No início de 2021, o professor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) Marco Antonio Leonel Caetano publicou o artigo em inglês “Political activity in social media induces forest fires in the Brazilian Amazon” (Atividade política em mídias sociais induz fogo florestal na Amazônia brasileira) pelo periódico Technological Forecasting and Social Change. Para seu estudo, considerou a Amazônia Legal, que abrange os nove estados brasileiros: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Mato Grosso, Tocantins e Maranhão.
Marco Caetano analisou como os discursos de Jair Bolsonaro na imprensa e sua propagação nas mídias sociais podem ter influenciado o aumento de queimadas nessa região em agosto de 2019.
Esse aumento repercutiu internacionalmente pelo chamado “dia do fogo”, ação criminosa em que fazendeiros e empresários planejaram a queima da floresta com o objetivo de pedir apoio do presidente para a produção agropecuária na região [ver nota 2].
Para verificar sua hipótese, o pesquisador utilizou correlações cruzadas entre os discursos do governo de Bolsonaro, palavras-chave no Google Trends e mais de 3 milhões de dados sobre clima e incêndios na Amazônia brasileira desde 1998 disponibilizados pelo INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e INMET (Instituto Nacional de Meteorologia).
Google Trends?
O Google Trends apresenta a frequência com que palavras em diversos idiomas são buscados no Google pelo mundo. Pode-se pesquisar por categorias, países e períodos (anos, meses, dias e horas).
De acordo com Marco Caetano, o Google Trends tem sido cada vez mais empregado por pesquisadores para a realização de estimativas sobre acontecimentos recentes e previsões de eventos futuros devido à globalização.
Por exemplo, com o constante deslocamento populacional pelo mundo, a previsão de pessoas usando o sistema de saúde se tornou crucial para evitar epidemias através do planejamento de campanhas e tratamentos. Outro uso relevante dessa ferramenta tem sido a estimativa de intenções de voto e previsão de resultados de plebiscitos.
Histórico de incêndios e o Fundo Amazônia
O gráfico acima mostra que agosto de 2019 apresentou os maiores índices de focos de incêndio desde agosto de 2010, ano em que Dilma Rousseff se elegeu presidenta. O ano de maior ocorrências de incêndios em agosto foi 2005, seguido por 2007 e 2010.
Desde 2011, apresentou tendência de queda, quando já estava em vigor o Fundo Amazônia, idealizado pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva em 2007 – mesmo ano em que passou a haver aumento de multas ambientais na região, que foram reduzidas a partir de 2014, mas principalmente 2015. Isso coincidiu com aumentos de ocorrências de incêndios registradas pelo INPE (CAETANO, 2021, p.8-9).
O Fundo Amazônia, financiado principalmente pela Noruega, mas também Alemanha e Petrobrás, desembolsou 1.9 bilhões de reais em projetos sustentáveis na região. Com isso, contribuiu para uma queda de 75% no desmatamento, de acordo com Marco Caetano (2021).
No entanto, com o aumento dos índices de desmatamento, Alemanha e Noruega decidiram cortar o financiamento a políticas sustentáveis na floresta brasileira, o que levou a uma reação do Bolsonaro de acusar os países europeus de querer comprar a Amazônia.
Busca por “Alemanha”, “Noruega”, “Fogo Amazônia”, “Altamira+Fogo+BR163”
Devido ao conflito do presidente com os financiadores do Fundo Amazônia, Caetano pesquisou três palavras-chave no Google Trends: “Alemanha”, “Noruega” e “Fogo Amazônia”. E cruzou com os dados de focos de incêndio do INPE.
Para comparar os dois conjuntos de dados, que têm escalas diferentes, dividiu o valor de cada variável por dia pelo seu maior valor de todo o mês de agosto. Com isso produziu uma escala comum e cada valor do gráfico abaixo ficou entre zero e 1.
Caetano encontrou uma correlação cruzada de 55,73% nos sete dias entre o aumento repentino da busca pela palavra “Alemanha” no Google (em 3 de agosto) e o pico dos focos de incêndio (10 e 11 de agosto, os fim de semana do fogo).
Pouco mais de uma semana depois, quando nuvens de fumaça atingiram São Paulo, disparou a procura pelas palavras “Fogo Amazônia” (20 a 24 de agosto).
“Noruega”, por sua vez, teve um pico no dia 16, logo após Bolsonaro criticar aquele país por anunciar o corte de financiamento ao Fundo Amazônia.
Mídias sociais
Além disso, Caetano comparou os dados de incêndios com as buscas por “Alemanha” e “Altamira+Fogo+BR163” no Google, como vemos no gráfico abaixo:
Nesse caso, a correlação entre essas duas expressões foi de 72,87%. O autor apontou ainda que o rápido crescimento de busca por ambas as expressões tem alta correlação com o início do “dia do fogo” na Amazônia Legal, mais especificamente em Altamira (município cortado pela BR-163, região onde teve início o “dia do fogo”).
Embora Caetano se refira ao aumento da busca a partir do dia 8 de agosto, podemos observar que entre os dias 3 e 5 de agosto as buscas por “Alemanha” e “Altamira+Fogo+BR163” apresentaram picos.
Isso é significativo, pois um jornal local divulgou o planejamento do ato no dia 5 de agosto (PIRAN, 2019), o que parece indicar que as mídias sociais já vinham propagando notícias sobre a Alemanha e a possibilidade de realização de queimadas propositais.
Reportagens do jornalista Ivaci Matias (de agosto e outubro de 2019) mostraram que as investigações da Polícia Federal descobriram 3 grupos de WhatsApp nos quais empresários, grileiros e produtores rurais planejaram as queimadas ao longo da BR-163 no Pará. Nesses grupos virtuais, os suspeitos anunciaram a derrubada de árvores com antecedência justamente para se prepararem para o “dia do fogo” (10 e 11 de agosto).
Portanto, as midias sociais foram ferramentas de propagação de discursos do Bolsonaro (sobretudo de crítica à Alemanha no quesito ambiental) e de planejamento das queimadas.
Aumento dos incêndios pós-impeachment
Marco Caetano (2021) apontou ainda que durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, tanto o financiamento para combate de desmatamento quanto as infrações ambientais aplicadas pelo IBAMA decaíram bruscamente. Ao mesmo tempo, a partir desse momento, os incêndios na Amazônia se intensificaram.
Segundo ele, o quadriênio 2016-2019 (incluindo o mês de agosto de 2016, quando Dilma estava afastada do cargo) apresentou mediana de incêndios 87% maior do que 2012-2015 na Amazônia Legal [ver nota 3]. A mediana de 2016-2019 foi de 27.712 focos de incêndio, enquanto a do quadriênio anterior foi de 14.780 focos; ou seja, praticamente dobrou.
Levando em consideração somente o estado do Amazonas, em agosto de 2015, a mediana era de 1.981 incêndios. Já em agosto de 2019 a mediana era de 4.235, um aumento de 113% em quatro anos. Essa discrepância é revelada por gráficos boxplot (diagrama de caixa), como o que reproduzo abaixo.
O boxplot evidencia o aumento da mediana de focos de incêndio (traço que corta cada box/caixa) e a variabilidade ou concentração de casos ao longo do tempo. Mostra também os menores (haste de baixo) e maiores (haste de cima) valores registrados [ver nota 4].
Causas naturais?
Além de tudo, com dados meteorológicos do INMET, Marco Caetano mostrou que os quadriênios 2012-2015 e 2016-2019 não revelaram variação estatística relevante de quantidade de chuvas na região nos meses de julho e agosto, o que refuta a ideia de que os incêndios teriam ocorrido por falta de chuvas.
Essa insinuação, que responsabiliza a estação seca (o chamado verão amazônico), foi feita não só por Jair Bolsonaro, mas pelos ministros do Meio Ambiente (MMA), Ricardo Salles, e das Relações Exteriores (MRE), Ernesto Araújo. Do mesmo modo, foi reproduzida por lideranças locais da região afetada pelo “dia do fogo” (MACHADO, 2019).
Portanto, além de apresentar uma metodologia inovadora para analisar a previsibilidade de eventos, o artigo de Caetano demonstra correlações entre as práticas governamentais e o aumento do desmatamento da floresta amazônica, indo no sentido contrário ao discurso de naturalização das questões socioambientais propagandeado pelo Bolsonaro e seus porta-vozes.
Até o momento, não há dados científicos que permitam concluir haver causas naturais do aumento recente de incêndios, mas sim dados que indicam a influência de discursos e decisões governamentais.
Isso é retratado pela redução efetiva da fiscalização ambiental, bem como pela demonstração pública de apoio a atividades que promovem o desmatamento e de combate a medidas ambientais lançadas nos governos Lula e Dilma com a colaboração de países como Alemanha e Noruega.
Segundo Caetano, esse conjunto de fatores contribuiu para a percepção de impunidade com relação a crimes ambientais, a qual foi expressa cada vez mais nas mídias sociais e nas buscas no Google, até ter efeitos concretos de destruição da floresta.
Notas
[1] A capa deste texto é uma montagem de fotografias. Mostra o rosto de Bolsonaro rindo ao botar fogo na floresta. Ele usa a lança-chamas utilizada no filme “Era Uma Vez Em… Hollywood” por Leonardo DiCaprio, ator que o presidente acusou de ter financiado as queimadas criminosas no Brasil por meio de uma ONG.
[2] Falarei mais sobre o “dia do fogo” na parte 2 deste texto.
[3] Mediana é a medida de posição central de uma série de casos, cuja vantagem é ser menos sensível aos valores extremos do que a média. A média é a soma dos valores dos casos, dividida pelo número de casos.
[4] O gráfico boxplot revela cinco medidas: a mediana; o primeiro quartil (25% dos valores estão abaixo desse valor); o terceiro quartil (75% dos valores estão abaixo desse valor); o menor valor; e o maior valor no conjunto de dados.
Referências
Heloísa Negrão. Após Alemanha, Noruega também bloqueia repasses para Amazônia. El País, Madrid, 16 ago. 2019.
Ivaci Matias. Grupo usou whatsapp para convocar “dia do fogo” no Pará. Polícia investiga ação de incendiários, ao menos 70 pessoas participaram de grupo de mensagens; no dia 10 de agosto, número de focos de incêndios cresceu repentinamente na Amazônia. Globo Rural, Rio de Janeiro, 25 ago. 2019.
Ivaci Matias. Dia do Fogo foi organizado por 3 grupos de Whatsapp, diz delegado Em entrevista exclusiva à Globo Rural, Sergio Velloso Pimenta, da PF de Santarém, dá detalhes da investigação. Globo Rural, Rio de Janeiro, 23 out. 2019.
José Valladares Neto; Cristiane Barbosa dos Santos; Érica Miranda Torres; Carlos Estrela. Boxplot: um recurso gráfico para a análise e interpretação de dados quantitativos. Rev Odontol Bras Central; v. 26, n.76, p. 1-6, 2017.
Leandro Machado. O que se sabe sobre o ‘Dia do Fogo’, momento-chave das queimadas na Amazônia. BBC News Brasil, São Paulo, 27 ago. 2019.
Marco Antonio Leonel Caetano. Political activity in social media induces forest fires in the Brazilian Amazon. Technological Forecasting and Social Change, v. 167, p.1-10, 2021.