Recentemente estreou o anime (animação japonesa) “A Condition Called Love” (ou, do original em Japonês, “Hananoi-kun to Koi no Yamai”, em português “Hananoi e a Doença do Amor”, em tradução livre). A animação, desde o seu primeiro episódio, chamou muito minha atenção diante do seu tema central, a dependência afetiva. E sobre isso que vamos falar hoje.
ALERTA DE GATILHO: o texto irá falar sobre dependência afetiva e relacionamentos tóxicos. Caso não se sinta confortável com esse tema, por favor, não se sinta obrigado a continuar a ler. E, lembre-se, saúde mental é saúde tão básica e importante quanto a saúde física. Esse texto é opinativo de um não especialista. Não se paute pelas minhas opiniões. Busque atendimento psicológico e psiquiátrico.
Sobre o Anime
Para uma melhor análise do que vamos falar, peço suas desculpas, mas vou precisar dar um pequenino spoiler sobre o primeiro episódio do anime. E terei que fazer algumas referências ao que comentar aqui no decorrer do texto. Desculpe. Mas, vai por mim, não estraga em nada a experiência de assistir.
A história começa pelo ponto de vista de Hotaru, uma garota de 16 anos que, numa tarde, encontra um garoto desolado numa praça depois dele ter encerrado um namoro. Hotaru vê o rapaz coberto de neve e, por um ato de simples gentileza, cede seu guarda-chuvas para cobri-lo. No dia seguinte, o garoto, chamado Hananoi, conhecido como o “bonitão” da escola, vai à sala de aula e se declara a Hotaru, pedindo-a em namoro.
Hotaru recusa o namoro, mas Hananoi não aceita o não como resposta e começa a acompanhar ela no seu dia a dia. A princípio, nada demais, só mais um colega de escola. Mas, aos poucos, sinais começam a aparecer que demonstram um comportamento insalubre.
Hananoi começa a agir de forma exageradamente submissa perante Hotaru. Ele muda sua aparência, corta seus cabelos, então longos, começa a fazer trabalhos dos mais variados sem solicitação e, em um momento extremo, passa uma noite cavando neve com as mãos para tentar achar uma presilha de cabelo perdida por Hotaru no campo de exercícios da escola. Tudo isso tentando ser o mais agradável e subserviente.
A história, no entanto, não se presta a romantizar esse tipo de comportamento. A protagonista deixa claro que acredita não ser esse um comportamento saudável, e até sugere a Hananoi que deixe de insistir no relacionamento.
Outro ponto que a história cita, ainda, é a pressão social que a própria Hotaru sofre. Ela é uma garota que nunca teve interesses românticos. Não procurou iniciar qualquer relacionamento, nem nunca recebeu uma declaração ou pedido de namoro de alguém. E, por isso, ela se sente uma pária, alguém que seria incapaz e ilegítima de se apaixonar ou ter alguém que se apaixone por ela. Ao mesmo tempo, sente que deveria se adequar à normativa social e, como uma pessoa “normal”, ter um namoro. E, diante da procura de Hananoi, é incentivada por amigos a iniciar esse namoro, mesmo sem ter qualquer sentimento direcionado a ele.
E chega de spoiler. Se quiser saber mais sobre essa história, que parece estar indo super bem, é só checar no serviço de streaming Crunchyroll, onde está tendo lançamento semanal dos episódios. Bora pro texto!
Sobre Dependência Emocional
“Armem as barreiras, acionem as defesas, e deem a esse homem… um Psiquiatra”. Esse é o comentário mais votado no primeiro episódio do anime na Crunchyroll.
Evidentemente, Hananoi representa alguém com transtornos de comportamento relativos a relacionamentos.
ALERTA: esse texto não está sendo escrito por um profissional da área de saúde mental. Trata-se de uma análise de um leigo, mas que já viveu situações de relacionamentos tóxicos. E, por isso, acredito que seja importante trazer esse tema à discussão. Sinta-se à vontade para críticas e comentários.
O Transtorno de Personalidade Dependente (conhecido pela sigla TPD) é um transtorno de comportamento documentado e classificado na Classificação Internacional de Doenças (CID). Ele se caracteriza por uma tendência da pessoa em deixar que outra pessoa (ou várias) tome decisões, menores ou maiores, e guie todos os aspectos da vida própria.
Uma pessoa com dependência emocional é extremamente submissa à vontade do outro, e pode adotar comportamentos extremados em caso da mínima percepção de abandono.
Por vezes, o TPD pode estar associado a outros transtornos, como depressão e ansiedade, ou outros transtornos de personalidade, como borderline (caracterizado por um padrão generalizado de instabilidade e hipersensibilidade nos relacionamentos interpessoais) e de personalidade histriônica (caracterizado por um padrão generalizado de excessiva emocionalidade e busca de atenção).
Evidente que alguém que sofra de TPD merece respeito e cuidado especializado por uma equipe de saúde habilitada. Mas isso não deixa de ser um risco de adoção de um comportamento tóxico dentro de um relacionamento.
O Outro Lado do Relacionamento
Você acorda na sua cama. É manhã e seu sono foi embora. O seu hálito noturno te incomoda, sua bexiga está cheia e você está com fome. Porém, a pessoa ao seu lado não te deixa levantar porque não quer ficar sozinha.
Você aguenta e espera. Depois da rotina matutina, você vai iniciar suas atividades. Você recebe mensagens, mas não pode responder porque está ocupado. Isso resulta em diversas ligações repetitivas para apaziguar os ânimos.
No fim do dia, você quer encontrar os colegas de trabalho para um bate-papo, mas não consegue. Os lamentos de solidão ou alegações da pessoa de estar se sentindo doente, ainda que você saiba que não seja nada, te forçam a voltar para casa.
Em casa, você está com sono e gostaria de ir dormir. A pessoa ao seu lado, no entanto, quer passar um tempo fazendo alguma atividade, e insiste que você vá dormir exatamente no mesmo horário que ela. Você acata e acaba indo dormir num outro horário, acumulando cansaço.
Contrariar qualquer dessas condições de rotina, no entanto, podem resultar em graves problemas. Brigas acaloradas, agressões verbais ou físicas, ameaças de abandono repentino, autodepreciação ou automutilação da pessoa dependente, ou até mesmo ameaças de atentado contra a própria vida. Tudo isso faz com que você aceite as imposições e se compadeça, mesmo infeliz.
Essas são condições que conviver com uma pessoa com dependência emocional pode causar em alguém. Um estresse que vai se acumulando diante de pequenas imposições da rotina, e que podem resultar em um enorme desgaste e carga emocional.
Os relacionamentos com dependência emocional, no entanto, não se limitam a relacionamentos amorosos. Não é incomum que pais ou mães apresentem comportamentos parecidos após a saída dos filhos do lar, seja pelo casamento ou outra condição. Isso pode gerar expectativas de uma rotina onde o(a) filho(a) se veja obrigado a estar presente na casa dos pais mesmo que isso lhe cause complicações na administração da própria vida, ou o clássico conflito dos pais com genros e noras.
O importante é lembrar que isso não deve ser a regra para o seu relacionamento. Ainda que se considere e releve os pontos de melhoria e defeitos das pessoas, estabelecer limites saudáveis é importante para um relacionamento.
Como lidar com alguém com dependência emocional
Como sempre, cada caso é um caso, mas existem algumas dicas que podem ajudar a estabelecer uma rotina mais saudável a todos os envolvidos.
O primeiro e mais importante passo é aceitar que os seus interesses e necessidades particulares são tão importantes quanto os da outra pessoa.
É comum nós querermos nos doar às pessoas que amamos, muitas vezes nos privando nas nossas próprias necessidades. Aos poucos, perdemos contato com amigos e familiares, perdemos o hábito de cultivar nossos hobbies e de fazer atividades que nos dão prazer. E, com isso, de uma hora para outra, vemos que nosso mundo está limitado à outra pessoa dentro do relacionamento, sem qualquer outra escapatória.
Se livrar dessas barreiras e estabelecer questões importantes para si é o primeiro passo. Reforçar o amor próprio é o primeiro passo para que tenhamos recursos para doar amor aos outros.
E, acreditem, essa dica vale até mesmo para relacionamentos saudáveis com pessoas que dependam de nós para a manutenção da vida e crescimento, como nossos filhos. Por experiência própria, posso dizer que estabelecer limites de interação com a minha filha foi positivo para nós dois, já que ela passou a ter maior exercício de empatia para minhas necessidades e eu pude ter mais energia para me dedicar a ela quando necessário.
Feito isso, é necessário combinar a rotina e os momentos que serão compartilhados ou exclusivos de cada um.
A conversa é uma ferramenta poderosa. E, vale sempre o ditado, o combinado nunca sai caro. Estabelecer limites na interação como, por exemplo, esclarecer os momentos em que é razoável a troca de mensagens e ligações, já é um grande passo. É necessário demonstrar que sua saúde e felicidade é importante para que vocês possam compartilhar de uma vida saudável.
E, nesse mesmo sentido, é importante destacar que a definição desses limites não é um tipo de abandono. A pessoa com dependência emocional poderá usar de estratégias de barganha, agressão ou autodepreciação para impedir essas mudanças. Por mais doloroso que seja, somente adotando tal processo que a mudança pode se solidificar.
A definição de “combinados”, ou seja, regras para o comportamento, é uma das estratégias que é adotada em diversos tipos de terapias comportamentais, tal como, por exemplo, na Análise do Comportamento Aplicada, conhecida pela sigla em inglês ABA. O ABA é normalmente adotado para crianças com transtornos de comportamento, mas o mesmo princípio pode se estender para qualquer pessoa e relacionamento. E, uma vez que os limites sejam definidos, nenhuma das partes se sentirá prejudicada pelas consequências.
Outro ponto importante é que, aos olhos da pessoa com dependência emocional, você será sempre o “vilão” na situação. Aceitar esse papel, sem se abalar, é importante, já que a pessoa dependente não terá condições lógicas ou emocionais de controlar suas emoções diante da situação. Mas, uma vez estabelecidas as novas condições e colhidos os resultados, que certamente serão positivos a ambos, muito possivelmente a situação possa vir a gerar uma discussão saudável do relacionamento no futuro.
Mas, se nada mais der certo, e a decisão for por encerrar esse relacionamento, a postura assertiva de comunicar uma decisão deve ser tomada.
Um relacionamento nunca é uma obrigação. Mesmo pessoas a quem somos, de alguma forma, obrigados a prestar auxílio e suporte financeiro, por exemplo, não há obrigação do estabelecimento e manutenção de um vínculo emocional com alguém.
Claro, todas essas etapas podem ser facilitadas com o auxílio de um terapeuta habilitado, seja para terapia familiar ou de casais, que certamente ajudará a mediar essas mudanças e estabelecer os limites da negociação.
De toda forma, se você estiver numa condição em que opte pelo fim do relacionamento, seja firme na decisão. A outra pessoa certamente usará de todas as estratégias acima para tentar manter a relação, mas é necessário respeitar seus próprios limites, sua liberdade e sua felicidade, garantindo que o término é apenas isso, o término daquela relação, não um tipo de abandono.
E, claro, se você tiver razões para temer eventuais atitudes extremadas da pessoa, em adotar comportamentos autodestrutivos, como, por exemplo, abuso de álcool ou substâncias ou, ainda, atentar contra a própria vida, é importante alertar familiares e a rede de apoio da pessoa para que se façam presentes no período após o término do relacionamento, para evitar prejuízos à pessoa.
Considerações Finais
Olha pessoal, aqui vai um relato pessoal.
Eu já me vi em ambos os lados do relacionamento, seja como alguém que adotou uma postura de dependência, seja como alguém a quem foi demandado por uma pessoa dependente. Não a ponto de caracterizar um diagnóstico de transtorno, talvez, mas mesmo assim vivendo de forma bastante insalubre.
Estabelecer esses limites me fez ter muito mais felicidade e conseguir manter relacionamentos de que, se não regulados, teria que abrir mão, mesmo não querendo. E, para reconhecer essas necessidades, foi muito importante o acompanhamento com meu psicólogo e em terapias conjuntas com a outra pessoa.
Estamos vivendo uma época revolucionária em termos de aceitação e visibilidade da saúde mental e social e, claro, isso gera certos conflitos de percepção nas pessoas, em geral. Aceitar a mudança é uma quebra de paradigma e toda essa quebra gera desconforto. Porém, a mudança só será efetiva quando visto que a energia necessária para o esforço de mudar tem resultados mais benéficos que a comodidade da situação.
Entender o relacionamento dependente como uma forma de abuso, ainda que involuntário, é parte dessa mudança. E estabelecer limites e promover essa mudança o mais breve possível pode ser a diferença entre haver ou não condições para a manutenção de uma vida saudável e evitar sequelas que se arrastem para o futuro.
Discussões com a do anime “A Condition Called Love” serão muito positivas para o nosso futuro como sociedade. Somente jogando nosso preconceito de lado e abraçando a mudança podemos ver a evolução pessoal e da sociedade. Espero que esse tipo de história realista, deixando de lado a romantização do abuso e dos relacionamentos possessivos, ainda comuns em histórias e novelas, se torne mais comum para estabelecer limites morais para a vida comum.
E, claro, se estiver passando por qualquer conflito, busque tratamento profissional. Lembrando que mesmo aqui dentro do Deviante nós temos a nossa querida Juliana Vilela, a Jujuba, que é psicóloga e pode oferecer terapia online ou presencial para a galera de São Roque. Sigam ela lá no Instagram em @jujubavi, que ela começou a fazer uns conteúdos bem legais da área.
Beijos e saúde a todos!
(Imagem de Capa: Divulgação. Distribuidora: Kodansha Ltd.. Autoria: Morino Megumi.)