Os movimentos sociais não aceitam que se usem certas palavras, muito embora tais palavras tenham um sentido dicionarizado e não estejam gramaticalmente incorretas. Um exemplo é homossexualismo, que segundo o dicionário Michaelis1é: ho.mos.se.xu.a.lis.mo- (cs)sm(der.de homossexual+ismo, como ingl homosexualism) 1Prática de atos homossexuais. 2V homossexualidade. Antôn: heterossexualismo.
Ou seja, segundo o dicionário, no segundo item do verbete, homossexualismo e homossexualidade são sinônimos; ainda assim, o movimento LGBT+ não aceita o primeiro e incentiva o segundo. Por quê? Porque o primeiro, embora sinônimo, carrega a má interpretação por alguns de que, pelo sufixo “ismo”, a relação afetiva e amorosa entre pessoas do mesmo sexo seria uma doença, assim como botulismo, bruxismo ou alcoolismo. Ou seja, embora dicionarizado não como doença, pois o sufixo possui inúmeras outras aplicações, inclusive na palavra heterossexualismo (s.m. Propensão a se sentir atraído sexualmente e/ou emocionalmente por pessoas do sexo oposto, conforme o dicionário), seu uso, por vezes, acarreta más interpretações ou interpretações de má fé. Ou seja, o uso preconceituoso da palavra homossexualismo não passa disso, de preconceito.
Tal como este, dezenas de outros termos são considerados incorretos hoje em dia, alguns por aviltar os integrantes daquele grupo (tal como os tantos termos populares pejorativos para designar gays ou grupos étnicos); outros, como o exemplo citado nos primeiros parágrafos, por induzir ao erro. Neste quesito podemos citar também a expressão ‘opção sexual’, já que ninguém ‘escolhe’ pelo que se sente tesão e, destarte, devemos preferir orientação sexual. Há, ainda, os que estão simplesmente errados no conceito, como o termo ‘deficiente físico’. Ora, deficiente nos leva sempre a pensar em algo errado, faltoso, no antônimo de eficiente e de ‘pessoa normal’, enquanto o que vemos na realidade é portadores de necessidades especiais extremamente competentes no que fazem, afora que de perto ninguém é normal…
Desconsiderando as reclamações dos grupos que abominam os termos chamados ‘politicamente corretos’ (em geral movidos pelos próprios preconceitos), acho a mudança de termos fundamental para o combate à discriminação e para a construção de uma sociedade mais justa, muito embora às vezes seja difícil transformar antigos hábitos, especialmente para pessoas como eu, que nasci pouco tempo depois da extinção do último megatério…
Sabedor desta realidade, às vezes me pego pensando se a ciência não deveria seguir o exemplo dos movimentos sociais e cunhar termos próprios para fugir das más interpretações e interpretações de má fé causadas pelo uso indiscriminado de palavras da ciência que são semelhantes ou iguais a palavras do dia-a-dia.
Especulação?
Um bom exemplo é o uso dos termos ‘hipótese’, ‘teoria’ e ‘lei’. Os dois primeiros, hipótese e teoria, no sentido vulgar têm praticamente o mesmo significado, algo aproximado a suposição ou conjectura. Ou seja, quando você fala para um amigo “tenho uma teoria” ou “tenho uma hipótese sobre tal assunto”, tal ‘hipótese’ ou ‘teoria’ pode ser uma suposição que você acaba de ter, sentado em uma mesa de bar, consumindo alguns chopes e salgadinhos. Não é algo necessariamente verificável ou mesmo baseado em evidências, é somente uma ideia sobre algo.
Os mesmos termos, em ciência, têm um significado profundamente diferente. Hipótese é sim uma conjectura, mas criada para tentar explicar um fenômeno observado e sustentada no fato de ser falseável, ou seja, de que se possa criar um experimento para provar que tal hipótese é falsa. Já teoria é uma hipótese que foi submetida a um número suficiente de experimentações e não se mostrou falsa, teoria é, pois, o nível máximo que uma ideia pode ter em ciência, e não especulação vazia.
Eu várias vezes me deparei com pessoas, por exemplo, afirmando que a Teoria Sintética da Evolução é “somente uma teoria”, e que se fosse algo mais que uma ideia, então seria uma lei. Não sabem estes que lei é somente uma teoria científica que pode fazer previsões testáveis para o futuro. Por exemplo, se você jogar uma pedra para cima, sabendo a força usada, o vetor, a gravidade, a resistência do ar e outros dados, pode prever com exatidão como a pedra se comportará antes mesmo que ela tenha sido lançada, por isso falamos em Lei da Gravidade. Você não pode, entretanto, dizer que uma espécie vai evoluir desta ou daquela forma, pois as mutações são aleatórias e selecionadas somente depois de ocorrerem, muito embora a Evolução tenha sobrevivido há mais de 150 anos de testes. Por isso se fala em Teoria da Evolução, e não em Lei da Evolução.
Mas pode ser ainda pior, já que tem quem defenda que aquecimento global e o fato de tabaco causar câncer serem ‘meras teorias’ e, portanto, não devem ser levadas a sério, apesar do consenso científico…
O próprio termo ‘falsear’2, que é uma das bases para uma hipótese ou teoria poder ser considerada científica é sujeito a más interpretações, e não é para menos, já que no dicionário falsear pode significar tanto atraiçoar e enganar quanto torcer o pé ou dar falsa interpretação a alguma coisa. Significados estes muito diferentes de seu uso em ciência, que é o de, através de um experimento, poder demonstrar-se que uma hipótese ou teoria é falsa – se efetivamente o for. Quanto mais testes deste tipo uma ideia científica passar, mais forte se torna a teoria, enquanto que se fracassar nestes testes, uma hipótese ou teoria será ou adaptada (se somente uma parte da ideia foi falseada) ou totalmente derrubada (se a ideia como um todo foi falseada).
Em biologia também são comuns concepções erradas sobre o termo ‘evolução’, que significa mudança das características hereditárias de uma população de uma geração para outra, fazendo com que as populações de organismos mudem e se diversifiquem ao longo do tempo. Mas novamente o dicionário trai a ciência, e são comuns as acepções de sofisticação ou aprimoramento, como se a evolução produzisse seres obrigatoriamente cada vez mais sofisticados. Há ainda a confusão de evolução biológica com evolução moral, ou mesmo de direcionamento, como se o ser humano fosse o ápice da evolução quando, na verdade, para a biologia não somos mais evoluídos, por exemplo, que uma bactéria, pois se ambos estamos vivos e ocupando seus devidos nichos, então somos os dois igualmente evoluídos.
Ciência?
Reconheço que a mudança de tais termos seria bastante complexa, e cheguei a pensar em propor uma alternativa de apor a palavra “científico/a” ao termo usado; assim, ao invés de utilizar-se ‘hipótese’, falar-se-ia em ‘hipótese científica’; ‘teoria científica’ e não somente ‘teoria’ e ‘falseabilidade científica’ ao invés de somente ‘falseabilidade’; isso sem falar em ‘lei científica’, dentre outros termos…
Mas então lembrei que a própria palavra ciência é fruto de muitos enganos por parte até mesmo de acadêmicos, pois a palavra, que vem do latim scientia(conhecimento), pode se referir a qualquer conhecimento ou prática sistemáticos, sendo usada tanto para ciências no sentido popperiano2(ciência biológica, ciência da física…) quanto para assuntos que não têm qualquer relação com o método científico, tal como as ciências exotéricas. Há ainda as teorias científicas pós-modernas que não seguem o método científico de falseabilidade, precisando não mais comprovação do que afirmações sem evidências, como demonstrou Alan Sokal3, que publicou como artigo em uma respeitada revista pós-moderna “um pasticho de jargões esquerdistas, referências aduladoras, citações pomposas e completo nonsense(…) estruturado em torno das citações mais tolas que se pode encontrar sobre matemática e física”, e depois publicou a denúncia da farsa.
Ao contrário do que parece, este não é um assunto vazio ou mero pedantismo acadêmico, pois junto com o problema da demarcação2, o problema da nomenclatura em ciência, aqui exposto, causa não só confusão entre os leigos, o que é problemático – nas palavras de Carl Sagan, porque “vivemos em uma sociedade profundamente dependente de ciência e tecnologia na qual ninguém sabe nada sobre esses temas, e isso constitui uma fórmula perfeita para o desastre” –, como também faz diferença, por exemplo, na hora em que são decididas as verbas a serem aplicadas em ciência e tecnologia que, ao contrário de serem investidas, por exemplo, na pesquisa da cura do câncer ou da doença de chagas, acabam sendo destinadas, em parte, a pesquisas ‘científicas’ tais como cromoterapia, ou para provar que a gravidade é uma construção social.
Claro que, neste espaço, não foi meu escopo encerrar o assunto ou trazer soluções definitivas, mas sim trazer à tona o debate para que outras pessoas, mais qualificadas que eu, possam nele trabalhar e, quem sabe, apresentar uma solução viável.
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1 – Dicionário Michaelison line: http://michaelis.uol.com.br/.
2 – Para uma melhor compreensão do falseamento popperiano e do problema da demarcação o mais indicado seria a leitura de A Lógica da Pesquisa Científica(popper, Karl. São Paulo, Cultrix, 1993). Para um entendimento básico, consultar o excelente artigo do professor Fernando Lang da Silveira em https://periodicos.ufsc.br/index.php/fisica/article/view/7046/6522; ou ainda http://pt.wikipedia.org/wiki/Problema_da_demarca%C3%A7%C3%A3o.
3 – Para informações sobre o Escândalo Sokal, o ideal é ler Imposturas Intelectuales(sokal, Alan; bricmont, Jean. Barcelona: Editora Paidós, 1999). Para um conhecimento básico sugiro o excelente podcast Fronteiras da Ciência, do Departamento de Física da ufrgs, episódios 16 e 23 da segunda temporada, disponíveis no endereço http://www.ufrgs.br/frontdaciencia/FdaC2011.htm.
Guto Riella. Um primata nerd apaixonado por ciências, artes e karatê, residente em Uruguaiana, RS; nascido pouco depois do Pleistoceno, casado pela segunda vez, três filhos, três livros escritos (nenhum publicado), duas árvores plantadas e a estranha e absurda ilusão de que o mundo pode ser mudado para melhor.