição.
No texto anterior, mostrei como Marco Caetano (2021) se baseou em dados do Google Trends e observou um aumento repentino da busca pela palavra “Alemanha” no Google no dia 3 de agosto, mostrando haver correlação significativa com o “dia do fogo”. Devido à polêmica com a divulgação dos dados sobre desmatamento que eram alvo das críticas de Merkel ao Bolsonaro, o termo “INPE” foi quase tão buscado no Google quanto “Alemanha” de fins de julho até meados de agosto:
Os grandes desmatam, depois queimam
Os dados revelam que são os grandes que desmatam, sejam eles grileiros, pecuaristas, agricultores, políticos ou empresários:
Análises das queimadas do ano passado na Amazônia feitas por pesquisadores da Nasa, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e pelo Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (Ipam) revelaram que boa parte das áreas desmatadas nos meses anteriores é que estavam sendo queimadas, em um processo de limpeza do terreno. […] As proporções dos incêndios, segundo as análises da Nasa, não são condizentes com pequenas limpezas de pasto por pequenos agricultores. […] (Eduardo Rodrigues e Giovana Girardi, Estadão, 24 jul. 2019).
Isso confirma pesquisas anteriores que mostram que os responsáveis pelo desmatamento na Amazônia são grandes empresários, produtores rurais e grileiros [ver nota 2].
Em relatório do IPAM, por exemplo, Ane Alencar et al. (2016) já indicavam que o monitoramento de desmatamento do INPE só capta desmatamentos em polígonos maiores que 6,5 hectares, tamanho muito maior do que costuma ser retirado anualmente por indígenas e pequenos agricultores.
Para desmatar 1 hectare (equivalente a um campo de futebol) é necessário de 200 a 400 dólares, de acordo com o coordenador da ONG Mapbiomas Tasso Azevedo.
Não à toa,
A maioria dos municípios presentes na lista elaborada pelo Ipam [dos mais desmatados e queimados] está localizada no chamado arco do desmatamento — que é resultado de um processo histórico de ocupação da Amazônia […] Grande parte das atividades que deixam um rastro de desmatamento e fogo na Amazônia Legal é voltada para a pecuária e agricultura extensiva. (Bruna Caetano, Brasil de Fato, 30 set. 2019).
Portanto,
Desmatar na Amazônia é uma tarefa cara, mas também um grande negócio. Em 2019, um alqueire (2,4 hectares) de pastagem podia chegar a R$ 10.000, dependendo da localização e do acesso à infraestrutura. A mesma área ocupada por floresta é negociada por aproximadamente R$ 500. O procedimento é desmata-se, aguarda-se um pouco e vende-se a terra para formação de pastos ou para ampliar-se as fazendas e pastos previamente existentes. (Mariana Galuch e Thereza Menezes, 2020, p.409).
Notas
[1] A capa deste texto é uma montagem de fotografias. Mostra o rosto de Bolsonaro rindo ao botar fogo na floresta. Ele usa a lança-chamas utilizada no filme “Era Uma Vez Em… Hollywood” por Leonardo DiCaprio, ator que o presidente acusou de ter financiado as queimadas criminosas no Brasil por meio de uma ONG.
[2] A Embrapa, que tem propagado a voz de Evaristo de Miranda, reconhecido negacionista climático, responsabilizou pequenos agricultores pelas queimadas, fazendo eco ao discurso do presidente Bolsonaro.
Como já dito, pesquisas científicas contradizem essa afirmação. E já sabemos que os maiores desmatadores da Amazônia são grileiros, empresários e políticos bastante capitalizados, conforme mostrou a análise dos dados do IBAMA feita por Alceu Luís Castilho e Leonardo Fuhrmann.
Referências
Alceu Luís Castilho e Leonardo Fuhrmann. Os desmatadores. Bilionários, políticos, paulistas, estrangeiros, reincidentes contumazes: aqui estão os 25 maiores destruidores da Amazônia. The Intercept Brasil, 31 jan. 2020.
Ane Alencar et al. Desmatamento nos Assentamentos da Amazônia: Histórico, Tendências e Oportunidades. Brasília: IPAM, 2016.
Brenda Brito et al. Dez fatos essenciais sobre regularização fundiária na Amazônia. Belém: IMAZON, 2021.
Marco Antonio Leonel Caetano. Political activity in social media induces forest fires in the Brazilian Amazon. Technological Forecasting and Social Change, v. 167, p.1-10, 2021.
Mariana Vieira Galuch e Thereza Cristina Cardoso Menezes. Da reforma agrária ao agronegócio: notas sobre dinâmicas territoriais na fronteira agropecuária amazônica a partir do município de Apuí (sul do Amazonas). Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 28 n. 2, p.388-412, jun. 2020.
Maurício Torres, Juan Doblas e Daniela Fernandes Alarcon. Dono é quem desmata. Conexões entre grilagem e desmatamento no sudoeste paraense. São Paulo, Urutu-branco; Altamira, IAA, 2017.
Thereza Cristina Cardoso Menezes. Environmental Governance and Regularization of Land Ownership: development and multiple territorial dynamics in the Amazon. Vibrant, Brasília, v.17, 2020.
Algumas reportagens e textos sobre o “dia do fogo”
Adécio Piran. Dia do fogo. Produtores planejam data para queimada na região. Folha do Progresso, Novo Progresso, 5 ago. 2019.
Adécio Piran. Em Dia de Fogo, nuvem de fumaça cobre cidade de Novo Progresso. Folha do Progresso, Novo Progresso, 11 ago. 2019.
Bruna Caetano. Campeões de desmatamento e queimadas na Amazônia são dominados pelo gado e pela soja. Brasil de Fato, São Paulo, 30 set 2019.
Daniel Camargos. “Dia do Fogo” completa 1 ano sem presos nem indiciados; impunidade incentiva destruição da Amazônia. Repórter Brasil, São Paulo, 10 ago. 2020.
Eduardo Rodrigues e Giovana Girardi. 90% dos focos de incêndio na Amazônia em 2019 ocorreram em locais já desmatados, diz Embrapa. Estadão, São Paulo, 24 jul. 2019.
Fabiano Maisonnave. Em “dia do fogo”, sul do PA registra disparo no número de queimada. Fazendeiros dizem que a ideia dos incêndios é mostrar trabalho para o presidente Jair Bolsonaro. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 ago. 2019.
Ivaci Matias. Grupo no WhatsApp contratou motoqueiros e motosserras para desmatar e incendiar a floresta. Globo Rural revela como foi organizado o ‘dia do fogo’ no Pará; grupo “SERTÃO” tem 80 membros entre grileiros, garimpeiros e fazendeiros da região. Globo Rural, Rio de Janeiro, 26 ago. 2019.
Leandro Machado. O que se sabe sobre o ‘Dia do Fogo’, momento-chave das queimadas na Amazônia. BBC News Brasil, São Paulo, 27 ago. 2019.
Phillippe Watanabe. Desmatamento na Amazônia em julho cresce 278% em relação ao mesmo mês em 2018. Divulgação de dados do Inpe sobre aumento da destruição tem irritado governo Bolsonaro. Folha de São Paulo, São Paulo, 6 ago. 2019.
Renata Barbosa Lacerda. Contrafogos: “produtores” vs. “ambientalistas” na BR-163 paraense. Horizontes ao Sul, 23 ago. 2019.
Rosiene Carvalho. Com alta exponencial de queimadas, Amazonas decreta situação de emergência. UOL, 9 ago. 2019.