“Tecnicamente, química é o estudo da matéria, mas prefiro vê-la como o estudo da mudança.[…] É crescimento, a queda e então, transformação. Na realidade é fascinante.” WHITE, Walter H.
Desde o primeiro momento que decidi cursar Engenharia Química, vieram as piadas, hoje clássicas: “Vai cursar química pra fazer drogas.”, “Olha lá o projeto de Walter White”, “Depois que tu terminar o curso tu vai saber produzir drogas?”. Eu não gostava muito. Achava muito simplista e de mau gosto reduzir o amplíssimo mercado de trabalho do engenheiro químico a fazer drogas ilícitas. E o grande culpado disso é esse maldito maravilhoso seriado “A química do mal” como ficou conhecido no Brasil.
Contudo, devo dizer, Breaking Bad seguramente teve alguma coisa a ver com a minha escolha de faculdade. Eu simplesmente amo essa série com todas as minhas forças e poderia passar muito tempo aqui discutindo teorias malucas, easter eggs, e interpretações diversas que eu tive depois de ver e pesquisar alucinadamente sobre o assunto. E eu me orgulho de ter estudado tanto sobre ela, chegando a muitas conclusões. Sério, eu realmente poderia falar de qualquer aspecto da série (e adoraria, a pena é que ninguém nunca tem saco de me escutar).
Bom, vão ter muitos spoilers. De todas as temporadas. O texto vai ser muito melhor apreciado por quem já assistiu.
Breaking Bad segue a história de Walter White, um frustrado professor de quimica/lavador de carros, que, após ser diagnosticado com um câncer de pulmão de estágio 3, acaba por se tornar um fabricante de metanfetamina, com a justificativa de conseguir dinheiro para o tratamento e para sua família. No decorrer da história se mete em altas confusões, destrói algumas famílias (incluindo a sua própria), vira chefão do tráfico e, sem nenhum arco de redenção, apenas aceita o seu inevitável destino e padece, com sangue nas mãos, no seu habitat natural: o laboratório. É um final que qualquer químico almejaria.
(Eu já vou logo avisando que eu não sei ver as coisas levemente ou superficialmente; eu quero ir fundo, eu me afogo em maluquices, sandices e divagações e eu acho que é essa a real função da arte em geral).
O seriado pode simbolizar tantas coisas diferentes que é inclusive difícil escolher sobre o que falar. Já pararam para pensar como ele é uma dura crítica ao American Way of Life? Imaginem se Walter White se chamasse na verdade de Valter Branco e ao invés de morar em Albuquerque, Novo México, morasse em Sorocaba? O custo do tratamento do câncer seria muito reduzido, graças ao nosso Sistema Único de Saúde (que tem suas falhas, veja bem). Parece uma questão interessante a se levantar. Os preços de tratamento médico nos EUA, geralmente abusivos com as famílias, que acabam tendo de contrair imensas dívidas para cobrir os procedimentos. Acho que a série faz um bom comentário sobre esse tema.
Ainda sobre o American Way: Walter White representa o “loser” americano, aquele cidadão ridicularizado pelos ditos vencedores do sonho americano. Ao longo da primeira temporada, vemos Hank várias vezes menosprezando e sacaneando Walt. Mais para o final, White – já transformado em Heisenberg – devolve essas agressões. Eu entendo que a série tenta demonstrar que independentemente de ser muito bom na área que tu gosta, de nada vale se ela não é socialmente reconhecida. E também que esse comportamento hostil aos “losers”acaba gerando o clássico “oprimido vira o opressor”. Nos EUA esse tema é até mais evidenciado, pegando como exemplo os diversos casos de massacres em escolas, em que os alunos responsáveis por esses atos geralmente não eram aceitos e sofriam esse algum tipo de “bullying”. (longe de mim querer correlacionar todos os massacres ocorridos com esse fato, mas é uma característica comum).
Eu acho tão bonito que temas tão secundários duma obra possam suscitar discussões tão amplas e que nos fazem pensar de maneira tão profunda.
Saindo um pouco dos temas sociais, vamos ver a parte química de Breaking Bad.
Como eu falei ali em cima, provavelmente o seriado me inspirou a escolher o curso que eu faço hoje. Além disso, ele gerou essa curiosidade de entender todos aqueles termos que o Walter falava, todos os processos que ele realizava e basicamente tudo que acontecia de ciência na tela. Eu ficava maravilhado com as cenas dentro do laboratório, o Walt e o Jesse manufaturando em um processo que parecia muito fidedigno, com todas as arapucas do “Magvyer com curso superior” e tentando decorar o nome de cada elemento da tabela periódica e cada fórmula que apareciam nos créditos iniciais.
Uma questão que obviamente me chamou a atenção nessa série foi o cuidado com os detalhes. Nada parecia estar ali sem um sentido, todas as cenas eram cuidadosamente pensadas, cada enquadramento de câmera tinha um significado. E com isso veio a preocupação com a acurácia científica. Vince Gilligan, o criador da série falou em uma entrevista no meio da primeira temporada que queria: “realmente acertar na parte científica”. Uma professora membro da American Chemestry Society, que leu a matéria,se ofereceupara dar a supervisão da série, o que ele aceitou de bom grado (isso é literalmente o sonho da minha vida).
O seriado não é sobre ficção cientifica, mas, para engajar o telespectador e aumentar a imersão, eles decidiram se dedicar em justamente ser verossímeis na parte científica. E isso é impressionante porque não deixa o programa chato. Não me leve a mal, ciência é a últimacoisa que eu chamaria de chata, mas há esse estigma para grande parte das pessoas. Breaking Bad conseguiu tornar a ciência acessível e divertida para um público que outrora não se interessaria no assunto.
Longe de mim querer que alguém estude ou aprenda profundamente nada do que foi falado no seriado. Entretanto, todas as ações que tenham a ver com ciência abriram margem para indagações. “Por que o Walt manda o Jesse comprar uma bacia de plástico para dissolver os corpos dos traficantes com ácido fluorídrico?”; “Como o ácido fluorídrico dissolve os corpos?”; eu me lembro de perguntar essas coisas assistindo a série e depois ir atrás de descobrir. Eu lembro também de ficar tentando entender as etapas realizadas no laboratório do White, pois a série trata a produção como um processo químico qualquer, descolando-o de seu real propósito: produzir uma droga cara e altamente viciante. Eu queria entender qual a relação tinha a “fenilamina” com a “metanfetamina”; Por que elas tinham sufixos iguais? Eu fiz isso com quase toda a alusão a qualquer coisa mais ou menos científica que aparecia na série, e hoje eu vejo como isso foi muito gratificante para a minha formação.
Assim como a química, Breaking Bad é um seriado sobre mudança. Sobre transformação. Todos os personagens mudam de alguma forma. E a mudança de cada um deles está, de alguma maneira, relacionada com a principal mudança da série: a transformação de Walter White. Aquela citação dele ali no início é a maior previsão do programa. Walter White cresce, acaba decaindo e por fim acaba, como todas as coisas no planeta, é um ciclo – ele mesmo aponta isso. Dá pra analisar a série como uma reação em cadeia, com Walt sendo a primeira reação, espontânea, meio que catalisada pelo câncer, que acaba gerando todas as outras reações dos outros personagens (em uma cena na sala de aula, o Prof. White explica como monoalquenos, alcadienos, trienos e polienos são coisas complexas mas que todas giram em torno de um único elemento: carbono. Walt é o carbono da série). E essa é uma das milhões de metáforas que o seriado faz com a ciência. Isso eu acho genuinamente genial. Obviamente deve ter alguma outra obra que utilizou desse conceito antes, mas eu nunca tinha visto com tamanha profundidade e qualidade, então, Breaking Bad é a minha referência máxima. Na minha opinião a melhor metáfora é o título do último espisódio: “Felina”. Felina é uma personagem da música “El paso” que toca no rádio do carro do Walt no início do episódio e fala sobre um cara que acaba morrendo pelo amor dessa tal Felina; Felina pode ser um anagrama pra Finale, já que era o último episódio; Felina pode ser um anagrama pra Fenila, um radical orgânico presente por exemplo na fenilamina; e Felina pode ser visto como a junção dos símbolos químicos dos elementos Ferro, Litio e Sódio. O ferro aparece em grande concentração no sangue, o lítio está presente na metanfetamina e o Sódio é parte principal das lágrimas. Um belo resumo de toda a série.
Uma das minhas questões preferidas da série é o porquê o Walter White escolheu o pseudônimo de Heisenberg. Tá certo que Werner Von Heisenberg era um cientista como ele. É um nome imponente também (e nós temos sempre que lembrar a mania de grandeza do White devido a sua fase oprimida). O Walt tinha certeza que os traficantes de Albuquerque não conheceriam o físico. Nós podemos ir ficando um pouco mais profundos (e obsessivos, meus amigos diriam) e descobrir que assim como White, Heisenberg faleceu de câncer, porém no fígado ao invés de no pulmão (deixo essa questão em aberto, pois sou partidário da teoria que Walter White não morreu no ultimo episódio. Maiores informações). E podemos descer mais um nível de loucura sobre esse tema específico. Heisenberg é famoso por duas grandes contribuições para a ciência: a formulação da mecânica quântica e o principio da incerteza. Conforme nós vimos acima, a série se utiliza muitas vezes da química para fazer metáforas instigantes. Por isso, acho possível que se trace um paralelo entre o principio da incerteza e o Walter White. Simplisticamente, o princípio atesta que não podemos conhecer com certeza ao mesmo tempo a posição e o momento de um elétron por exemplo. A fim de ter mais certeza na medição do momento, perdemos precisão na posição e vice e versa. A interpretação é que essas duas naturezas “conflitantes” dos elétrons refletem a personalidade de Walt. Não é como se fossem duas manifestações diferentes da pessoa: o pacato e impotente professor de química existe simultaneamente ao agressivo e dominador chefão do tráfico Heisenberg; dependendo do momento, há mais do professor de química, ou mais do manufaturador de drogas, com cada faceta suprimindo a outra. Isso também pode ser referenciado à explicação que White dá no segundo episódio da primeira temporada sobre quiralidade e enantiômeros. Ele inclusive cita a questão da talidomida: um remédio receitado à grávidas nos anos 50 em que a forma D era benéfica e a parte L causava grandes problemas na gestação.
Não acho que nenhum problema tanto da ciência quanto da educação básica vai ser resolvido assistindo seriezinha de TV. E tentar empurrar goela abaixo das pessoas ciência a partir de uma série de drama não parece uma boa ideia. Apesar de tudo isso eu acho que temos que valorizar ao máximo quando um seriado como Breaking Bad surge. Tratando de ciência de uma forma franca; não desdenhando da capacidade do telespectador de pensar; arrojada e, principalmente, uma obra realmente sensacional nos mais diversos aspectos técnicos, direção, roteiro, atuação, figurino, cenário. Não acho que a série tenha afetado muita gente da mesma maneira que me afetou. Mas tenho certeza que, de alguma maneira, lá no fundo, quem assistiu a série saiu com uma visão um pouco diferente sobre os temas que eu citei aqui. Afinal, não é isso o que toda boa obra deveria fazer?
Eu tive a ideia desse texto fazendo um trabalho da faculdade sobre o físico Heisenberg e fiquei me perguntando o porquê do Walter White ter adotado o pseudônimo. Achei justo falar da minha relação com a série e como ela pode inspirar as pessoas.
Referencias e outros links interessantes:
Artigos sobre a acurácia científica de algumas cenas da série
Alguns dos “experimentos” que Walter White realiza nas telas
A wikipedia do seriado (boa pra achar um monte de informação inútil)
A entrevista com a consultora da série
Série de vídeos dissecando mais profundamente o roteiro
O criador da série explicando como criou o personagem do Walter White
Nerdologia sobre “a química do mal” de Breaking Bad
Augusto CainelliNunca achei que eu ia dar um carteiraço desse na minha vida mas vamos lá: sou técnico em viticultura e enologia pelo IFRS e atualmente curso o segundo semestre de Engenharia Química na UFRGS. Meu sonho é conseguir aliar as coisas que eu realmente amo nessa vida: romances policiais, jornalismo investigativo, counter strike, Roma antiga, técnicas de culinária francesa, geopolítica mundial, interpretações profundas de filmes e séries, produção musical, e essa lista não acaba mais. Enquanto eu tento organizar tudo isso em minha mente, eu incomodo as pessoas a minha volta com informações aleatórias sobre essas minhas paixões.